👉 Quem escreveu a Bíblia? (2)

 

Quem escreveu a Bíblia? (2)

Nota: Este é o 4ª capitulo do livro: QUEM JESUS FOI? QUEM JESUS NÃO FOI? - Veja neste blog.

 Quem escreveu a Bíblia? 

Quem escreveu a Bíblia? Alunos em seu primeiro curso de nível superior sobre a Bíblia costumam achar surpreendente que não saibamos quem escreveu a maioria dos livros do Novo Testamento. Como é possível? Esses livros não trazem anexados os nomes dos autores? Mateus, Marcos, Lucas, João, as epístolas de Paulo, 1 e 2 Pedro e 1, 2 e 3 João? Como nomes errados podem estar ligados a livros das Escrituras? Não são a Palavra de Deus? Se alguém escreveu um livro alegando ser Paulo sabendo muito bem que não era, isso não é uma mentira? As Escrituras podem conter mentiras?

Quando cheguei ao seminário estava totalmente armado e pronto para o ataque à minha fé praticado por estudiosos liberais da Bíblia que iriam insistir nessas ideias malucas. Como fui criado em círculos conservadores, eu sabia que essas visões eram comuns em lugares como o Seminário Teológico de Princeton. Mas o que eles sabiam? Bando de liberais.

Com o tempo, o que foi assustador para mim foi ver como havia poucas provas reais das tradicionais atribuições de autoria que eu sempre considerara indiscutíveis e como havia tantas evidências de que muitas dessas atribuições eram erradas. Então os liberais realmente tinham algo a dizer e evidências para sustentar; eles não estavam apenas agindo com pensamento destrutivo. Havia alguns livros, como os Evangelhos, que tinham sido escritos anonimamente e apenas mais tarde atribuídos a certos autores que provavelmente não os escreveram (apóstolos e amigos dos apóstolos). Outros livros tinham sido escritos por autores que alegavam cinicamente ser alguém que não eram.

Neste capítulo pretendo apresentar essas evidências.

QUEM ESCREVEU OS EVANGELHOS?

Embora evidentemente não seja o tipo de coisa que os pastores costumem contar às suas congregações, há mais de um século existe um forte consenso de que muitos dos livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão ligados a eles. Mas, se isso é verdade, quem estão os escreveu?

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES:

OS EVANGELHOS COMO RELATOS DE TESTEMUNHAS

Como já vimos, os Evangelhos estão repletos de pequenas e grandes discrepâncias. Por que há tantas diferenças entre os quatro livros? Eles são chamados de Mateus, Marcos, Lucas e João porque se convencionou acreditar que tinham sido escritos por Mateus, um discípulo que era coletor de impostos; João, o “discípulo amado” mencionado no quarto Evangelho; Marcos, o secretário do discípulo Pedro; e Lucas, o companheiro de viagem de Paulo. Essa tradição remonta a um século após os livros terem sido escritos.

Mas, se Mateus e João foram escritos por discípulos reais de Jesus, por que são tão diferentes, em todos os níveis? Por que contêm tantas contradições? Por que apresentam visões tão fundamentalmente distintas sobre quem Jesus era? Em Mateus, Jesus passa a existir quando é concebido, ou nasce, de uma virgem; em João, Jesus é o Verbo de Deus encarnado que estava com Ele no princípio e por intermédio de quem o universo foi criado. Em Mateus, não há uma só palavra sobre o fato de Jesus ser Deus; em João, ele é exatamente isso. Em Mateus, Jesus prega o futuro Reino de Deus e quase nunca fala sobre si mesmo (e nunca que é divino); em João, Jesus prega quase exclusivamente sobre si mesmo, especialmente sua divindade. Em Mateus, Jesus se recusa a operar milagres para provar sua identidade; em João, essa é praticamente a única razão para ele fazer milagres.

Será que dois dos seguidores reais de Jesus poderiam ter compreensões tão radicalmente diferentes sobre quem ele era? É possível. Duas pessoas que trabalharam no governo de George W. Bush podem muito bem ter visões radicalmente diferentes sobre ele (embora eu duvide de que qualquer uma delas o chamasse de divino). Isso levanta uma importante questão metodológica que quero apresentar antes de discutir as evidências para a autoria dos Evangelhos.

Por que surgiu a tradição de que esses livros foram escritos por apóstolos e por companheiros dos apóstolos? Em parte de modo a garantir aos leitores que eles foram escritos por testemunhas oculares e companheiros das testemunhas oculares. Uma testemunha ocular merece a confiança de que iria contar a verdade sobre o que realmente aconteceu na vida de Jesus. Mas a realidade é que não é possível confiar em que as testemunhas ofereçam relatos historicamente precisos. Elas nunca mereceram confiança e ainda não merecem. Se testemunhas oculares sempre fizessem relatos historicamente precisos, não teríamos a necessidade de tribunais. Quando precisássemos descobrir o que realmente aconteceu quando um crime foi cometido, bastaria perguntar a alguém. Casos reais demandam muitas testemunhas, porque seus depoimentos diferem entre si. Se duas testemunhas em um tribunal divergissem tanto quanto Mateus e João, imagine como seria difícil chegar a um veredicto.

A verdade é que todos os Evangelhos foram escritos anonimamente, e nenhum dos autores alega ser uma testemunha. Há nomes ligados aos títulos dos Evangelhos (“o Evangelho segundo Mateus”), mas esses títulos são acréscimos posteriores aos próprios livros, conferidos por editores e escribas para informar aos leitores quem os editores achavam que eram as autoridades por trás das diferentes versões. Que os títulos não são originalmente dos Evangelhos é algo que fica claro com uma simples reflexão. Quem escreveu Mateus não o chamou de “Evangelho segundo Mateus”. As pessoas que deram esse título a ele estão dizendo a você quem, na opinião delas, o escreveu. Autores nunca dão a seus livros o título de “segundo fulano”.1

Além disso, o Evangelho de Mateus é inteiramente escrito na terceira pessoa, falando sobre o que “eles” — Jesus e os discípulos — estavam fazendo, nunca sobre o que “nós” — Jesus e o restante de nós — estávamos fazendo. Mesmo quando o Evangelho fala sobre Mateus ser chamado a se tornar um discípulo, fala sobre “ele”, não sobre “eu”. Leia você mesmo o relato (Mateus 9:9). Não há nada nele que leve a suspeitar de que o autor fala de si mesmo.

Isso fica ainda mais claro em João. No fim do Evangelho, o autor fala do“discípulo amado”: “Este é o discípulo que dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu: e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro” (João 21:24). Observe como o autor se diferencia de sua fonte de informações, “o discípulo que dá testemunho” e ele mesmo: “sabemos que o seu testemunho é verdadeiro”. Ele/nós: este autor não é o discípulo.

Ele alega ter recebido algumas de suas informações do discípulo. Quanto aos outros Evangelhos, Marcos não seria um discípulo, mas um companheiro de Pedro, e Lucas era um companheiro de Paulo, que também não era um discípulo. Mesmo que eles tivessem sido discípulos, isso não garantiria a objetividade ou a veracidade de suas histórias. Mas na verdade nenhum dos autores foi testemunha, e nenhum deles alega ter sido. Quem, então, escreveu esses livros?

