Quem
escreveu a Bíblia? (2)
Nota: Este é o 4ª capitulo do livro: QUEM JESUS
Quem escreveu a Bíblia?
Quem escreveu a Bíblia? Alunos em seu primeiro curso de nível superior sobre a Bíblia costumam achar surpreendente que não saibamos quem escreveu a maioria dos livros do Novo Testamento. Como é possível? Esses livros não trazem anexados os nomes dos autores? Mateus, Marcos, Lucas, João, as epístolas de Paulo, 1 e 2 Pedro e 1, 2 e 3 João? Como nomes errados podem estar ligados a livros das Escrituras? Não são a Palavra de Deus? Se alguém escreveu um livro alegando ser Paulo sabendo muito bem que não era, isso não é uma mentira? As Escrituras podem conter mentiras?
Quando cheguei ao seminário estava
totalmente armado e pronto para o ataque à minha fé praticado por estudiosos
liberais da Bíblia que iriam insistir nessas ideias malucas. Como fui criado em
círculos conservadores, eu sabia que essas visões eram comuns em lugares como o
Seminário Teológico de Princeton. Mas o que eles sabiam? Bando de liberais.
Com o tempo, o que foi assustador
para mim foi ver como havia poucas provas reais das tradicionais atribuições de
autoria que eu sempre considerara indiscutíveis e como havia tantas evidências
de que muitas dessas atribuições eram erradas. Então os liberais realmente
tinham algo a dizer e evidências para sustentar; eles não estavam apenas agindo
com pensamento destrutivo. Havia alguns livros, como os Evangelhos, que tinham
sido escritos anonimamente e apenas mais tarde atribuídos a certos autores que
provavelmente não os escreveram (apóstolos e amigos dos apóstolos). Outros
livros tinham sido escritos por autores que alegavam cinicamente ser alguém que
não eram.
Neste capítulo pretendo apresentar
essas evidências.
QUEM ESCREVEU OS
EVANGELHOS?
Embora evidentemente não seja o tipo
de coisa que os pastores costumem contar às suas congregações, há mais de um
século existe um forte consenso de que muitos dos livros do Novo Testamento não
foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão ligados a eles. Mas, se isso é
verdade, quem estão os escreveu?
OBSERVAÇÕES
PRELIMINARES:
OS EVANGELHOS COMO
RELATOS DE TESTEMUNHAS
Como já vimos, os Evangelhos estão
repletos de pequenas e grandes discrepâncias. Por que há tantas diferenças
entre os quatro livros? Eles são chamados de Mateus, Marcos, Lucas e João
porque se convencionou acreditar que tinham sido escritos por Mateus, um
discípulo que era coletor de impostos; João, o “discípulo amado” mencionado no
quarto Evangelho; Marcos, o secretário do discípulo Pedro; e Lucas, o
companheiro de viagem de Paulo. Essa tradição remonta a um século após os
livros terem sido escritos.
Mas, se Mateus e João foram escritos
por discípulos reais de Jesus, por que são tão diferentes, em todos os níveis?
Por que contêm tantas contradições? Por que apresentam visões tão
fundamentalmente distintas sobre quem Jesus era? Em Mateus, Jesus passa a
existir quando é concebido, ou nasce, de uma virgem; em João, Jesus é o Verbo
de Deus encarnado que estava com Ele no princípio e por intermédio de quem o
universo foi criado. Em Mateus, não há uma só palavra sobre o fato de Jesus ser
Deus; em João, ele é exatamente isso. Em Mateus, Jesus prega o futuro Reino de
Deus e quase nunca fala sobre si mesmo (e nunca que é divino); em João, Jesus
prega quase exclusivamente sobre si mesmo, especialmente sua divindade. Em
Mateus, Jesus se recusa a operar milagres para provar sua identidade; em João,
essa é praticamente a única razão para ele fazer milagres.
Será que dois dos seguidores reais de
Jesus poderiam ter compreensões tão radicalmente diferentes sobre quem ele era?
É possível. Duas pessoas que trabalharam no governo de George W. Bush podem
muito bem ter visões radicalmente diferentes sobre ele (embora eu duvide de que
qualquer uma delas o chamasse de divino). Isso levanta uma importante questão
metodológica que quero apresentar antes de discutir as evidências para a
autoria dos Evangelhos.
Por que surgiu a tradição de que
esses livros foram escritos por apóstolos e por companheiros dos apóstolos? Em
parte de modo a garantir aos leitores que eles foram escritos por testemunhas
oculares e companheiros das testemunhas oculares. Uma testemunha ocular merece
a confiança de que iria contar a verdade sobre o que realmente aconteceu na
vida de Jesus. Mas a realidade é que não é possível confiar em que as
testemunhas ofereçam relatos historicamente precisos. Elas nunca mereceram
confiança e ainda não merecem. Se testemunhas oculares sempre fizessem relatos
historicamente precisos, não teríamos a necessidade de tribunais. Quando
precisássemos descobrir o que realmente aconteceu quando um crime foi cometido,
bastaria perguntar a alguém. Casos reais demandam muitas testemunhas, porque
seus depoimentos diferem entre si. Se duas testemunhas em um tribunal
divergissem tanto quanto Mateus e João, imagine como seria difícil chegar a um
veredicto.
A verdade é que todos os Evangelhos
foram escritos anonimamente, e nenhum dos autores alega ser uma testemunha. Há
nomes ligados aos títulos dos Evangelhos (“o Evangelho segundo Mateus”), mas
esses títulos são acréscimos posteriores aos próprios livros, conferidos por
editores e escribas para informar aos leitores quem os editores achavam que
eram as autoridades por trás das diferentes versões. Que os títulos não são
originalmente dos Evangelhos é algo que fica claro com uma simples reflexão.
Quem escreveu Mateus não o chamou de “Evangelho segundo Mateus”. As pessoas que
deram esse título a ele estão dizendo a você quem, na opinião delas, o
escreveu. Autores nunca dão a seus livros o título de “segundo fulano”.1
Além disso, o Evangelho de Mateus é
inteiramente escrito na terceira pessoa, falando sobre o que “eles” — Jesus e
os discípulos — estavam fazendo, nunca sobre o que “nós” — Jesus e o restante
de nós — estávamos fazendo. Mesmo quando o Evangelho fala sobre Mateus ser
chamado a se tornar um discípulo, fala sobre “ele”, não sobre “eu”. Leia você
mesmo o relato (Mateus 9:9). Não há nada nele que leve a suspeitar de que o
autor fala de si mesmo.
Isso fica ainda mais claro em João.
No fim do Evangelho, o autor fala do“discípulo amado”: “Este é o discípulo que
dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu: e sabemos que o seu
testemunho é verdadeiro” (João 21:24). Observe como o autor se diferencia de
sua fonte de informações, “o discípulo que dá testemunho” e ele mesmo: “sabemos
que o seu testemunho é verdadeiro”. Ele/nós: este autor não é o discípulo.
Ele alega ter recebido algumas de
suas informações do discípulo. Quanto aos outros Evangelhos, Marcos não seria
um discípulo, mas um companheiro de Pedro, e Lucas era um companheiro de Paulo,
que também não era um discípulo. Mesmo que eles tivessem sido discípulos, isso
não garantiria a objetividade ou a veracidade de suas histórias. Mas na verdade
nenhum dos autores foi testemunha, e nenhum deles alega ter sido. Quem, então,
escreveu esses livros?
OS AUTORES DOS
EVANGELHOS
Uma boa forma de começar é com uma
pergunta básica: o que sabemos sobre os seguidores de Jesus? Nossa mais antiga
e melhor fonte de informação sobre eles são os próprios Evangelhos, juntamente
com o livro dos Atos. Os outros livros do Novo Testamento, como os textos de
Paulo, só se referem de passagem aos 12 apóstolos, e essas referências tendem a
confirmar o que podemos extrair dos próprios Evangelhos. Fora do Novo
Testamento temos apenas lendas produzidas muitas décadas e séculos depois — por
exemplo, os famosos Atos de João, que narram suas milagrosas empreitadas
missionárias após a ressurreição. Nenhum historiador acredita que esses Atos
sejam historicamente confiáveis. 2
Aprendemos nos Evangelhos que os
discípulos de Jesus, como ele, eram camponeses de classe baixa da Galileia
rural. A maioria deles — certamente Simão Pedro, André, Tiago e João — era
diarista (pescadores e assemelhados); Mateus seria coletor de impostos, mas não
é clara sua posição na organização desse trabalho: se era uma espécie de empreiteiro
que trabalhava diretamente com as autoridades governamentais para garantir o
faturamento dos impostos ou, mais provavelmente, o tipo de pessoa que esmurrava
sua porta para obrigá-lo a pagar. Nesse último caso, nada indica que ele
pudesse ter precisado de muita educação.
O mesmo certamente pode ser dito dos
outros. Temos algumas informações sobre o que era ser um camponês de classe
baixa nas regiões rurais da Palestina no século I. Significava, para começar,
que você quase certamente era analfabeto. O próprio Jesus era altamente
excepcional, no sentido de que é claro que sabia ler (Lucas 4:16-20), mas nada
indica que soubesse escrever. Na Antiguidade, essas eram habilidades distintas,
e muitas pessoas que sabiam ler eram incapazes de escrever.
Quantos sabiam ler? O analfabetismo
era disseminado por todo o império romano. Na melhor fase, talvez 10% da
população fosse grosseiramente alfabetizada. E esses 10% seriam das classes
abastadas — pessoas de classe alta que tinham tempo e dinheiro para receber uma
educação (e seus escravos e empregados eram ensinados a ler para melhor servir
a seus mestres). Todos os outros trabalhavam desde a infância e não podiam
sustentar o tempo e o custo de uma educação.3
Nada nos Evangelhos ou em Atos indica
que os seguidores de Jesus soubessem ler, quanto mais escrever. Na verdade, há
um relato em Atos no qual Pedro e João são identificados como “iletrados” (Atos
4:13) — a antiga palavra para analfabetos. Como judeus da Galileia, os
seguidores de Jesus, como o próprio Jesus, falariam aramaico. Sendo do
interior, provavelmente não teriam nenhum conhecimento de grego; se tivessem,
seria extremamente grosseiro, já que eles passavam seu tempo com outros
camponeses analfabetos falantes de aramaico tentando conseguir o pão de cada dia.
Em síntese, quem eram os discípulos
de Jesus? Camponeses analfabetos de classe baixa e falantes de aramaico da
Galileia.
E quem eram os autores dos
Evangelhos? Embora todos tenham se mantido anônimos, podemos descobrir algumas
coisas sobre eles nos livros que escreveram. E o que descobrimos contradiz
completamente o que sabemos sobre os discípulos de Jesus. Os autores dos
Evangelhos eram cristãos altamente educados, falantes de língua grega, que
provavelmente viviam fora da Palestina.
É bastante óbvio que eram pessoas
muito educadas de língua grega. Embora de tempos em tempos alguns estudiosos
tenham pensado que os Evangelhospudessem ter sido escritos originalmente em
aramaico, hoje, em função de muitas razões linguísticas técnicas, é quase
unânime a opinião de que todos eles foram escritos em grego. Como disse, na
melhor das hipóteses apenas cerca de 10% da população do império romano sabia
ler, uma porcentagem ainda menor conseguia escrever frases, e ainda menos
pessoas podiam construir narrativas rudimentares, e pouquíssimas eram capazes
de criar obras literárias extensas como os Evangelhos. Na verdade, os
Evangelhos não são os livros mais refinados surgidos no império — longe disso.
Mas são narrativas coerentes escritas por autores altamente educados que sabiam
como construir uma história e atingir seus objetivos literários com elegância.
Quem quer fossem esses autores, eram cristãos de uma geração posterior, com
dotes incomuns. Os estudiosos discutem onde viveram e trabalharam, mas sua
ignorância da geografia palestina e dos costumes judaicos sugere que criaram
suas obras em outro lugar do império — possivelmente em uma grande área urbana
onde poderiam ter recebido uma educação decente e onde haveria uma comunidade
cristã relativamente grande.4
Esses autores não eram camponeses da
Galileia de classe baixa, analfabetos que falavam aramaico. Mas não seria
possível que, digamos, João tenha escrito o Evangelho já em idade avançada? Que
quando jovem ele fosse um trabalhador braçal analfabeto que falava aramaico —
um pescador desde o momento em que atingiu a idade suficiente para puxar uma
rede —, mas que escreveu o Evangelho já idoso?
Imagino que seja possível. Isso
significaria que depois da ressurreição de Jesus ele teria decidido ir à escola
e se alfabetizar. Ele conheceu os princípios da leitura, os rudimentos da
escrita e aprendeu grego bem o bastante para se tornar absolutamente fluente.
Quando se tornou idoso, ele teria dominado a composição e seria capaz de
escrever um Evangelho. É provável? Parece difícil. João e os outros seguidores
de Jesus tinham outra coisa em mente após experimentar a ressurreição de Jesus.
Para começar, eles tinham de converter o mundo e comandar a Igreja.
O TESTEMUNHO DE PÁPIAS
Apesar das evidências de que nenhum
dos discípulos escreveu um Evangelho, temos de lidar com a tradição dos
primórdios da Igreja que indica que alguns deles o fizeram. Como lidar com essa
tradição?
Sua mais antiga fonte, um antigo Pai
da Igreja chamado Pápias, trata apenas de dois antigos Evangelhos cristãos,
Marcos e Mateus. Pápias é um personagem enigmático que escreveu uma obra em
cinco volumes chamada Exposição dos oráculos do Senhor. Estudiosos dataram a
obra em algum ponto entre 110 e 140 d.C., de quarenta a setenta anos após o
primeiro Evangelho ter sido escrito.5 O livro de Pápias não sobreviveu: uma
série de autoridades cristãs posteriores considerou as visões de Pápias
ofensivas ou insuficientemente sofisticadas, de modo que não foi extensivamente
copiado para a posteridade.6 Tudo o que sabemos sobre a obra vem de citações
feitas por posteriores Pais da igreja.
Ainda assim, Pápias com frequência
foi apresentado como uma fonte útil para estabelecer a tradição dos primórdios
da Igreja, em parte pelo modo como ele diz ter recebido suas informações. Em
algumas das citações preservadas de Exposição, ele afirma ter conversado
pessoalmente com cristãos que tinham conhecido um grupo de pessoas
identificadas por ele como “os anciãos”, que conheciam alguns dos discípulos, e
que estava repassando informações que recebera deles. Assim, ao ler Pápias,
temos acesso a informações de terceira ou quarta mão de pessoas que conheciam
companheiros dos discípulos.
Uma passagem muito citada de Pápias
(registrada por Eusébio) descreve esse tipo de informação de terceira ou quarta
mão referente a Marcos e Mateus como autores dos Evangelhos.
Isso é o que o ancião costumava
dizer: “Quando Marcos era o intérprete [tradutor?] de Pedro, escreveu
precisamente tudo o que se lembrava das palavras e ações do Senhor — mas não em
ordem. Pois ele não tinha ouvido o Senhor nem o acompanhado. Mas depois, como
eu indiquei, ele acompanhou Pedro, que costumava adaptar os ensinamentos dele
para suas necessidades, não produzindo, como deveria, uma composição organizada
dos ditos do Senhor. E, assim, Marcos não feznada de errado ao escrever algumas
das questões como se recordava delas. Pois ele só tinha um objetivo: não deixar
de fora nada que ouvira nem incluir qualquer falsidade entre elas.”
Ele continua, falando sobre Mateus:
E assim Mateus compôs os ditos na
língua hebraica, e cada um os interpretou [traduziu?] segundo o melhor de sua
capacidade (Eusébio, História da Igreja, 3, 39).
Isso não é uma prova de que Mateus
realmente escreveu Mateus e de que Marcos realmente escreveu Marcos?
Há algumas complicações muito sérias
na tentativa de saber o valor das observações de Pápias. Vamos começar com
Mateus. A princícipio, no caso de Mateus — diferentemente de Marcos —, nós não
sabemos qual é a fonte de informação de Pápias, ou mesmo se ele tinha uma
fonte. É de terceira mão? Quarta mão? Quinta mão? Se Pápias estava escrevendo,
digamos, em 120 ou 130, seria cerca de quarenta ou cinquenta anos após Mateus
ter sido escrito anonimamente. O Evangelho estava circulando anonimamente havia
décadas. Não é possível que a tradição que Pápias apresenta tenha sido criada
nesse meio-tempo?
Nesse sentido, é importante observar
que as duas informações concretas que Pápias nos dá sobre Mateus não são
verdadeiras para o “nosso” Mateus. Nosso Mateus não é apenas uma coletânea de
ditos de Jesus, e o Evangelho certamente foi escrito em grego, não em
hebraico.7 Será que Pápias simplesmente recebeu uma informação errada? Ou está
falando sobre algum outro livro escrito por Mateus — por exemplo, uma coletânea
de ditos de Jesus — de que já não dispomos?
Se Pápias não é confiável em relação
a Mateus, será confiável quanto a Marcos? Nesse caso ele indica que estamos
recebendo informações de terceira ou quarta mão.8 E, mais uma vez, um dos
pontos que ele enfatizacertamente está errado: ele alega que um dos dois
objetivos de Marcos era contar tudo o que tinha ouvido de Pedro sobre Jesus.
Simplesmente não há como isso ser verdade. O Evangelho de Marcos leva cerca de
duas horas para ser lido em voz alta. Após Pedro ter passado todos aqueles
meses, ou anos, com Jesus, e depois de Marcos ter escutado Pedro pregar sobre
Jesus dia e noite, devemos imaginar que Marcos só ouviu duas horas de
informações importantes?
Seja como for, Pápias não parece nos
dar o tipo de informação em que possamos confiar muito. Quanto a isso, devo
dizer que os estudiosos quase unanimamente rejeitaram todo o restante do que
Pápias teria dito nas referências sobreviventes à sua obra. Vejamos outra
informação de quarta mão:
Assim, os anciãos que viram João, o discípulo
do Senhor, lembram-se de tê-lo ouvido dizer como o Senhor costumava pregar
naquela época, dizendo: “Está chegando o dia em que chegarão as parreiras, cada
uma com dez mil galhos, e em cada galho haverá dez mil ramos. E de fato, em um
único ramo haverá dez mil brotos; e em cada broto haverá dez mil cachos; e em
cada cacho, dez mil uvas, e cada uma, quando esmagada, irá produzir 25 medidas
de vinho. E quando cada santo agarrar um cacho, outro irá gritar: ‘Sou melhor,
me tome, abençoe o senhor por mim’” (Eusébio, História da Igreja, 3.39.1).
Ninguém acha que Jesus realmente
tenha dito isso. Ou que João, o discípulo de Jesus, tenha afirmado que Jesus
disse isso. Será que os anciãos que conheceram João realmente disseram isso?9
Se os estudiosos tendem a descartar o
que Pápias diz em praticamente todos os outros casos, por que algumas vezes
apelam ao seu testemunho para provar que temos uma antiga tradição que
relaciona Mateus a um de nossos Evangelhos e Marcos a outro? Por que esses
estudiosos aceitam parte do que Pápias disse, mas não tudo? Suspeito de que
seja porque eles precisam deembasamento para seus próprios pontos de vista
(Mateus realmente escreveu Mateus) e decidiram confiar em Pápias quando ele
confirma suas interpretações e não confiar quando ele não confirma.