OS AUTORES DOS EVANGELHOS

Uma boa forma de começar é com uma pergunta básica: o que sabemos sobre os seguidores de Jesus? Nossa mais antiga e melhor fonte de informação sobre eles são os próprios Evangelhos, juntamente com o livro dos Atos. Os outros livros do Novo Testamento, como os textos de Paulo, só se referem de passagem aos 12 apóstolos, e essas referências tendem a confirmar o que podemos extrair dos próprios Evangelhos. Fora do Novo Testamento temos apenas lendas produzidas muitas décadas e séculos depois — por exemplo, os famosos Atos de João, que narram suas milagrosas empreitadas missionárias após a ressurreição. Nenhum historiador acredita que esses Atos sejam historicamente confiáveis. 2

Aprendemos nos Evangelhos que os discípulos de Jesus, como ele, eram camponeses de classe baixa da Galileia rural. A maioria deles — certamente Simão Pedro, André, Tiago e João — era diarista (pescadores e assemelhados); Mateus seria coletor de impostos, mas não é clara sua posição na organização desse trabalho: se era uma espécie de empreiteiro que trabalhava diretamente com as autoridades governamentais para garantir o faturamento dos impostos ou, mais provavelmente, o tipo de pessoa que esmurrava sua porta para obrigá-lo a pagar. Nesse último caso, nada indica que ele pudesse ter precisado de muita educação.

O mesmo certamente pode ser dito dos outros. Temos algumas informações sobre o que era ser um camponês de classe baixa nas regiões rurais da Palestina no século I. Significava, para começar, que você quase certamente era analfabeto. O próprio Jesus era altamente excepcional, no sentido de que é claro que sabia ler (Lucas 4:16-20), mas nada indica que soubesse escrever. Na Antiguidade, essas eram habilidades distintas, e muitas pessoas que sabiam ler eram incapazes de escrever.

Quantos sabiam ler? O analfabetismo era disseminado por todo o império romano. Na melhor fase, talvez 10% da população fosse grosseiramente alfabetizada. E esses 10% seriam das classes abastadas — pessoas de classe alta que tinham tempo e dinheiro para receber uma educação (e seus escravos e empregados eram ensinados a ler para melhor servir a seus mestres). Todos os outros trabalhavam desde a infância e não podiam sustentar o tempo e o custo de uma educação.3

Nada nos Evangelhos ou em Atos indica que os seguidores de Jesus soubessem ler, quanto mais escrever. Na verdade, há um relato em Atos no qual Pedro e João são identificados como “iletrados” (Atos 4:13) — a antiga palavra para analfabetos. Como judeus da Galileia, os seguidores de Jesus, como o próprio Jesus, falariam aramaico. Sendo do interior, provavelmente não teriam nenhum conhecimento de grego; se tivessem, seria extremamente grosseiro, já que eles passavam seu tempo com outros camponeses analfabetos falantes de aramaico tentando conseguir o pão de cada dia.

Em síntese, quem eram os discípulos de Jesus? Camponeses analfabetos de classe baixa e falantes de aramaico da Galileia.

E quem eram os autores dos Evangelhos? Embora todos tenham se mantido anônimos, podemos descobrir algumas coisas sobre eles nos livros que escreveram. E o que descobrimos contradiz completamente o que sabemos sobre os discípulos de Jesus. Os autores dos Evangelhos eram cristãos altamente educados, falantes de língua grega, que provavelmente viviam fora da Palestina.

É bastante óbvio que eram pessoas muito educadas de língua grega. Embora de tempos em tempos alguns estudiosos tenham pensado que os Evangelhospudessem ter sido escritos originalmente em aramaico, hoje, em função de muitas razões linguísticas técnicas, é quase unânime a opinião de que todos eles foram escritos em grego. Como disse, na melhor das hipóteses apenas cerca de 10% da população do império romano sabia ler, uma porcentagem ainda menor conseguia escrever frases, e ainda menos pessoas podiam construir narrativas rudimentares, e pouquíssimas eram capazes de criar obras literárias extensas como os Evangelhos. Na verdade, os Evangelhos não são os livros mais refinados surgidos no império — longe disso. Mas são narrativas coerentes escritas por autores altamente educados que sabiam como construir uma história e atingir seus objetivos literários com elegância. Quem quer fossem esses autores, eram cristãos de uma geração posterior, com dotes incomuns. Os estudiosos discutem onde viveram e trabalharam, mas sua ignorância da geografia palestina e dos costumes judaicos sugere que criaram suas obras em outro lugar do império — possivelmente em uma grande área urbana onde poderiam ter recebido uma educação decente e onde haveria uma comunidade cristã relativamente grande.4

Esses autores não eram camponeses da Galileia de classe baixa, analfabetos que falavam aramaico. Mas não seria possível que, digamos, João tenha escrito o Evangelho já em idade avançada? Que quando jovem ele fosse um trabalhador braçal analfabeto que falava aramaico — um pescador desde o momento em que atingiu a idade suficiente para puxar uma rede —, mas que escreveu o Evangelho já idoso?

Imagino que seja possível. Isso significaria que depois da ressurreição de Jesus ele teria decidido ir à escola e se alfabetizar. Ele conheceu os princípios da leitura, os rudimentos da escrita e aprendeu grego bem o bastante para se tornar absolutamente fluente. Quando se tornou idoso, ele teria dominado a composição e seria capaz de escrever um Evangelho. É provável? Parece difícil. João e os outros seguidores de Jesus tinham outra coisa em mente após experimentar a ressurreição de Jesus. Para começar, eles tinham de converter o mundo e comandar a Igreja.

O TESTEMUNHO DE PÁPIAS

Apesar das evidências de que nenhum dos discípulos escreveu um Evangelho, temos de lidar com a tradição dos primórdios da Igreja que indica que alguns deles o fizeram. Como lidar com essa tradição?

Sua mais antiga fonte, um antigo Pai da Igreja chamado Pápias, trata apenas de dois antigos Evangelhos cristãos, Marcos e Mateus. Pápias é um personagem enigmático que escreveu uma obra em cinco volumes chamada Exposição dos oráculos do Senhor. Estudiosos dataram a obra em algum ponto entre 110 e 140 d.C., de quarenta a setenta anos após o primeiro Evangelho ter sido escrito.5 O livro de Pápias não sobreviveu: uma série de autoridades cristãs posteriores considerou as visões de Pápias ofensivas ou insuficientemente sofisticadas, de modo que não foi extensivamente copiado para a posteridade.6 Tudo o que sabemos sobre a obra vem de citações feitas por posteriores Pais da igreja.