Acho que o resultado desse rápido
estudo de Pápias é que ele transmite histórias que ouviu e as atribui a pessoas
que conheceram outras pessoas que as contaram. Mas, quando ele pode ser
verificado, aparenta estar errado. É possível confiar nele nos momentos em que
não pode ser confirmado? Se você tem um amigo que quase sempre está errado
quando lhe dá as indicações para chegar a lugares com os quais você está
familiarizado, vai confiar nele quando lhe fornecer a direção para algum lugar no
qual você nunca esteve?
Não há registro de Pápias ter dito
algo sobre Lucas ou João. Não sei por quê. Mas o resumo é o seguinte: não temos
qualquer referência sólida sobre os autores de nossos quatro Evangelhos em que
possamos confiar (por exemplo, que o autor realmente está se referindo ao nosso
Mateus e ao nosso Marcos) até quase o fim do século II — quase cem anos depois
de os livros terem começado a circular anonimamente.
OS TESTEMUNHOS DE
IRINEU E OUTROS
A primeira referência aos quatro
Evangelhos está nos escritos de Irineu, um dos Pais da Igreja. Em um ataque em
cinco volumes às heresias cristãs, ele nomeia os quatro Evangelhos da Igreja
como Mateus, Marcos, Lucas e João. Não surpreende que na época de Irineu (180
d.C.) os Pais da Igreja quisessem saber quem tinha escrito esses livros
anônimos. Como veremos em capítulo posterior, havia muitos outros Evangelhos
circulando nos primórdios da Igreja — a maioria deles na verdade alegando terem
sido escritos por discípulos de Jesus, como Pedro, Tomé e Filipe. Como decidir
quais Evangelhos seriam considerados apostólicos? Era um problema espinhoso, já
que a maioria desses “outros” Evangelhos representava perspectivas teológicas
consideradas heréticas por gente como Irineu. Como alguém poderia saber quais
eram os verdadeiros ensinamentos de Jesus? Apenas aceitando Evangelhos que
tivessem sido escritos por seus seguidores ou por companheiros íntimos de seus
seguidores.
Mas os Evangelhos considerados
confiáveis no círculo de Irineu eram originalmente anônimos. A solução para o
problema de validar esses textos era óbvia: eles precisavam ser atribuídos a
autoridades reais estabelecidas. Havia décadas circulava uma tradição de que
Mateus tinha escrito um Evangelho; então aquele que é hoje nosso primeiro
Evangelho passou a ser aceito como esse livro. Achava-se que Marcos tinha sido
amigo de Pedro: nosso segundo Evangelho passou a ser associado a ele,
disponibilizando a visão de Pedro da vida de Jesus. O autor de nosso terceiro
Evangelho escreveu dois volumes, o segundo dos quais, Atos, retratava Paulo
como um herói. Os líderes da Igreja insistiram em que ele tinha de ser escrito
por um companheiro de Paulo, portanto o atribuíram a Lucas.10 E, para terminar,
o quarto Evangelho, que diz explicitamente não ter sido escrito por uma
testemunha ocular, ainda assim foi atribuído a uma, João, um dos discípulos
mais próximos de Jesus (ele na verdade nunca é citado no quarto Evangelho).
Nenhuma dessas atribuições remonta aos próprios autores. E nenhum dos
Evangelhos foi escrito por um dos seguidores de Jesus, que eram todos galileus
de classe baixa que falavam aramaico, não cristãos falantes de grego altamente
educados de uma geração posterior.
E, assim, temos uma resposta para
nossa grande questão: por que esses Evangelhos são tão diferentes uns dos
outros? Eles não foram escritos por companheiros de Jesus ou por companheiros
de seus companheiros. Foram escritos décadas depois por pessoas que não
conheceram Jesus, viviam em um país diferente ou em países diferentes do de
Jesus e falavam uma língua diferente da dele. Eles são diferentes uns dos
outros em parte porque seus autores também não conheciam uns aos outros, em
certa medida tinham fontes de informação distintas (embora Mateus e Lucas sejam
baseados em Marcos) e porque modificaram suas histórias em função de suas
próprias compreensões de quem Jesus era.
O fato de que os Evangelhos na
verdade não foram escritos pelos apóstolos não os torna incomuns no Novo
Testamento. Muito pelo contrário: os torna típicos. A maioria dos livros do
Novo Testamento leva nomes de pessoas que não os escreveram. Isso é bem
conhecido dos estudiosos desde o séculopassado e é amplamente ensinado nos
principais seminários e faculdades de teologia por todos os Estados Unidos.
Consequentemente, a maioria dos pastores também sabe disso. Mas para muitas
pessoas nas ruas e nos bancos de igreja isso é “novidade”.
HÁ FALSIFICAÇÕES NO
NOVO TESTAMENTO?
Dos 27 livros do Novo Testamento,
apenas oito certamente remontam ao autor cujo nome carregam: as sete epístolas
consensuais de Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1
Tessalonicenses e Filemon) e o Apocalipse de João (embora não tenhamos certeza
de quem é esse João). Os outros 19 livros se encaixam em três grupos.
• Textos erroneamente atribuídos.
Como já vimos, os Evangelhos provavelmente são equivocadamente atribuídos. O
discípulo João não escreveu João, e Mateus não escreveu Mateus. Outros livros
anônimos foram equivocadamente atribuídos a alguém famoso. O livro dos Hebreus
não identifica Paulo como seu autor, e quase certamente não foi escrito por
Paulo.11 Mas acabou sendo aceito no cânone da Igreja (ver capítulo 7), porque
os Pais da Igreja chegaram à conclusão de que havia sido escrita por Paulo.
• Textos homônimos. A palavra
“homonímia” significa “ter o mesmo nome”. Um “texto homônimo” é aquele escrito
por uma pessoa que tem o mesmo nome de alguém famoso. O livro de Tiago, por
exemplo, sem dúvida foi escrito por alguém chamado Tiago, mas o autor não alega
ser um Tiago específico. Era um nome extremamente comum. Líderes da Igreja
posteriores aceitaram o livro como parte das Escrituras alegando que esse Tiago
era Tiago, irmão de Jesus. O livro propriamente dito não traz essa alegação.
• Escritos pseudepigráficos. Alguns
livros do Novo Testamento foram escritos em nome de pessoas que na verdade não
os escreveram. Os estudiosos sabem disso há mais de um século. A palavra que
nomeia essefenômeno é “pseudepigrafia”, literalmente “livro cuja autoria é
falsa”. Os estudiosos não são inteiramente precisos no uso desse termo, e
tendem a empregá-lo por não ter a conotação pejorativa associada à palavra
“fraude”. Mas, qualquer que seja o termo escolhido, os estudiosos da Bíblia há
muito argumentam que há livros do Novo Testamento cujos autores
intencionalmente alegaram ser alguém que não eles mesmos.
PSEUDEPIGRAFIA NO MUNDO
ANTIGO
Para compreender essa situação, temos
de saber mais sobre autoria e falsa autoria no mundo antigo.
Definições
Para começar, temos de ser precisos
em nossa terminologia. O termo “pseudepigrafia” pode se referir a qualquer
texto que tenha um nome falso ligado a ele. Podem ser falsas atribuições ou
textos cujos autores falsamente aleguem ser outra pessoa.
Há dois tipos de textos falsamente
atribuídos. Alguns são livros escritos anonimamente que leitores, editores ou
escribas posteriores alegaram, equivocadamente, terem sido escritos por alguém
famoso; outros são livros escritos anonimamente por alguém que por acaso tem o
mesmo nome de alguém famoso. No mundo antigo, a maioria das pessoas não tinha
sobrenome, de modo que “João” poderia se referir a qualquer um entre centenas
ou milhares de pessoas. Se um autor chamado João escreveu um livro e depois
alguém disse que esse João na verdade era João, filho de Zebedeu (como alguns
alegaram no caso do livro do Apocalipse), seria uma falsa atribuição com base
em homonímia.12
Também há dois tipos de textos
“pseudônimos”, textos escritos sob um “nome falso”. Um nome literário é apenas
um pseudônimo. Quando Samuel Clemens escreveu As aventuras de Huckleberry Finn
e assinou como Mark Twain, não pretendia enganar ninguém; estava simplesmente
escolhendo um nome diferente sob o qual publicar. Há bem poucos casos desse
tipo de pseudonímia no mundo antigo, embora ele eventualmente ocorra. O
historiador grego Xenofonte escreveu sua famosa obra Anábase sob umpseudônimo,
“Temistógenes”. Mais frequentemente na Antiguidade encontramos outros tipos de
textos pseudônimos, nos quais o autor usa o nome de alguém bastante conhecido
para levar seu público a pensar que ele realmente é aquela pessoa. Esse tipo de
texto pseudônimo é uma fraude literária.
A prevalência da fraude
no mundo antigo
A fraude literária era um fenômeno
comum no mundo antigo. Sabemos disso porque os próprios autores da Antiguidade
falam muito sobre isso. É possível encontrar discussões sobre fraude nos textos
de alguns dos autores mais conhecidos do mundo antigo. Entre os gregos e
romanos há referências e debates sobre fraude em autores conhecidos como
Heródoto, Cícero, Quintiliano, Marcial, Suetônio, Galeno, Plutarco, Filastrato
e Diógenes Laércio. Entre os escritores cristãos há discussões nos textos de
personalidades conhecidas, como Irineu, Tertuliano, Orígenes, Eusébio,
Jerônimo, Rufino e Agostinho.
Alguns estudiosos do Novo Testamento
algumas vezes argumentam que a fraude era tão comum no mundo antigo que ninguém
a levava a sério: como comumente o logro podia ser facilmente identificado, na
verdade nunca tinha a intenção de enganar ninguém. 13 Passei os últimos anos
estudando antigas discussões sobre fraude e cheguei à conclusão de que as
únicas pessoas que usam esse argumento são aquelas que na verdade não leram as
fontes antigas.
As fontes antigas levavam a fraude a
sério. Elas a condenam quase por unanimidade, frequentemente com firmeza. Quão
amplamente ela era condenada? Por mais estranho que pareça, a prática da fraude
algumas vezes é condenada até mesmo em documentos fraudulentos. Além disso, a
alegação de que ninguém chegava a ser enganado é completamente equivocada. As
pessoas eram enganadas o tempo todo. Por isso as fraudes eram escritas — para
enganar as pessoas.
Não preciso fazer aqui um relato
detalhado das antigas discussões sobre fraude; há muitos estudos sobre o
problema, embora infelizmente a maioria das obras mais minuciosas esteja escrita
em alemão.14 Mas posso exemplificar contando uma história particularmente
reveladora.
Na Roma do século II, havia um famoso
médico e escritor chamado Galeno. Ele conta a história de que um dia, quando
caminhava pelas ruas de Roma, passou pela banca de um vendedor de livros. Viu
dois homens discutindo sobre um livro à venda, escrito sob o nome de... Galeno!
Um dos homens insistia em que o livro realmente era desse autor, e o outro era
igualmente eloquente em sua alegação de que isso não era possível, já que o
estilo era completamente diferente do de Galeno. Desnecessário dizer que isso
aqueceu o coração do escritor, já que ele de fato não tinha escrito o livro.
Mas ele ficou um tanto perturbado por alguém estar tentando vender um livro
usando seu nome. Então foi para casa e escreveu um livrinho chamado Como
reconhecer os livros de Galeno. O material foi preservado até nossos dias.
A fraude era amplamente praticada,
tinha como objetivo enganar e com frequência dava certo. Que não era uma
prática aceita fica claro nos termos usados pelos autores antigos para se
referir a ela. Duas das palavras gregas mais comuns para uma fraude são
pseudon, mentira, e nothon, filho bastardo. Essa última é tão dura e ofensiva
em grego quanto em português. Frequentemente é justaposta ao termo gnesion, que
significa algo como legítimo ou autêntico.
Motivações para
produzir fraudes
Fica claro, com base em um grande
número de obras antigas, que a intenção da fraude literária era levar os
leitores a pensar que alguém que não o real autor tinha escrito o livro. Mas o
que motivava os autores a fazer isso? Por que eles simplesmente não escreviam
livros usando os próprios nomes? Há muitas motivações para autores pagãos,
judeus e cristãos forjarem textos literários.
Eis dez delas:
1 — Gerar lucros. As duas grandes
bibliotecas do mundo antigo ficavam nas cidades de Alexandria e Pérgamo. Na
Antiguidade, adquirir livros para a coleção de uma biblioteca era muito
diferente do que é hoje. Como os livros eram copiados à mão, diferentes cópias
do mesmo livro podiam diferir uma da outra, algumas vezes consideravelmente, de
modo que as bibliotecas mais importantes preferiam ter o original de um livro
em vez de uma cópiaposterior que poderia conter erros. Segundo Galeno, isso
levava pessoas empreendedoras a criar cópias “originais” de clássicos para
vender às bibliotecas de Alexandria e Pérgamo. Se os bibliotecários pagassem em
dinheiro vivo por cópias originais de tratados do filósofo Aristóteles, você
ficaria impressionado com a quantidade de cópias originais de tratados do autor
que começariam a aparecer. Pelo que posso dizer, o lucro não teve nenhum efeito
nos antigos textos cristãos, já que eles só passaram a ser vendidos no mercado
muito tempo depois.
2 — Para se opor a um inimigo.
Algumas vezes uma obra literária era fraudada para criar uma imagem ruim de um
inimigo pessoal. Um historiador da filosofia, o grego Diógenes Laércio, indica
que um filósofo chamado Diotemo forjou e depois distribuiu cinquenta cartas
obscenas em nome de sua nêmese filosófica, Epicuro. Isso obviamente não foi uma
maravilha para a reputação de Epicuro. Eu algumas vezes pensei se algo assim
acontece com uma das fraudes mais peculiares dos primórdios da cristandade. O
caçador de heresias do século IV Epifânio indicou ter lido um livro
supostamente usado por um grupo de hereges cristãos altamente imorais conhecido
como fibionitas. Esse livro, As grandes questões de Maria, supostamente
conteria relatos bizarros sobre Jesus e Maria Madalena nos quais Jesus leva
Maria para uma montanha alta e em sua presença tira uma mulher do lado do seu
corpo (assim como Deus fez Eva a partir da costela de Adão), depois começa a
ter um intercurso sexual com ela. Contudo, ao chegar ao orgasmo, ele sai de
dentro dela, coleta seu sêmen com a mão e o come, dizendo a Maria: “Isto temos
de fazer, para viver.” Compreensivelmente, Maria desmaia na mesma hora
(Epifânio, Panarion, livro 26). Essa estranha história não é encontrada em
nenhuma outra fonte que não Epifânio, conhecido por inventar muitas de suas “informações”
sobre hereges. Eu muitas vezes pensei se ele mesmo não teria inventado todo o
relato e alegado tê-lo encontrado em um dos livros dos fibionitas. Nesse caso,
ele teria forjado um livro fibionita em nome de Maria, de modo a criar uma
péssima imagem para seus rivais heréticos.
3 — Para contestar determinado ponto
de vista. Se eu estiver certo quanto a Epifânio e As grandes questões de Maria,
então parte de sua motivaçãoteria sido contestar um ponto de vista, a heresia
fibionita, que ele considerava nociva. Motivações semelhantes podem ser
encontradas em muitas outras fraudes cristãs. Além de 1 e 2 Coríntios, do Novo
Testamento, temos um 3 Coríntios que não pertence ao Novo Testamento.15 Esse
livro claramente foi escrito no século II, já que contesta certas visões
heréticas conhecidas naquela época, sugerindo que Jesus não era um ser humano
de carne e osso e que seus seguidores não seriam ressuscitados em carne.
Segundo esse autor, eles iriam ressuscitar, como afirma em termos bem claros —
alegando ser o apóstolo Paulo. Pode parecer estranho contestar um ensinamento
falso assumindo uma falsa identidade, mas aí está. Aconteceu muito nas
falsificações dos primórdios da tradição cristã.
4 — Defender a ideia de que sua
própria tradição tenha inspiração divina. Há uma antiga coletânea de textos
conhecida como os oráculos sibilinos.16 Sibila seria uma antiga profetisa pagã,
inspirada pelo deus grego Apolo. Contudo, nossos oráculos preservados foram em
sua maioria escritos por judeus. Neles a profetisa, supostamente vivendo muito
antes dos eventos que prevê, debate os acontecimentos futuros da história — e
está sempre certa, já que o verdadeiro autor vive depois das ocorrências — e
confirma a validade de importantes crenças e práticas judaicas. Não querendo ficar
para trás, cristãos posteriores inseriram em alguns desses oráculos referências
ao advento de Cristo, de modo que essa profetisa pagã passou a prever
corretamente a vinda do Messias. Existe testemunho melhor da verdade divina da
religião de alguém do que profecias supostamente feitas pela porta-voz
inspirada dos seus inimigos?
5 — Por humildade? Alguns estudiosos
do Novo Testamento costumam alegar que integrantes de certas escolas
filosóficas escreviam tratados com o nome de seus mestres como um gesto de
humildade, já que suas ideias não passavam de uma extensão do que seus próprios
mentores tinham dito. Isso seria válido particularmente para um grupo de
filósofos conhecidos como pitagóricos, assim chamados por causa do grande
filósofo grego Pitágoras. Contudo, há uma grande polêmica sobre se os filósofos
pitagóricos que alegavam ser Pitágoras o faziam por humildade: não há nada
escrito nessesentido em seus próprios textos, apenas nos textos de autores de
séculos depois.17 Os pitagóricos poderiam ser inspirados por outros motivos.
6 — Por amor a um personagem com
autoridade. De forma similar, temos um autor da Antiguidade que alegou ter
falsificado sua obra como um ato de amor e reverência. Esse é um caso muito
incomum, no qual um falsificador foi apanhado com a boca na botija. A história
é contada no século III pelo Pai Tertuliano, que diz que as conhecidas
histórias de Paulo e sua discípula Tecla, famosa como um modelo de discípulo na
Idade Média, foram forjadas pelo líder de uma igreja da Ásia Menor, pego em
flagrante e consequentemente destituído de seu cargo. Em sua defesa, o
falsificador alegou que tinha escrito sua obra “por amor a Paulo”.18 Não é
exatamente claro o que ele queria dizer com isso, mas pode significar que sua
devoção ao apóstolo o levara a inventar uma história em nome de Paulo, a fim de
apresentar o que ele considerava seus ensinamentos e pontos de vista mais
importantes. Na verdade, os ensinamentos e pontos de vista encontrados nos Atos
de Paulo e Tecla preservados não são absolutamente o que Paulo pregava: entre
outras coisas, lemos nessa narrativa que Paulo proclamou que a vida eterna não
seria concedida àqueles que acreditavam na morte e na ressurreição de Jesus,
como o próprio Paulo anunciou, mas aos que seguissem Jesus em sua abstinência
sexual — mesmo sendo casados.