Ainda assim, Pápias com frequência foi apresentado como uma fonte útil para estabelecer a tradição dos primórdios da Igreja, em parte pelo modo como ele diz ter recebido suas informações. Em algumas das citações preservadas de Exposição, ele afirma ter conversado pessoalmente com cristãos que tinham conhecido um grupo de pessoas identificadas por ele como “os anciãos”, que conheciam alguns dos discípulos, e que estava repassando informações que recebera deles. Assim, ao ler Pápias, temos acesso a informações de terceira ou quarta mão de pessoas que conheciam companheiros dos discípulos.

Uma passagem muito citada de Pápias (registrada por Eusébio) descreve esse tipo de informação de terceira ou quarta mão referente a Marcos e Mateus como autores dos Evangelhos.

Isso é o que o ancião costumava dizer: “Quando Marcos era o intérprete [tradutor?] de Pedro, escreveu precisamente tudo o que se lembrava das palavras e ações do Senhor — mas não em ordem. Pois ele não tinha ouvido o Senhor nem o acompanhado. Mas depois, como eu indiquei, ele acompanhou Pedro, que costumava adaptar os ensinamentos dele para suas necessidades, não produzindo, como deveria, uma composição organizada dos ditos do Senhor. E, assim, Marcos não feznada de errado ao escrever algumas das questões como se recordava delas. Pois ele só tinha um objetivo: não deixar de fora nada que ouvira nem incluir qualquer falsidade entre elas.”

Ele continua, falando sobre Mateus:

E assim Mateus compôs os ditos na língua hebraica, e cada um os interpretou [traduziu?] segundo o melhor de sua capacidade (Eusébio, História da Igreja, 3, 39).

Isso não é uma prova de que Mateus realmente escreveu Mateus e de que Marcos realmente escreveu Marcos?

Há algumas complicações muito sérias na tentativa de saber o valor das observações de Pápias. Vamos começar com Mateus. A princícipio, no caso de Mateus — diferentemente de Marcos —, nós não sabemos qual é a fonte de informação de Pápias, ou mesmo se ele tinha uma fonte. É de terceira mão? Quarta mão? Quinta mão? Se Pápias estava escrevendo, digamos, em 120 ou 130, seria cerca de quarenta ou cinquenta anos após Mateus ter sido escrito anonimamente. O Evangelho estava circulando anonimamente havia décadas. Não é possível que a tradição que Pápias apresenta tenha sido criada nesse meio-tempo?

Nesse sentido, é importante observar que as duas informações concretas que Pápias nos dá sobre Mateus não são verdadeiras para o “nosso” Mateus. Nosso Mateus não é apenas uma coletânea de ditos de Jesus, e o Evangelho certamente foi escrito em grego, não em hebraico.7 Será que Pápias simplesmente recebeu uma informação errada? Ou está falando sobre algum outro livro escrito por Mateus — por exemplo, uma coletânea de ditos de Jesus — de que já não dispomos?

Se Pápias não é confiável em relação a Mateus, será confiável quanto a Marcos? Nesse caso ele indica que estamos recebendo informações de terceira ou quarta mão.8 E, mais uma vez, um dos pontos que ele enfatizacertamente está errado: ele alega que um dos dois objetivos de Marcos era contar tudo o que tinha ouvido de Pedro sobre Jesus. Simplesmente não há como isso ser verdade. O Evangelho de Marcos leva cerca de duas horas para ser lido em voz alta. Após Pedro ter passado todos aqueles meses, ou anos, com Jesus, e depois de Marcos ter escutado Pedro pregar sobre Jesus dia e noite, devemos imaginar que Marcos só ouviu duas horas de informações importantes?

Seja como for, Pápias não parece nos dar o tipo de informação em que possamos confiar muito. Quanto a isso, devo dizer que os estudiosos quase unanimamente rejeitaram todo o restante do que Pápias teria dito nas referências sobreviventes à sua obra. Vejamos outra informação de quarta mão:

Assim, os anciãos que viram João, o discípulo do Senhor, lembram-se de tê-lo ouvido dizer como o Senhor costumava pregar naquela época, dizendo: “Está chegando o dia em que chegarão as parreiras, cada uma com dez mil galhos, e em cada galho haverá dez mil ramos. E de fato, em um único ramo haverá dez mil brotos; e em cada broto haverá dez mil cachos; e em cada cacho, dez mil uvas, e cada uma, quando esmagada, irá produzir 25 medidas de vinho. E quando cada santo agarrar um cacho, outro irá gritar: ‘Sou melhor, me tome, abençoe o senhor por mim’” (Eusébio, História da Igreja, 3.39.1).

Ninguém acha que Jesus realmente tenha dito isso. Ou que João, o discípulo de Jesus, tenha afirmado que Jesus disse isso. Será que os anciãos que conheceram João realmente disseram isso?9

Se os estudiosos tendem a descartar o que Pápias diz em praticamente todos os outros casos, por que algumas vezes apelam ao seu testemunho para provar que temos uma antiga tradição que relaciona Mateus a um de nossos Evangelhos e Marcos a outro? Por que esses estudiosos aceitam parte do que Pápias disse, mas não tudo? Suspeito de que seja porque eles precisam deembasamento para seus próprios pontos de vista (Mateus realmente escreveu Mateus) e decidiram confiar em Pápias quando ele confirma suas interpretações e não confiar quando ele não confirma.

Acho que o resultado desse rápido estudo de Pápias é que ele transmite histórias que ouviu e as atribui a pessoas que conheceram outras pessoas que as contaram. Mas, quando ele pode ser verificado, aparenta estar errado. É possível confiar nele nos momentos em que não pode ser confirmado? Se você tem um amigo que quase sempre está errado quando lhe dá as indicações para chegar a lugares com os quais você está familiarizado, vai confiar nele quando lhe fornecer a direção para algum lugar no qual você nunca esteve?

Não há registro de Pápias ter dito algo sobre Lucas ou João. Não sei por quê. Mas o resumo é o seguinte: não temos qualquer referência sólida sobre os autores de nossos quatro Evangelhos em que possamos confiar (por exemplo, que o autor realmente está se referindo ao nosso Mateus e ao nosso Marcos) até quase o fim do século II — quase cem anos depois de os livros terem começado a circular anonimamente.

OS TESTEMUNHOS DE IRINEU E OUTROS

A primeira referência aos quatro Evangelhos está nos escritos de Irineu, um dos Pais da Igreja. Em um ataque em cinco volumes às heresias cristãs, ele nomeia os quatro Evangelhos da Igreja como Mateus, Marcos, Lucas e João. Não surpreende que na época de Irineu (180 d.C.) os Pais da Igreja quisessem saber quem tinha escrito esses livros anônimos. Como veremos em capítulo posterior, havia muitos outros Evangelhos circulando nos primórdios da Igreja — a maioria deles na verdade alegando terem sido escritos por discípulos de Jesus, como Pedro, Tomé e Filipe. Como decidir quais Evangelhos seriam considerados apostólicos? Era um problema espinhoso, já que a maioria desses “outros” Evangelhos representava perspectivas teológicas consideradas heréticas por gente como Irineu. Como alguém poderia saber quais eram os verdadeiros ensinamentos de Jesus? Apenas aceitando Evangelhos que tivessem sido escritos por seus seguidores ou por companheiros íntimos de seus seguidores.