7 — Para ver se era possível enganar.
Houve alguns antigos falsificadores que criaram sua obra apenas para ver se
conseguiriam enganar os outros. O termo técnico para isso é “mistificação”. O
caso mais famoso, contado por Diógenes Laércio, é o de um autor chamado Dioniso
que decidiu enganar um de seus maiores inimigos, Heráclides de Ponto,
falsificando uma peça em nome do famoso autor de tragédias Sófocles. Heráclides
foi enganado e citou a peça como autêntica. Dioniso depois revelou o logro —
mas Heráclides se recusou a acreditar. Dioniso então mostrou que, pegando as
primeiras letras de várias linhas do texto e as escrevendo como palavras
(acrósticos), elas formavam o nome do namorado de Dioniso. Heráclides alegou não
passar de coincidência, até Dioniso mostrar que mais adiante no texto havia
dois outros acrósticos, um com a mensagem “macaco velho não cai em armadilha;
ah,sim, ele acaba caindo, mas leva tempo”, e outro que dizia: “Heráclides
ignora as letras e não se envergonha de sua ignorância.”19 Não conheço casos
seguros de mistificação entre antigas falsificações cristãs.
8 — Para complementar a tradição.
Especialmente nos primórdios do cristianismo houve muitos casos nos quais os
falsificadores forneciam textos “confiáveis” complementando o que se acreditava
faltar na tradição. Por exemplo: o autor de Colossenses 4:17 (Paulo?) orienta
seus leitores a também lerem a epístola enviada aos cristãos da cidade de
Laodiceia. Contudo, não temos uma epístola autêntica de Paulo aos laodiceus.
Não surpreende, então, que tenham surgido no século II duas dessas cartas,
forjadas em nome de Paulo, para preencher a lacuna.20 Outro exemplo: sabe-se
que os Evangelhos do Novo Testamento não dizem praticamente nada sobre o começo
da vida de Jesus. Isso perturbou alguns dos primeiros cristãos, e no século II
começaram a surgir relatos sobre Jesus quando menino. O mais famoso deles teria
sido escrito por alguém chamado Tomé, um nome que significa “o gêmeo”. Isso
pode ser uma referência a uma tradição dos cristãos da Síria segundo a qual um
irmão de Jesus, Judas, na verdade era seu gêmeo, “Judas Tomé”. Seja como for, é
uma narrativa intrigante das aventuras do jovem Jesus, começando com a idade de
cinco anos.21
9 — Para contestar outras fraudes. Um
dos fenômenos menos estudados nas primeiras fraudes cristãs é a produção de
textos falsos com o objetivo de contestar posições defendidas em outras
fraudes. Segundo o Pai da Igreja Eusébio, no início do século IV foi produzida
uma fraude pagã anticristã chamada Atos de Pilatos. Aparentemente era uma
narrativa do julgamento e da execução de Jesus do ponto de vista romano, para
mostrar que Jesus merecia plenamente o que recebeu. Foi um documento bastante
conhecido: o imperador romano Maximino Daia decretou que ele tinha de ser lido
pelos meninos que aprendiam as letras (Eusébio, História da Igreja 9:5).
Contudo, pouco depois surgiu um documento cristão também conhecido como Atos de
Pilatos. Nesse relato, Pilatos é absolutamente simpático a Jesus e tenta
fervorosamente defendê-lo como inocente de todas as acusações. 22 A versão
cristã parece ter sido escrita para contestar a pagã, e o fenômeno
decontrafalsificação cristã aparenta ter sido razoavelmente disseminado. Havia
no século IV um texto intitulado Constituições Apostólicas, que teria sido
escrito pelos 12 apóstolos após a morte de Jesus, embora eles já estivessem
mortos havia três séculos na época em que o texto foi produzido. Entre as
muitas características marcantes desse livro está sua insistência em que os
cristãos não lessem obras que alegassem falsamente ter sido escritas por
apóstolos (Constituições Apostólicas 6:16). Há algo similar até mesmo no Novo
Testamento: o autor de 2 Tessalonicenses alerta seus leitores a não se
preocuparem com uma epístola supostamente escrita por Paulo (isto é, uma carta
forjada em nome de Paulo, 2 Tessalonicenses 2:2). Mas, como logo veremos, há
bons motivos para acreditar que a própria 2 Tessalonicenses é um livro
pseudepigráfico, supostamente de autoria de Paulo, mas na verdade não escrito
por ele.
10 — Dar autoridade aos pontos de
vista de alguém. Essa é a motivação que considero, de longe, a mais comum nas
antigas fraudes cristãs. Nos primeiros séculos da Igreja havia muitos cristãos
que defendiam numerosos pontos de vista, a maioria dos quais passou a ser
considerada heresia. Mas todos esses cristãos diziam representar os pontos de
vista de Jesus e de seus discípulos. Como mostrar que suas visões eram
apostólicas para, digamos, convencer potenciais convertidos? O modo mais fácil
era produzir um livro, alegar que tinha sido escrito por um apóstolo e colocar
o material em circulação. Todos os grupos de primeiros cristãos tinham acesso a
escritos supostamente de autoria dos apóstolos. A maioria desses escritos era de
fraudes.
Antigas fraudes cristãs
Ninguém pode racionalmente duvidar de
que muito da antiga literatura cristã é falsificada. Fora do Novo Testamento,
por exemplo, temos uma longa série de outros Evangelhos supostamente (mas não
verdadeiramente) escritos por conhecidos líderes dos primórdios da Igreja:
Pedro, Filipe, Tomé, Tiago, o irmão de Jesus, e Nicodemos, entre outros; temos
muitos Atos apostólicos, como os Atos de João e o de Paulo e Tecla; temos
epístolas, como a carta aos laodiceus, 3 Coríntios, uma troca de cartas entre
Paulo e o filósofo romano Sêneca e uma carta supostamente escrita por Pedro a
Tiago para se opor a Paulo; e temos uma série de apocalipses, como o de Pedro
(que quase entrou para o cânone) e o de Paulo. Vamos estudar alguns desses
outros textos no capítulo 6.
Os antigos autores cristãos eram
ocupados, e uma de suas atividades comuns era forjar documentos nos nomes dos
apóstolos. Isso nos leva à grande pergunta: alguma dessas falsificações entrou
para o Novo Testamento?
De um ponto de vista histórico, não
há motivo para duvidar de que algumas falsificações poderiam ter entrado para o
cânone. Temos numerosas falsificações fora do Novo Testamento. Por que não
dentro dele? Não acho que seja possível argumentar que os líderes da Igreja, a
partir do fim do século II, saberiam quais livros realmente haviam sido
escritos por apóstolos e quais não. Como poderiam saber? Ou, talvez mais
importante, como nós podemos saber?
Pode soar estranho, mas hoje é mais
fácil identificarmos falsificações antigas do que era para as pessoas no mundo
antigo. Os métodos que usamos são os mesmos delas. Como Galeno, nós avaliamos o
estilo de escrita utilizado em uma. É o mesmo estilo literário empregado pelo
autor em outros textos? Se não, quão diferente ele é? Ligeiramente diferente ou
extremamente diferente? É possível que um autor escreva em estilos diferentes?
Ou o estilo tem algumas características completamente distintas daquelas que
ele usa em outros textos, especialmente naqueles aspectos estilísticos nos
quais não pensamos muito enquanto estamos escrevendo (que tipos de conjunção
usamos, como construímos frases complexas, como usamos particípios e
infinitivos)? Também avaliamos as escolhas de palavras: há um vocabuláriopadrão
que o autor emprega e que está ausente daquele texto? Ou o vocabulário
empregado naquele livro só é encontrado em fases posteriores do grego antigo?
As ideias teológicas, os pontos de vista e as perspectivas do livro são mais
importantes. Os do livro em questão são os mesmos de outros textos do autor, ou
pelo menos basicamente semelhantes? Ou são marcadamente diferentes?
Fazemos esse tipo de avaliação agora
porque temos mais recursos. Críticos antigos que tentaram identificar
falsificações obviamente não tinham bancos de dados, sistemas de bancos de
dados e computadores para arrancar avaliações detalhadas de vocabulário e
estilo. Eles tinham de se basear fortemente em senso comum e intuição. Nós
temos isso, além de montes de dados.
Mas mesmo com nossa tecnologia
aperfeiçoada ainda restam dúvidas em muitos casos. Não há espaço aqui para uma
discussão detalhada de cada texto questionado do Novo Testamento. Em vez disso,
vou apresentar as razões mais convincentes para acreditar que Paulo não foi o
autor de seis das epístolas canônicas que são atribuídas a ele. Eu acredito que
todos esses livros são forjados. Seus autores talvez fossem bem-intencionados.
Talvez achassem que estavam fazendo a coisa certa. Podiam se considerar
plenamente justificados. Mas, qualquer que seja o caso, eles alegaram ser alguém
que não eram, presumivelmente para que seus pontos de vista fossem
considerados.
AS EPÍSTOLAS
PSEUDEPIGRÁFICAS (FORJADAS) DE PAULO
Em nenhum dos casos abordados aqui eu
poderei apresentar em profundidade todos os argumentos de um lado e de outro
referentes à autoria dessas epístolas.23 Para meus propósitos, basta explicar
algumas das principais razões usadas pelos estudiosos há muito tempo para
explicar por que essas epístolas não foram escritas por Paulo, embora se alegue
que tenham sido.
Como já mencionei 2 Tessalonicenses,
vou começar por aqui — de qualquer modo um bom começo, uma vez que é a mais
controversa das seis epístolas de Paulo cuja autoria é questionada. Há muitos
bons acadêmicos dos dois lados da polêmica (diferentemente, digamos, do caso das
Epístolas Pastorais ou de 2 Pedro, casos em que a imensa maioria dos estudiosos
críticos considera os textos pseudonímicos). Ainda assim, há fortes razões para
acreditar que Paulo não escreveu a epístola.