Mas os Evangelhos considerados confiáveis no círculo de Irineu eram originalmente anônimos. A solução para o problema de validar esses textos era óbvia: eles precisavam ser atribuídos a autoridades reais estabelecidas. Havia décadas circulava uma tradição de que Mateus tinha escrito um Evangelho; então aquele que é hoje nosso primeiro Evangelho passou a ser aceito como esse livro. Achava-se que Marcos tinha sido amigo de Pedro: nosso segundo Evangelho passou a ser associado a ele, disponibilizando a visão de Pedro da vida de Jesus. O autor de nosso terceiro Evangelho escreveu dois volumes, o segundo dos quais, Atos, retratava Paulo como um herói. Os líderes da Igreja insistiram em que ele tinha de ser escrito por um companheiro de Paulo, portanto o atribuíram a Lucas.10 E, para terminar, o quarto Evangelho, que diz explicitamente não ter sido escrito por uma testemunha ocular, ainda assim foi atribuído a uma, João, um dos discípulos mais próximos de Jesus (ele na verdade nunca é citado no quarto Evangelho). Nenhuma dessas atribuições remonta aos próprios autores. E nenhum dos Evangelhos foi escrito por um dos seguidores de Jesus, que eram todos galileus de classe baixa que falavam aramaico, não cristãos falantes de grego altamente educados de uma geração posterior.

E, assim, temos uma resposta para nossa grande questão: por que esses Evangelhos são tão diferentes uns dos outros? Eles não foram escritos por companheiros de Jesus ou por companheiros de seus companheiros. Foram escritos décadas depois por pessoas que não conheceram Jesus, viviam em um país diferente ou em países diferentes do de Jesus e falavam uma língua diferente da dele. Eles são diferentes uns dos outros em parte porque seus autores também não conheciam uns aos outros, em certa medida tinham fontes de informação distintas (embora Mateus e Lucas sejam baseados em Marcos) e porque modificaram suas histórias em função de suas próprias compreensões de quem Jesus era.

O fato de que os Evangelhos na verdade não foram escritos pelos apóstolos não os torna incomuns no Novo Testamento. Muito pelo contrário: os torna típicos. A maioria dos livros do Novo Testamento leva nomes de pessoas que não os escreveram. Isso é bem conhecido dos estudiosos desde o séculopassado e é amplamente ensinado nos principais seminários e faculdades de teologia por todos os Estados Unidos. Consequentemente, a maioria dos pastores também sabe disso. Mas para muitas pessoas nas ruas e nos bancos de igreja isso é “novidade”.

HÁ FALSIFICAÇÕES NO NOVO TESTAMENTO?

Dos 27 livros do Novo Testamento, apenas oito certamente remontam ao autor cujo nome carregam: as sete epístolas consensuais de Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemon) e o Apocalipse de João (embora não tenhamos certeza de quem é esse João). Os outros 19 livros se encaixam em três grupos.

• Textos erroneamente atribuídos. Como já vimos, os Evangelhos provavelmente são equivocadamente atribuídos. O discípulo João não escreveu João, e Mateus não escreveu Mateus. Outros livros anônimos foram equivocadamente atribuídos a alguém famoso. O livro dos Hebreus não identifica Paulo como seu autor, e quase certamente não foi escrito por Paulo.11 Mas acabou sendo aceito no cânone da Igreja (ver capítulo 7), porque os Pais da Igreja chegaram à conclusão de que havia sido escrita por Paulo.

• Textos homônimos. A palavra “homonímia” significa “ter o mesmo nome”. Um “texto homônimo” é aquele escrito por uma pessoa que tem o mesmo nome de alguém famoso. O livro de Tiago, por exemplo, sem dúvida foi escrito por alguém chamado Tiago, mas o autor não alega ser um Tiago específico. Era um nome extremamente comum. Líderes da Igreja posteriores aceitaram o livro como parte das Escrituras alegando que esse Tiago era Tiago, irmão de Jesus. O livro propriamente dito não traz essa alegação.

• Escritos pseudepigráficos. Alguns livros do Novo Testamento foram escritos em nome de pessoas que na verdade não os escreveram. Os estudiosos sabem disso há mais de um século. A palavra que nomeia essefenômeno é “pseudepigrafia”, literalmente “livro cuja autoria é falsa”. Os estudiosos não são inteiramente precisos no uso desse termo, e tendem a empregá-lo por não ter a conotação pejorativa associada à palavra “fraude”. Mas, qualquer que seja o termo escolhido, os estudiosos da Bíblia há muito argumentam que há livros do Novo Testamento cujos autores intencionalmente alegaram ser alguém que não eles mesmos.

PSEUDEPIGRAFIA NO MUNDO ANTIGO

Para compreender essa situação, temos de saber mais sobre autoria e falsa autoria no mundo antigo.

Definições

Para começar, temos de ser precisos em nossa terminologia. O termo “pseudepigrafia” pode se referir a qualquer texto que tenha um nome falso ligado a ele. Podem ser falsas atribuições ou textos cujos autores falsamente aleguem ser outra pessoa.

Há dois tipos de textos falsamente atribuídos. Alguns são livros escritos anonimamente que leitores, editores ou escribas posteriores alegaram, equivocadamente, terem sido escritos por alguém famoso; outros são livros escritos anonimamente por alguém que por acaso tem o mesmo nome de alguém famoso. No mundo antigo, a maioria das pessoas não tinha sobrenome, de modo que “João” poderia se referir a qualquer um entre centenas ou milhares de pessoas. Se um autor chamado João escreveu um livro e depois alguém disse que esse João na verdade era João, filho de Zebedeu (como alguns alegaram no caso do livro do Apocalipse), seria uma falsa atribuição com base em homonímia.12

Também há dois tipos de textos “pseudônimos”, textos escritos sob um “nome falso”. Um nome literário é apenas um pseudônimo. Quando Samuel Clemens escreveu As aventuras de Huckleberry Finn e assinou como Mark Twain, não pretendia enganar ninguém; estava simplesmente escolhendo um nome diferente sob o qual publicar. Há bem poucos casos desse tipo de pseudonímia no mundo antigo, embora ele eventualmente ocorra. O historiador grego Xenofonte escreveu sua famosa obra Anábase sob umpseudônimo, “Temistógenes”. Mais frequentemente na Antiguidade encontramos outros tipos de textos pseudônimos, nos quais o autor usa o nome de alguém bastante conhecido para levar seu público a pensar que ele realmente é aquela pessoa. Esse tipo de texto pseudônimo é uma fraude literária.

A prevalência da fraude no mundo antigo

A fraude literária era um fenômeno comum no mundo antigo. Sabemos disso porque os próprios autores da Antiguidade falam muito sobre isso. É possível encontrar discussões sobre fraude nos textos de alguns dos autores mais conhecidos do mundo antigo. Entre os gregos e romanos há referências e debates sobre fraude em autores conhecidos como Heródoto, Cícero, Quintiliano, Marcial, Suetônio, Galeno, Plutarco, Filastrato e Diógenes Laércio. Entre os escritores cristãos há discussões nos textos de personalidades conhecidas, como Irineu, Tertuliano, Orígenes, Eusébio, Jerônimo, Rufino e Agostinho.

Alguns estudiosos do Novo Testamento algumas vezes argumentam que a fraude era tão comum no mundo antigo que ninguém a levava a sério: como comumente o logro podia ser facilmente identificado, na verdade nunca tinha a intenção de enganar ninguém. 13 Passei os últimos anos estudando antigas discussões sobre fraude e cheguei à conclusão de que as únicas pessoas que usam esse argumento são aquelas que na verdade não leram as fontes antigas.

As fontes antigas levavam a fraude a sério. Elas a condenam quase por unanimidade, frequentemente com firmeza. Quão amplamente ela era condenada? Por mais estranho que pareça, a prática da fraude algumas vezes é condenada até mesmo em documentos fraudulentos. Além disso, a alegação de que ninguém chegava a ser enganado é completamente equivocada. As pessoas eram enganadas o tempo todo. Por isso as fraudes eram escritas — para enganar as pessoas.

Não preciso fazer aqui um relato detalhado das antigas discussões sobre fraude; há muitos estudos sobre o problema, embora infelizmente a maioria das obras mais minuciosas esteja escrita em alemão.14 Mas posso exemplificar contando uma história particularmente reveladora.

Na Roma do século II, havia um famoso médico e escritor chamado Galeno. Ele conta a história de que um dia, quando caminhava pelas ruas de Roma, passou pela banca de um vendedor de livros. Viu dois homens discutindo sobre um livro à venda, escrito sob o nome de... Galeno! Um dos homens insistia em que o livro realmente era desse autor, e o outro era igualmente eloquente em sua alegação de que isso não era possível, já que o estilo era completamente diferente do de Galeno. Desnecessário dizer que isso aqueceu o coração do escritor, já que ele de fato não tinha escrito o livro. Mas ele ficou um tanto perturbado por alguém estar tentando vender um livro usando seu nome. Então foi para casa e escreveu um livrinho chamado Como reconhecer os livros de Galeno. O material foi preservado até nossos dias.

A fraude era amplamente praticada, tinha como objetivo enganar e com frequência dava certo. Que não era uma prática aceita fica claro nos termos usados pelos autores antigos para se referir a ela. Duas das palavras gregas mais comuns para uma fraude são pseudon, mentira, e nothon, filho bastardo. Essa última é tão dura e ofensiva em grego quanto em português. Frequentemente é justaposta ao termo gnesion, que significa algo como legítimo ou autêntico.

Motivações para produzir fraudes

Fica claro, com base em um grande número de obras antigas, que a intenção da fraude literária era levar os leitores a pensar que alguém que não o real autor tinha escrito o livro. Mas o que motivava os autores a fazer isso? Por que eles simplesmente não escreviam livros usando os próprios nomes? Há muitas motivações para autores pagãos, judeus e cristãos forjarem textos literários.

Eis dez delas:

1 — Gerar lucros. As duas grandes bibliotecas do mundo antigo ficavam nas cidades de Alexandria e Pérgamo. Na Antiguidade, adquirir livros para a coleção de uma biblioteca era muito diferente do que é hoje. Como os livros eram copiados à mão, diferentes cópias do mesmo livro podiam diferir uma da outra, algumas vezes consideravelmente, de modo que as bibliotecas mais importantes preferiam ter o original de um livro em vez de uma cópiaposterior que poderia conter erros. Segundo Galeno, isso levava pessoas empreendedoras a criar cópias “originais” de clássicos para vender às bibliotecas de Alexandria e Pérgamo. Se os bibliotecários pagassem em dinheiro vivo por cópias originais de tratados do filósofo Aristóteles, você ficaria impressionado com a quantidade de cópias originais de tratados do autor que começariam a aparecer. Pelo que posso dizer, o lucro não teve nenhum efeito nos antigos textos cristãos, já que eles só passaram a ser vendidos no mercado muito tempo depois.

2 — Para se opor a um inimigo. Algumas vezes uma obra literária era fraudada para criar uma imagem ruim de um inimigo pessoal. Um historiador da filosofia, o grego Diógenes Laércio, indica que um filósofo chamado Diotemo forjou e depois distribuiu cinquenta cartas obscenas em nome de sua nêmese filosófica, Epicuro. Isso obviamente não foi uma maravilha para a reputação de Epicuro. Eu algumas vezes pensei se algo assim acontece com uma das fraudes mais peculiares dos primórdios da cristandade. O caçador de heresias do século IV Epifânio indicou ter lido um livro supostamente usado por um grupo de hereges cristãos altamente imorais conhecido como fibionitas. Esse livro, As grandes questões de Maria, supostamente conteria relatos bizarros sobre Jesus e Maria Madalena nos quais Jesus leva Maria para uma montanha alta e em sua presença tira uma mulher do lado do seu corpo (assim como Deus fez Eva a partir da costela de Adão), depois começa a ter um intercurso sexual com ela. Contudo, ao chegar ao orgasmo, ele sai de dentro dela, coleta seu sêmen com a mão e o come, dizendo a Maria: “Isto temos de fazer, para viver.” Compreensivelmente, Maria desmaia na mesma hora (Epifânio, Panarion, livro 26). Essa estranha história não é encontrada em nenhuma outra fonte que não Epifânio, conhecido por inventar muitas de suas “informações” sobre hereges. Eu muitas vezes pensei se ele mesmo não teria inventado todo o relato e alegado tê-lo encontrado em um dos livros dos fibionitas. Nesse caso, ele teria forjado um livro fibionita em nome de Maria, de modo a criar uma péssima imagem para seus rivais heréticos.

3 — Para contestar determinado ponto de vista. Se eu estiver certo quanto a Epifânio e As grandes questões de Maria, então parte de sua motivaçãoteria sido contestar um ponto de vista, a heresia fibionita, que ele considerava nociva. Motivações semelhantes podem ser encontradas em muitas outras fraudes cristãs. Além de 1 e 2 Coríntios, do Novo Testamento, temos um 3 Coríntios que não pertence ao Novo Testamento.15 Esse livro claramente foi escrito no século II, já que contesta certas visões heréticas conhecidas naquela época, sugerindo que Jesus não era um ser humano de carne e osso e que seus seguidores não seriam ressuscitados em carne. Segundo esse autor, eles iriam ressuscitar, como afirma em termos bem claros — alegando ser o apóstolo Paulo. Pode parecer estranho contestar um ensinamento falso assumindo uma falsa identidade, mas aí está. Aconteceu muito nas falsificações dos primórdios da tradição cristã.