2 Tessalonicenses
Um dos motivos para a autoria de 2
Tessalonicenses ser altamentequestionada é que em termos de estilo literário e
vocabulário ela se parece muito com a carta que Paulo quase certamente
escreveu, 1 Tessalonicenses. De fato, é tão parecida com 1 Tessalonicenses que
alguns estudiosos argumentaram que seu autor pseudônimo a usou como modelo para
construir a epístola, mas acrescentando seu próprio conteúdo, que difere
significativamente do modelo. A similaridade das duas cartas revela um dos
problemas que os estudiosos enfrentam para definir se um documento antigo é ou
não forjado. Qualquer pessoa com habilidade para cometer uma fraude
naturalmente fará o máximo para que sua obra soe como a da pessoa que está
imitando. Alguns falsificadores são melhores nisso do que outros. Mas, quando
alguém é especialmente bom, é difícil mostrar o que ele fez, pelo menos com
base no estilo.
Mas por que alguém imitaria o estilo
de Paulo assumindo uma posição ideológica diferente da dele? É possível pensar
em muitas possíveis razões: talvez a situação nas igrejas tivesse mudado e o
autor quisesse lidar com os novos problemas evocando Paulo do túmulo, por assim
dizer; talvez o autor não compreendesse Paulo plenamente e tivesse se
equivocado em algumas de suas questões fundamentais (o próprio Paulo, por
exemplo, indica em sua epístola aos romanos que isso aconteceu em sua vida; ver
Romanos 3:8); talvez o autor acreditasse sinceramente que seus leitores não
haviam entendido a verdadeira mensagem de Paulo e quisesse corrigir esse
equívoco, sem saber que os leitores estavam certos.
Minha questão metodológica é a
seguinte: espera-se que uma boa imitação de Paulo soe como Paulo. Mas não se
espera que Paulo não soe como Paulo. A chave para considerar que 2
Tessalonicenses foi escrita por ele é que sua tese principal parece contradizer
o que o próprio Paulo disse em 1 Tessalonicenses.
2 Tessalonicenses é escrita para
contestar o ponto de vista, possivelmente baseado em uma carta forjada
anteriormente e hoje perdida, de que “o Dia do Senhor já está próximo” (2:2).
Os cristãos aos quais é endereçada parecem pensar que o fim dos tempos — o
retorno glorioso de Jesus — está logo ali. Esse autor escreve para corrigir
esse equívoco. E assim, no capítulo 2, o cerne da epístola, o autor indica que
deve haver uma sequência de acontecimentos antes que chegue o fim. Primeiro tem
de haver algum tipo de revolta geral contra Deus, e então surgirá um anticristo
que tomará seu lugar no Templo judaico, se declarando Deus. Esse fora da lei
fará todo tipo de milagres e maravilhas enganosos para desviar as pessoas
(2:1-12). Só depois que isso ocorrer, chegará o fim. O fim não chegou e não
chegará imediatamente; será precedido de sinais claros e óbvios, de modo que os
cristãos informados não sejam apanhados desprevenidos.
É uma mensagem poderosa e intrigante.
O problema é que não se encaixa bem no que o próprio Paulo disse em 1
Tessalonicenses.
Aquela carta também foi escrita para
abordar o que acontecerá no fim, quando Jesus retornar dos céus em glória (1
Tessalonicenses 4:13-18). Paulo escreveu a carta porque os membros da
congregação de Tessalônica tinham sido ensinados por Paulo que o fim era
iminente. Eles ficaram confusos e perturbados porque alguns membros de sua
igreja haviam morrido antes do retorno de Jesus. Será que teriam perdido a recompensa
de serem levados juntamente com Jesus no segundo advento? Paulo escreve para
tranquilizar os vivos de que os mortos serão os primeiros a serem arrebatados
no segundo advento de Jesus, e que também eles certamente receberão as bênçãos
que mereciam.
Paulo segue em frente, reiterando o
que disse quando estava entre eles (1 Tessalonicenses 5:1-2), que o advento de
Jesus seria repentino e inesperado, “como um ladrão à noite” (1 Tessalonicenses
5:2). Produziria “repentina destruição” (1 Tessalonicenses 5:3), de modo que os
tessalonicenses deveriam estar sempre preparados para não serem pegos de
surpresa.
Se Paulo estava falando sério em 1
Tessalonicenses, que o retorno de Jesus seria repentino e inesperado, é difícil
acreditar que poderia ter escrito o que é dito em 2 Tessalonicenses — que o fim
não será imediato e que haverá sinais claros para indicar que está próximo,
sinais que ainda não tinham surgido. O autor de 2 Tessalonicenses escreve: “Vos
dizia isto quando estava convosco” (2:5). Se isso fosse verdade, por que os
tessalonicenses teriam ficado chateados quando alguns membros de sua comunidade
morreram (1 Tessalonicenses)? Eles saberiam que o fim não era imediato, que
seriaprecedido do surgimento do anticristo e de outros sinais. Aparentemente,
Paulo não escreveu as duas epístolas. É possível que as altas expectativas dos
cristãos perto do fim do século I tenham levado um autor desconhecido nas
igrejas de Paulo a escrever 2 Tessalonicenses para acalmá-los um pouco, dizer a
eles que sim, o fim chegaria, mas que não seria imediatamente. Alguns eventos
precisariam acontecer antes.
Colossenses e Efésios
Os argumentos contra Paulo ter
escrito Colossenses e Efésios são semelhantes. Elas e 2 Tessalonicenses são
chamadas de epístolas “deuteropaulinas”, já que se acredita que não foram
escritas por Paulo, tornando sua presença no corpus paulino secundária — a raiz
da palavra “deutero”.
Na avaliação da maioria dos
estudiosos, o argumento para a pseudonímia de Colossenses, e especialmente de
Efésios, é ainda mais forte que no caso de 2 Tessalonicenses. Para começar, o
estilo literário das duas epístolas não é característico de Paulo. Esse é o
tipo de argumento que não pode ser demonstrado sem que se entre em detalhes
sobre como as frases gregas são construídas. Mas a ideia básica é que os
autores tanto de Colossenses quanto de Efésios tendem a escrever frases longas
e complexas, ao passo que Paulo não escreve assim. Colossenses 1:3-8 é uma
única frase em grego; é um brado, e muito distinto do tipo de frase que Paulo costumava
escrever. Efésios 1:3-14 é ainda mais longa, com 12 versículos — de modo algum
como em Paulo. Quase dez por cento das sentenças em Efésios têm mais de
cinquenta palavras; isso não é característico das epístolas inquestionáveis de
Paulo. Filipenses, com aproximadamente a mesma extensão, tem apenas uma frase
desse tamanho; Gálatas é muito maior, e também tem apenas uma.24
Também há muito material em
Colossenses (por exemplo, Colossenses 1:15-20) e Efésios, que soa
teologicamente mais avançado e desenvolvido do que costuma ser encontrado nas
epístolas de Paulo. Porém, mais importante do que isso é o fato de que há
pontos específicos nos quais esses autores, supondo que são pessoas diferentes,
e Paulo parecem discordar. Esses dois autores e Paulo querem falar sobre como
as coisas mudaram para aqueles queacreditam em Jesus e foram batizados. Mas o
que eles dizem sobre o tema diverge significativamente.
Nos primórdios da Igreja, crianças
não eram batizadas, apenas adultos após terem abraçado a fé em Cristo. Para
Paulo, o batismo era um acontecimento cerimonial importante, não meramente um
ato simbólico. Algo realmente acontecia quando uma pessoa era batizada. Ela se
unia misticamente a Cristo em sua morte.
Paulo apresenta essa ideia com muito
cuidado em sua epístola aos romanos. A ideia básica é apocalíptica. Há no mundo
forças do mal que escravizaram as pessoas e as afastaram de Deus, incluindo a
força do pecado. Esta é uma força demoníaca, não apenas algo que você faz de
errado. Todos são escravos dessa força, o que significa que todos estão
desalentadamente afastados de Deus. A única forma de escapar da força do pecado
é morrer. Por isso Cristo morreu, para libertar as pessoas do poder do pecado.
Então, para se livrar dessa força, escapar do poder do pecado, a pessoa precisa
morrer com Cristo. Isso acontece quando ela é batizada. Ao ser colocado sob a
água (as igrejas de Paulo praticavam a imersão completa), o crente é unido a
Cristo em sua morte, quando ele foi colocado no túmulo, e assim também morre
para as forças que controlam este mundo. As pessoas que foram batizadas já não
são escravas da força do pecado, pois “morreram com Cristo” (Romanos 6:1-6).
Paulo, porém, insistiu muito em que, embora as pessoas tenham morrido com
Cristo, ainda não tinham “renascido com ele”. Os seguidores de Jesus só seriam
ressuscitados com Cristo quando Ele retornasse dos céus em glória. Então
haveria uma ressurreição física. Aqueles que já estavam mortos com Cristo
seriam ressuscitados, e aqueles que na época ainda estivessem vivos
experimentariam uma gloriosa transformação de seus corpos na qual essa casca
mortal se tornaria imortal, não sujeita às dores da vida ou à possibilidade da
morte.
Sempre que Paulo falava sobre
ressuscitar com Cristo, era como um acontecimento futuro (ver, por exemplo,
Romanos 6 e 1 Coríntios 15). Nas igrejas de Paulo, alguns dos convertidos
nutriam uma opinião diferente, imaginando que tinham experimentado uma espécie
de ressurreição espiritualcom Cristo e já estavam “reinando” com Cristo no céu.