4 — Defender a ideia de que sua própria tradição tenha inspiração divina. Há uma antiga coletânea de textos conhecida como os oráculos sibilinos.16 Sibila seria uma antiga profetisa pagã, inspirada pelo deus grego Apolo. Contudo, nossos oráculos preservados foram em sua maioria escritos por judeus. Neles a profetisa, supostamente vivendo muito antes dos eventos que prevê, debate os acontecimentos futuros da história — e está sempre certa, já que o verdadeiro autor vive depois das ocorrências — e confirma a validade de importantes crenças e práticas judaicas. Não querendo ficar para trás, cristãos posteriores inseriram em alguns desses oráculos referências ao advento de Cristo, de modo que essa profetisa pagã passou a prever corretamente a vinda do Messias. Existe testemunho melhor da verdade divina da religião de alguém do que profecias supostamente feitas pela porta-voz inspirada dos seus inimigos?

5 — Por humildade? Alguns estudiosos do Novo Testamento costumam alegar que integrantes de certas escolas filosóficas escreviam tratados com o nome de seus mestres como um gesto de humildade, já que suas ideias não passavam de uma extensão do que seus próprios mentores tinham dito. Isso seria válido particularmente para um grupo de filósofos conhecidos como pitagóricos, assim chamados por causa do grande filósofo grego Pitágoras. Contudo, há uma grande polêmica sobre se os filósofos pitagóricos que alegavam ser Pitágoras o faziam por humildade: não há nada escrito nessesentido em seus próprios textos, apenas nos textos de autores de séculos depois.17 Os pitagóricos poderiam ser inspirados por outros motivos.

6 — Por amor a um personagem com autoridade. De forma similar, temos um autor da Antiguidade que alegou ter falsificado sua obra como um ato de amor e reverência. Esse é um caso muito incomum, no qual um falsificador foi apanhado com a boca na botija. A história é contada no século III pelo Pai Tertuliano, que diz que as conhecidas histórias de Paulo e sua discípula Tecla, famosa como um modelo de discípulo na Idade Média, foram forjadas pelo líder de uma igreja da Ásia Menor, pego em flagrante e consequentemente destituído de seu cargo. Em sua defesa, o falsificador alegou que tinha escrito sua obra “por amor a Paulo”.18 Não é exatamente claro o que ele queria dizer com isso, mas pode significar que sua devoção ao apóstolo o levara a inventar uma história em nome de Paulo, a fim de apresentar o que ele considerava seus ensinamentos e pontos de vista mais importantes. Na verdade, os ensinamentos e pontos de vista encontrados nos Atos de Paulo e Tecla preservados não são absolutamente o que Paulo pregava: entre outras coisas, lemos nessa narrativa que Paulo proclamou que a vida eterna não seria concedida àqueles que acreditavam na morte e na ressurreição de Jesus, como o próprio Paulo anunciou, mas aos que seguissem Jesus em sua abstinência sexual — mesmo sendo casados.

7 — Para ver se era possível enganar. Houve alguns antigos falsificadores que criaram sua obra apenas para ver se conseguiriam enganar os outros. O termo técnico para isso é “mistificação”. O caso mais famoso, contado por Diógenes Laércio, é o de um autor chamado Dioniso que decidiu enganar um de seus maiores inimigos, Heráclides de Ponto, falsificando uma peça em nome do famoso autor de tragédias Sófocles. Heráclides foi enganado e citou a peça como autêntica. Dioniso depois revelou o logro — mas Heráclides se recusou a acreditar. Dioniso então mostrou que, pegando as primeiras letras de várias linhas do texto e as escrevendo como palavras (acrósticos), elas formavam o nome do namorado de Dioniso. Heráclides alegou não passar de coincidência, até Dioniso mostrar que mais adiante no texto havia dois outros acrósticos, um com a mensagem “macaco velho não cai em armadilha; ah,sim, ele acaba caindo, mas leva tempo”, e outro que dizia: “Heráclides ignora as letras e não se envergonha de sua ignorância.”19 Não conheço casos seguros de mistificação entre antigas falsificações cristãs.

8 — Para complementar a tradição. Especialmente nos primórdios do cristianismo houve muitos casos nos quais os falsificadores forneciam textos “confiáveis” complementando o que se acreditava faltar na tradição. Por exemplo: o autor de Colossenses 4:17 (Paulo?) orienta seus leitores a também lerem a epístola enviada aos cristãos da cidade de Laodiceia. Contudo, não temos uma epístola autêntica de Paulo aos laodiceus. Não surpreende, então, que tenham surgido no século II duas dessas cartas, forjadas em nome de Paulo, para preencher a lacuna.20 Outro exemplo: sabe-se que os Evangelhos do Novo Testamento não dizem praticamente nada sobre o começo da vida de Jesus. Isso perturbou alguns dos primeiros cristãos, e no século II começaram a surgir relatos sobre Jesus quando menino. O mais famoso deles teria sido escrito por alguém chamado Tomé, um nome que significa “o gêmeo”. Isso pode ser uma referência a uma tradição dos cristãos da Síria segundo a qual um irmão de Jesus, Judas, na verdade era seu gêmeo, “Judas Tomé”. Seja como for, é uma narrativa intrigante das aventuras do jovem Jesus, começando com a idade de cinco anos.21

9 — Para contestar outras fraudes. Um dos fenômenos menos estudados nas primeiras fraudes cristãs é a produção de textos falsos com o objetivo de contestar posições defendidas em outras fraudes. Segundo o Pai da Igreja Eusébio, no início do século IV foi produzida uma fraude pagã anticristã chamada Atos de Pilatos. Aparentemente era uma narrativa do julgamento e da execução de Jesus do ponto de vista romano, para mostrar que Jesus merecia plenamente o que recebeu. Foi um documento bastante conhecido: o imperador romano Maximino Daia decretou que ele tinha de ser lido pelos meninos que aprendiam as letras (Eusébio, História da Igreja 9:5). Contudo, pouco depois surgiu um documento cristão também conhecido como Atos de Pilatos. Nesse relato, Pilatos é absolutamente simpático a Jesus e tenta fervorosamente defendê-lo como inocente de todas as acusações. 22 A versão cristã parece ter sido escrita para contestar a pagã, e o fenômeno decontrafalsificação cristã aparenta ter sido razoavelmente disseminado. Havia no século IV um texto intitulado Constituições Apostólicas, que teria sido escrito pelos 12 apóstolos após a morte de Jesus, embora eles já estivessem mortos havia três séculos na época em que o texto foi produzido. Entre as muitas características marcantes desse livro está sua insistência em que os cristãos não lessem obras que alegassem falsamente ter sido escritas por apóstolos (Constituições Apostólicas 6:16). Há algo similar até mesmo no Novo Testamento: o autor de 2 Tessalonicenses alerta seus leitores a não se preocuparem com uma epístola supostamente escrita por Paulo (isto é, uma carta forjada em nome de Paulo, 2 Tessalonicenses 2:2). Mas, como logo veremos, há bons motivos para acreditar que a própria 2 Tessalonicenses é um livro pseudepigráfico, supostamente de autoria de Paulo, mas na verdade não escrito por ele.

10 — Dar autoridade aos pontos de vista de alguém. Essa é a motivação que considero, de longe, a mais comum nas antigas fraudes cristãs. Nos primeiros séculos da Igreja havia muitos cristãos que defendiam numerosos pontos de vista, a maioria dos quais passou a ser considerada heresia. Mas todos esses cristãos diziam representar os pontos de vista de Jesus e de seus discípulos. Como mostrar que suas visões eram apostólicas para, digamos, convencer potenciais convertidos? O modo mais fácil era produzir um livro, alegar que tinha sido escrito por um apóstolo e colocar o material em circulação. Todos os grupos de primeiros cristãos tinham acesso a escritos supostamente de autoria dos apóstolos. A maioria desses escritos era de fraudes.

Antigas fraudes cristãs

Ninguém pode racionalmente duvidar de que muito da antiga literatura cristã é falsificada. Fora do Novo Testamento, por exemplo, temos uma longa série de outros Evangelhos supostamente (mas não verdadeiramente) escritos por conhecidos líderes dos primórdios da Igreja: Pedro, Filipe, Tomé, Tiago, o irmão de Jesus, e Nicodemos, entre outros; temos muitos Atos apostólicos, como os Atos de João e o de Paulo e Tecla; temos epístolas, como a carta aos laodiceus, 3 Coríntios, uma troca de cartas entre Paulo e o filósofo romano Sêneca e uma carta supostamente escrita por Pedro a Tiago para se opor a Paulo; e temos uma série de apocalipses, como o de Pedro (que quase entrou para o cânone) e o de Paulo. Vamos estudar alguns desses outros textos no capítulo 6.

Os antigos autores cristãos eram ocupados, e uma de suas atividades comuns era forjar documentos nos nomes dos apóstolos. Isso nos leva à grande pergunta: alguma dessas falsificações entrou para o Novo Testamento?

De um ponto de vista histórico, não há motivo para duvidar de que algumas falsificações poderiam ter entrado para o cânone. Temos numerosas falsificações fora do Novo Testamento. Por que não dentro dele? Não acho que seja possível argumentar que os líderes da Igreja, a partir do fim do século II, saberiam quais livros realmente haviam sido escritos por apóstolos e quais não. Como poderiam saber? Ou, talvez mais importante, como nós podemos saber?

Pode soar estranho, mas hoje é mais fácil identificarmos falsificações antigas do que era para as pessoas no mundo antigo. Os métodos que usamos são os mesmos delas. Como Galeno, nós avaliamos o estilo de escrita utilizado em uma. É o mesmo estilo literário empregado pelo autor em outros textos? Se não, quão diferente ele é? Ligeiramente diferente ou extremamente diferente? É possível que um autor escreva em estilos diferentes? Ou o estilo tem algumas características completamente distintas daquelas que ele usa em outros textos, especialmente naqueles aspectos estilísticos nos quais não pensamos muito enquanto estamos escrevendo (que tipos de conjunção usamos, como construímos frases complexas, como usamos particípios e infinitivos)? Também avaliamos as escolhas de palavras: há um vocabuláriopadrão que o autor emprega e que está ausente daquele texto? Ou o vocabulário empregado naquele livro só é encontrado em fases posteriores do grego antigo? As ideias teológicas, os pontos de vista e as perspectivas do livro são mais importantes. Os do livro em questão são os mesmos de outros textos do autor, ou pelo menos basicamente semelhantes? Ou são marcadamente diferentes?

Fazemos esse tipo de avaliação agora porque temos mais recursos. Críticos antigos que tentaram identificar falsificações obviamente não tinham bancos de dados, sistemas de bancos de dados e computadores para arrancar avaliações detalhadas de vocabulário e estilo. Eles tinham de se basear fortemente em senso comum e intuição. Nós temos isso, além de montes de dados.

Mas mesmo com nossa tecnologia aperfeiçoada ainda restam dúvidas em muitos casos. Não há espaço aqui para uma discussão detalhada de cada texto questionado do Novo Testamento. Em vez disso, vou apresentar as razões mais convincentes para acreditar que Paulo não foi o autor de seis das epístolas canônicas que são atribuídas a ele. Eu acredito que todos esses livros são forjados. Seus autores talvez fossem bem-intencionados. Talvez achassem que estavam fazendo a coisa certa. Podiam se considerar plenamente justificados. Mas, qualquer que seja o caso, eles alegaram ser alguém que não eram, presumivelmente para que seus pontos de vista fossem considerados.

AS EPÍSTOLAS PSEUDEPIGRÁFICAS (FORJADAS) DE PAULO

Em nenhum dos casos abordados aqui eu poderei apresentar em profundidade todos os argumentos de um lado e de outro referentes à autoria dessas epístolas.23 Para meus propósitos, basta explicar algumas das principais razões usadas pelos estudiosos há muito tempo para explicar por que essas epístolas não foram escritas por Paulo, embora se alegue que tenham sido.

Como já mencionei 2 Tessalonicenses, vou começar por aqui — de qualquer modo um bom começo, uma vez que é a mais controversa das seis epístolas de Paulo cuja autoria é questionada. Há muitos bons acadêmicos dos dois lados da polêmica (diferentemente, digamos, do caso das Epístolas Pastorais ou de 2 Pedro, casos em que a imensa maioria dos estudiosos críticos considera os textos pseudonímicos). Ainda assim, há fortes razões para acreditar que Paulo não escreveu a epístola.

2 Tessalonicenses

Um dos motivos para a autoria de 2 Tessalonicenses ser altamentequestionada é que em termos de estilo literário e vocabulário ela se parece muito com a carta que Paulo quase certamente escreveu, 1 Tessalonicenses. De fato, é tão parecida com 1 Tessalonicenses que alguns estudiosos argumentaram que seu autor pseudônimo a usou como modelo para construir a epístola, mas acrescentando seu próprio conteúdo, que difere significativamente do modelo. A similaridade das duas cartas revela um dos problemas que os estudiosos enfrentam para definir se um documento antigo é ou não forjado. Qualquer pessoa com habilidade para cometer uma fraude naturalmente fará o máximo para que sua obra soe como a da pessoa que está imitando. Alguns falsificadores são melhores nisso do que outros. Mas, quando alguém é especialmente bom, é difícil mostrar o que ele fez, pelo menos com base no estilo.

Mas por que alguém imitaria o estilo de Paulo assumindo uma posição ideológica diferente da dele? É possível pensar em muitas possíveis razões: talvez a situação nas igrejas tivesse mudado e o autor quisesse lidar com os novos problemas evocando Paulo do túmulo, por assim dizer; talvez o autor não compreendesse Paulo plenamente e tivesse se equivocado em algumas de suas questões fundamentais (o próprio Paulo, por exemplo, indica em sua epístola aos romanos que isso aconteceu em sua vida; ver Romanos 3:8); talvez o autor acreditasse sinceramente que seus leitores não haviam entendido a verdadeira mensagem de Paulo e quisesse corrigir esse equívoco, sem saber que os leitores estavam certos.

Minha questão metodológica é a seguinte: espera-se que uma boa imitação de Paulo soe como Paulo. Mas não se espera que Paulo não soe como Paulo. A chave para considerar que 2 Tessalonicenses foi escrita por ele é que sua tese principal parece contradizer o que o próprio Paulo disse em 1 Tessalonicenses.