É a essa visão que Paulo se opõe com veemência em sua primeira carta aos
coríntios, cujo cerne e clímax está no fim da epístola, em que Paulo ressalta
que a ressurreição não é algo já experimentado, mas algo que virá, uma futura
ressurreição real e física do corpo, não uma passada ressurreição espiritual (1
Coríntios 15). Paulo é bastante enfático em Romanos 6:5 e 8 ao afirmar que
aqueles batizados morreram com Cristo, mas que ainda não ressuscitaram com ele
(observe que ele usa o tempo no futuro):
Porque se nos tornamos uma coisa só
com ele por morte semelhante à sua, seremos uma coisa só com ele também por
ressurreição semelhante à sua; (...) mas se morremos com Cristo temos fé de que
também viveremos com ele (grifos meus).
Mas Colossenses, e especialmente Efésios,
discordam. Eis o que o autor de Colossenses diz sobre a mesma questão:
Fostes sepultados com
ele no batismo, também com ele ressuscitastes, pela fé no poder de Deus, que o
ressuscitou dos mortos. (Colossenses 2:12)
Leitores despreocupados podem não perceber
muita diferença entre essas posições — afinal, em ambas o autor fala sobre
morrer e ressuscitar com Cristo. Mas a precisão era muito importante para
Paulo. A morte com Cristo era passado, mas a ressurreição decididamente não
era. Era futuro. Paulo dedicou uma boa parcela de 1 Coríntios a discutir esse
ponto, exatamente porque alguns dos convertidos tinham entendido completamente
errado, e ele estava muito aborrecido com isso. Colossenses, porém, assume
exatamente a posição à qual Paulo se opôs na redação da epístola 1 Coríntios.
Efésios é ainda mais enfática de que
Colossenses. Ao falar sobre a passada ressurreição espiritual, o autor diz, em
oposição a Paulo: “Deus (...) nos vivificou juntamente com Cristo (...) e com
ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesus” (2:5-6). Tudo
isso já tinha acontecido. Os crentes já estão reinando com Cristo. Foi isso que
alguns dos convertidos de Paulo em Corinto e os autores de Colossenses e
Efésios — também membros das igrejas de Paulo — entenderam errado.
Há outros pontos fundamentais nos
quais Colossenses e Efésios divergem do Paulo histórico, incluindo diferenças
de vocabulário e no modo como certos termos comuns a Paulo são usados nessas
epístolas. Mas minha intenção é dar pelo menos uma noção de por que a maioria
dos estudiosos críticos duvida de que Paulo tenha escrito qualquer desses
livros. Como 2 Tessalonicenses, eles parecem ter sido escritos após a morte de
Paulo — talvez uma ou duas décadas depois, por autores que faziam parte das igrejas
de Paulo e queriam se dirigir à comunidade cristã e aos problemas surgidos nela
desde a morte dele. Eles o fizeram fingindo ser o próprio apóstolo para enganar
seus leitores.
As epístolas pastorais Quanto às
epístolas pastorais de 1 e 2 Timóteo e Tito, há ainda menos polêmica acadêmica
do que nos casos de Colossenses e Efésios. Há muitos anos é consenso entre
estudiosos críticos na América do Norte, no Reino Unido e na Europa ocidental —
as principais regiões de pesquisa bíblica — que Paulo não escreveu esses
livros.
Os livros são chamados de Epístolas
Pastorais porque neles “Paulo” dá conselhos a Timóteo e Tito, supostamente
pastores em Éfeso e na ilha de Creta, sobre como conduzir o trabalho pastoral
nas suas igrejas. Estão repletos de conselhos pastorais sobre como os
seguidores de Paulo devem comandar uma organização eficiente, manter os falsos
mestres sob controle e escolher os líderes adequados para a igreja, entre
outros temas.
Paulo poderia ter escrito essas
cartas? Claro que teoricamente isso é possível, mas os argumentos contrários
parecem esmagadoramente convincentes para a maioria dos estudiosos.
Em geral, concorda-se que as três
cartas são da mesma pessoa. Quando se leem 1 Timóteo e Tito isso fica bastante
claro: elas abordam muitos dos mesmos temas, com frequência usando a mesma
linguagem, ou similar. Olivro 2 Timóteo é diferente em muitos sentidos, mas, se
você comparar suas linhas iniciais com as de 1 Timóteo, também parecem quase
idênticas.
Para alguns estudiosos fica claro que
esse autor não era Paulo, com base no vocabulário e no estilo literário das
epístolas. Há 848 palavras gregas diferentes usadas nessas cartas, das quais
306 não aparecem em nenhum momento nas supostamente escritas por Paulo no Novo
Testamento (mesmo incluindo 2 Tessalonicenses, Efésios e Colossenses). Isso
significa que mais de um terço das palavras são não paulinas. Cerca de dois
terços dessas palavras não paulinas são vocábulos usados por autores cristãos
do século II. Isso significa que o vocabulário dessas epístolas parece mais
elaborado, mais característico do desenvolvimento posterior do cristianismo.
Algumas das palavras significativas
usadas por esse autor são as mesmas de Paulo, mas ele as utiliza de formas
muito diferentes. Tomemos como exemplo a palavra “fé”. Para Paulo, fé
significava ter uma aceitação confiante da morte de Cristo para ser justo
perante Deus. É um termo relacional, significando algo como “confiança”. Nas
Epístolas Pastorais, a palavra significa outra coisa: o conjunto de crenças e
ideias que compõe a religião cristã (Tito 1:13). Não é um termo relacional, e
sim um termo que especifica um conjunto de ensinamentos cristãos, em cujo
conteúdo é preciso acreditar — o modo como a palavra passou a ser usada em
contextos cristãos posteriores.
Esse, portanto, é um exemplo de como
as Epístolas Pastorais parecem provir de um ambiente não paulino posterior.
Argumentos baseados em vocabulário são reconhecidamente perigosos quando se
tenta definir se dado autor escreveu determinado livro: as pessoas usam diferentes
vocabulários em circunstâncias diversas. Mas neste caso as diferenças parecem
bastante claras. Porém, um argumento ainda mais convincente é o fato de que
toda a situação da Igreja que as Epístolas Pastorais pressupõem parece diferir
do que sabemos sobre essa instituição na época de Paulo.
Temos uma boa ideia de como eram as
igrejas de Paulo a partir de epístolas, como 1 e 2 Coríntios, nas quais ele
debate o funcionamento interno de sua congregação, o modo como eram organizadas
e estruturadas e a forma como funcionavam. No momento em que chegamos às
Epístolas Pastorais, tudo mudou drasticamente.
As igrejas de Paulo não tinham uma
estrutura hierárquica. Não havia um líder ou um grupo de líderes no comando.
Havia comunidades de crentes que funcionavam de acordo com o Espírito de Deus
operando por intermédio de cada membro.
É importante ter em mente que Paulo
sustentava uma visão completamente apocalíptica. Ele acreditava que a
ressurreição de Jesus indicava que o fim dos tempos estava próximo. Chegaria a
qualquer momento, com Jesus reaparecendo dos céus; os mortos seriam erguidos e
os crentes vivos se transformariam em corpos imortais, vivendo para sempre no
futuro reino.
O que aconteceria nesse ínterim,
enquanto os crentes esperavam a vinda do Senhor? Eles deveriam se reunir em
comunidades para veneração, edificação, educação e apoio mútuo. Como essas
comunidades deveriam se organizar? Paulo achava que elas eram organizadas pelo
próprio Deus, por intermédio do Espírito Santo; isso é dito em 1 Coríntios 12-14.
Quando as pessoas eram batizadas na Igreja cristã, elas não apenas “morriam com
Cristo” como também recebiam o Espírito Santo, a presença de Deus na Terra
antes do fim. Nesse momento, todos recebiam uma espécie de “dom espiritual” que
podia ser usado para ajudar os outros na comunidade. Algumas pessoas recebiam o
dom do conhecimento, algumas o do ensino, outras o da doação, havia as que
faziam profecias a partir de Deus, as que faziam revelações em línguas
estrangeiras ou angelicais que não costumavam ser compreendidas (“falando em
línguas”), as que interpretavam essas revelações (a “interpretação de
línguas”). Esses dons tinham como objetivo o bem comum, de modo que a
comunidade de crentes pudesse funcionar em paz e harmonia nos últimos dias
antes do fim.
Porém, com frequência as coisas não
funcionavam como o planejado, como na igreja de Corinto. Na verdade, ela era
uma grande bagunça. Diferentes “líderes” espirituais se diziam mais
espiritualmente dotados do que outros e tinham seus próprios clãs de seguidores,
levando a divisões na Igreja. Essas divisões se tornaram absolutamente
impossíveis de administrar: alguns membros da Igreja estavam levando outros ao
tribunal e os processando. A imoralidade estava se disseminando: alguns dos
homens tinham encontros com prostitutas e se gabavam disso na igreja; um homem
coabitava com sua madrasta. Os serviços da igreja eram caóticos, já que os
“mais espirituais” entre os coríntios tinham decidido que o verdadeiro sinal da
espiritualidade era a habilidade de falar em línguas, e assim estavam
competindo uns com os outros no momento de veneração para ver quem fazia isso
mais alto e com maior frequência. Durante a refeição comunal semanal — uma
verdadeira refeição, não simplesmente comer uma hóstia e tomar um gole de vinho
—, alguns dos membros da igreja chegavam cedo, se empanturravam e se
embriagavam, e outros, obrigados a chegar tarde (possivelmente as classes
inferiores e os escravos, que é provável que trabalhassem mais), não tinham
nada para comer ou beber. Alguns membros da congregação estavam tão convencidos
de sua superioridade espiritual que alegavam já ter sido ressuscitados com
Cristo e já estarem reinando com ele nos lugares celestiais (semelhante à
alegação feita muito depois pelo autor de Efésios).
Paulo lida com os problemas na Igreja
se dirigindo à instituição como um todo, pedindo que todos os membros mudem de
comportamento. Por que ele não se dirige ao bispo da Igreja ou ao pastor-chefe?
Por que não escreve uma carta ao líder da Igreja para mandar que ele cuide de
suas tropas? Porque não havia líder na Igreja. Não havia bispos ou
pastores-chefes. Nas igrejas de Paulo, naquele breve tempo entre a ressurreição
de Jesus e a ressurreição de todos os crentes, a comunidade era governada pelo
Espírito de Deus agindo por intermédio de cada membro.25
O que acontece quando não há
hierarquia oficial, nenhum líder indicado, ninguém no comando? O que costuma
acontecer é o que aconteceu em Corinto. Uma boa dose de caos. Como esse caos
pode ser controlado? Alguém precisa assumir o comando. Com o tempo, foi isso o
que acabou acontecendo nas igrejas de Paulo. Depois que ele mesmo já tinha
saído de cena, suas igrejas assumiram o modelo imaginado, no qual havia alguém
no alto, alguém que dava as ordens, alguém que tinha como subordinados líderes
nomeados para manter o grupo unido, garantir que apenas os ensinamentos corretos
fossem passados adiante e disciplinar quem não se comportasse adequadamente.
Não há esse tipo de estrutura na
Igreja na época de Paulo. Há nas Epístolas Pastorais, que são cartas escritas
aos pastores-chefes das igrejas em duas das comunidades de Paulo. Essas
epístolas dão instruções para colocar os falsos mestres na linha; orientações
para nomear bispos, que evidentemente eram encarregados da supervisão espiritual
da Igreja, e diáconos, que cuidavam das esmolas e do atendimento às
necessidades físicas da comunidade; e admoestações sobre como as pessoas em
diferentes papéis sociais (maridos e mulheres, pais e filhos, senhores e
escravos) deveriam se comportar, de modo que a Igreja sobrevivesse a longo
prazo. Para Paulo, por outro lado, não haveria um longo prazo.
Ele achava que o fim chegaria
rapidamente. Mas não chegou, e suas igrejas tiveram de se organizar para
sobreviver. Elas fizeram isso, e as Epístolas Pastorais foram escritas no
contexto dessa nova situação, provavelmente duas décadas ou mais depois de
Paulo ter saído de cena. Na nova situação, um autor escreveu as três epístolas
alegando ser o apóstolo para que sua mensagem tivesse a autoridade dele. Mas
sua mensagem não era a de Paulo. Este tinha vivido em outra época.
QUEM ESCREVEU OS OUTROS
LIVROS DO NOVO TESTAMENTO?
Muito do que já foi dito também pode
ser dito sobre os livros remanescentes do Novo Testamento. Alguns deles são
anônimos, especificamente a Epístola aos Hebreus e os livros chamados de 1, 2 e
3 João. Como muitos autores já nos primórdios da Igreja perceberam, não havia
razão para imaginar que Paulo tivesse escrito Hebreus, mas ela acabou sendo
incluída no cânone por líderes da Igreja que argumentaram ser de Paulo. Na
verdade, o estilo literário é completamente diferente do de Paulo; os
principais temas da epístola estão ausentes das suas outras epístolas e o modo
de argumentação não é de modo algum o dele. E por que alguém deveria pensar que
Paulo a escreveu? Diferentemente de seus próprios textos, este livro é anônimo.
As chamadas epístolas de João também
não informam que foram escritas por João; as epístolas 2 e 3 são de alguém que
chama a si mesmo de “o ancião”, e o autor de 1 João não fala nada sobre si
mesmo. Poderia ser praticamente qualquer líder da igreja no final do século I.
Outros livros são homônimos. O autor
de Tiago não alega ser nenhum Tiago em particular, muito menos o Tiago que
segundo outras tradições teria sido o irmão de Jesus. O livro de Judas informa
ter sido escrito por um Judas que é o “irmão de Tiago”, então isso pode ser
interpretado como uma alegação de ser irmão de Jesus, já que segundo o
Evangelho de Marcos dois de seus irmãos eram chamados de Tiago e Judas. Mas é
estranho, caso ele queira ser visto como o irmão de Jesus, não se apresentar e
dizer isso para conferir ainda mais autoridade a seu livro. Mas Judas e Tiago
eram nomes comuns na Antiguidade judaica e na Igreja cristã. Cristãos
posteriores que estabeleceram o cânone alegaram que esses dois eram parentes de
Jesus, mas eles mesmos nunca dizem isso.
Também é difícil acreditar que essas
epístolas possam ter sido escritas por dois camponeses de classe baixa falantes
de aramaico da Galileia (cujo irmão mais famoso não era conhecido pela sua
capacidade de escrever, quanto mais de compor um complicado tratado em grego).
O argumento aqui é o mesmo apresentado anteriormente em relação ao Evangelho
segundo João: teoricamente é possível que os irmãos de Jesus — criados no
interior da Galileia rural, ganhando a vida com trabalho braçal, não tendo em
nenhum momento nem tempo nem dinheiro para uma educação — decidissem
posteriormente adquirir uma educação grega e fazer cursos de composição
literária, para serem capazes de escrever esses livros densamente retóricos e
relativamente sofisticados. Mas parece um tanto improvável.
O mesmo raciocínio se aplica às
epístolas 1 e 2 Pedro. Mas esses livros, assim como as epístolas
deutero-paulinas (2 Tessalonicenses, Colossenses e Efésios) e as Epístolas
Pastorais, na verdade trazem a informação de que foram escritos por alguém que
não os escreveu. Eles são pseudônimos no sentido pesado do termo: parecem ser
fraudes.
É certo que quem quer que tenha
escrito 2 Pedro não escreveu também 1Pedro: os estilos literários são
inteiramente diferentes. Já nos primórdios da Igreja havia estudiosos cristãos
argumentando que Pedro não escreveu 2 Pedro. Hoje há ainda menos controvérsia
sobre essa questão do que sobre as Pastorais. O livro chamado 2 Pedro foi
escrito muito depois da morte de Pedro, por alguém incomodado pelo fato de
algumas pessoas estarem negando que o fim estivesse próximo (é compreensível
que surgissem incrédulos com o passar do tempo); esse autor queria livrar essas
pessoas de suas noções equivocadas e fez isso alegando ser ninguém menos que
Simão Pedro, o braço direito de Jesus.
O livro chamado de 1 Pedro gera
discussões mais acaloradas entre os acadêmicos do que 2 Pedro. Mas, novamente,
qual é a probabilidade de que um simples pescador da Galileia rural de repente
desenvolvesse habilidades em composição literária em grego? Às vezes se
argumenta que alguém escreveu a epístola para ele, como por exemplo Silvano,
identificado na epístola (5:12). Mas a própria epístola não diz isso. E, se
alguém a escreveu, não seria ele o verdadeiro autor, e não Pedro? O uso
sofisticado do Antigo Testamento nesse livro sugere que quem o escreveu era
muito educado e muito bem formado, diferentemente de Simão Pedro. E é
importante notar que temos um grande número de livros dos primórdios do
cristianismo que alegam ter sido escritos por Pedro e que não foram — como, por
exemplo, um Evangelho de Pedro, uma epístola de Pedro a Tiago, vários “Atos” de
Pedro e três livros do Apocalipse de Pedro. Forjar livros em seu nome era uma
grande indústria.
CONCLUSÃO: QUEM
ESCREVEU A BÍBLIA?
Agora retorno à minha pergunta
original: quem escreveu a Bíblia? Dos 27 livros do Novo Testamento, apenas oito
quase certamente foram escritos pelos autores aos quais são tradicionalmente
atribuídos: as sete inquestionáveis epístolas de Paulo e o Apocalipse de João,
que poderia ser classificado como homônimo, já que não alega ter sido escrito
por um João específico; isso era reconhecido até mesmo por alguns autores dos
primórdios da Igreja.
Meus pontos de vista sobre os autores
do Novo Testamento não são radicais na academia. Na verdade, há discussões
entre os acadêmicos sobre este ou aquele livro. Alguns estudiosos muito bons
acreditam que Paulo escreveu 2 Tessalonicenses, que Tiago, o irmão de Jesus,
escreveu Tiago ou que Pedro escreveu 1 Pedro. Mas a maioria dos estudiosos
críticos há muito duvida dessas atribuições, e quase não se discutem alguns dos
livros do Novo Testamento, como 1 Timóteo e 2 Pedro. Esses livros não foram
escritos por seus supostos autores.
Dúvidas sobre a autoria de textos que
se tornaram o cânone foram levantadas nos primórdios da Igreja, mas na época
moderna, a partir do século XIX, os estudiosos fortaleceram os argumentos com
raciocínios convincentes. Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os
documentos forjados do Novo Testamento de fraudes — afinal, é da Bíblia que
estamos falando. Mas a realidade é que, por qualquer definição do termo, é isso
o que eles são. Um grande número de livros dos primórdios da Igreja foi escrito
por autores que alegaram falsamente ser apóstolos para enganar os leitores e
fazê-los aceitar seus livros e os pontos de vista que representavam. Essa visão
de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é ensinada em
praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por todo o
Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão
ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas
instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o
que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério.
E por que isso não é mais conhecido?
Por que as pessoas nos bancos das igrejas — para não falar das pessoas nas ruas
— não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom quanto o meu.
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