2 Tessalonicenses é escrita para contestar o ponto de vista, possivelmente baseado em uma carta forjada anteriormente e hoje perdida, de que “o Dia do Senhor já está próximo” (2:2). Os cristãos aos quais é endereçada parecem pensar que o fim dos tempos — o retorno glorioso de Jesus — está logo ali. Esse autor escreve para corrigir esse equívoco. E assim, no capítulo 2, o cerne da epístola, o autor indica que deve haver uma sequência de acontecimentos antes que chegue o fim. Primeiro tem de haver algum tipo de revolta geral contra Deus, e então surgirá um anticristo que tomará seu lugar no Templo judaico, se declarando Deus. Esse fora da lei fará todo tipo de milagres e maravilhas enganosos para desviar as pessoas (2:1-12). Só depois que isso ocorrer, chegará o fim. O fim não chegou e não chegará imediatamente; será precedido de sinais claros e óbvios, de modo que os cristãos informados não sejam apanhados desprevenidos.

É uma mensagem poderosa e intrigante. O problema é que não se encaixa bem no que o próprio Paulo disse em 1 Tessalonicenses.

Aquela carta também foi escrita para abordar o que acontecerá no fim, quando Jesus retornar dos céus em glória (1 Tessalonicenses 4:13-18). Paulo escreveu a carta porque os membros da congregação de Tessalônica tinham sido ensinados por Paulo que o fim era iminente. Eles ficaram confusos e perturbados porque alguns membros de sua igreja haviam morrido antes do retorno de Jesus. Será que teriam perdido a recompensa de serem levados juntamente com Jesus no segundo advento? Paulo escreve para tranquilizar os vivos de que os mortos serão os primeiros a serem arrebatados no segundo advento de Jesus, e que também eles certamente receberão as bênçãos que mereciam.

Paulo segue em frente, reiterando o que disse quando estava entre eles (1 Tessalonicenses 5:1-2), que o advento de Jesus seria repentino e inesperado, “como um ladrão à noite” (1 Tessalonicenses 5:2). Produziria “repentina destruição” (1 Tessalonicenses 5:3), de modo que os tessalonicenses deveriam estar sempre preparados para não serem pegos de surpresa.

Se Paulo estava falando sério em 1 Tessalonicenses, que o retorno de Jesus seria repentino e inesperado, é difícil acreditar que poderia ter escrito o que é dito em 2 Tessalonicenses — que o fim não será imediato e que haverá sinais claros para indicar que está próximo, sinais que ainda não tinham surgido. O autor de 2 Tessalonicenses escreve: “Vos dizia isto quando estava convosco” (2:5). Se isso fosse verdade, por que os tessalonicenses teriam ficado chateados quando alguns membros de sua comunidade morreram (1 Tessalonicenses)? Eles saberiam que o fim não era imediato, que seriaprecedido do surgimento do anticristo e de outros sinais. Aparentemente, Paulo não escreveu as duas epístolas. É possível que as altas expectativas dos cristãos perto do fim do século I tenham levado um autor desconhecido nas igrejas de Paulo a escrever 2 Tessalonicenses para acalmá-los um pouco, dizer a eles que sim, o fim chegaria, mas que não seria imediatamente. Alguns eventos precisariam acontecer antes.

Colossenses e Efésios

Os argumentos contra Paulo ter escrito Colossenses e Efésios são semelhantes. Elas e 2 Tessalonicenses são chamadas de epístolas “deuteropaulinas”, já que se acredita que não foram escritas por Paulo, tornando sua presença no corpus paulino secundária — a raiz da palavra “deutero”.

Na avaliação da maioria dos estudiosos, o argumento para a pseudonímia de Colossenses, e especialmente de Efésios, é ainda mais forte que no caso de 2 Tessalonicenses. Para começar, o estilo literário das duas epístolas não é característico de Paulo. Esse é o tipo de argumento que não pode ser demonstrado sem que se entre em detalhes sobre como as frases gregas são construídas. Mas a ideia básica é que os autores tanto de Colossenses quanto de Efésios tendem a escrever frases longas e complexas, ao passo que Paulo não escreve assim. Colossenses 1:3-8 é uma única frase em grego; é um brado, e muito distinto do tipo de frase que Paulo costumava escrever. Efésios 1:3-14 é ainda mais longa, com 12 versículos — de modo algum como em Paulo. Quase dez por cento das sentenças em Efésios têm mais de cinquenta palavras; isso não é característico das epístolas inquestionáveis de Paulo. Filipenses, com aproximadamente a mesma extensão, tem apenas uma frase desse tamanho; Gálatas é muito maior, e também tem apenas uma.24

Também há muito material em Colossenses (por exemplo, Colossenses 1:15-20) e Efésios, que soa teologicamente mais avançado e desenvolvido do que costuma ser encontrado nas epístolas de Paulo. Porém, mais importante do que isso é o fato de que há pontos específicos nos quais esses autores, supondo que são pessoas diferentes, e Paulo parecem discordar. Esses dois autores e Paulo querem falar sobre como as coisas mudaram para aqueles queacreditam em Jesus e foram batizados. Mas o que eles dizem sobre o tema diverge significativamente.

Nos primórdios da Igreja, crianças não eram batizadas, apenas adultos após terem abraçado a fé em Cristo. Para Paulo, o batismo era um acontecimento cerimonial importante, não meramente um ato simbólico. Algo realmente acontecia quando uma pessoa era batizada. Ela se unia misticamente a Cristo em sua morte.

Paulo apresenta essa ideia com muito cuidado em sua epístola aos romanos. A ideia básica é apocalíptica. Há no mundo forças do mal que escravizaram as pessoas e as afastaram de Deus, incluindo a força do pecado. Esta é uma força demoníaca, não apenas algo que você faz de errado. Todos são escravos dessa força, o que significa que todos estão desalentadamente afastados de Deus. A única forma de escapar da força do pecado é morrer. Por isso Cristo morreu, para libertar as pessoas do poder do pecado. Então, para se livrar dessa força, escapar do poder do pecado, a pessoa precisa morrer com Cristo. Isso acontece quando ela é batizada. Ao ser colocado sob a água (as igrejas de Paulo praticavam a imersão completa), o crente é unido a Cristo em sua morte, quando ele foi colocado no túmulo, e assim também morre para as forças que controlam este mundo. As pessoas que foram batizadas já não são escravas da força do pecado, pois “morreram com Cristo” (Romanos 6:1-6). Paulo, porém, insistiu muito em que, embora as pessoas tenham morrido com Cristo, ainda não tinham “renascido com ele”. Os seguidores de Jesus só seriam ressuscitados com Cristo quando Ele retornasse dos céus em glória. Então haveria uma ressurreição física. Aqueles que já estavam mortos com Cristo seriam ressuscitados, e aqueles que na época ainda estivessem vivos experimentariam uma gloriosa transformação de seus corpos na qual essa casca mortal se tornaria imortal, não sujeita às dores da vida ou à possibilidade da morte.

Sempre que Paulo falava sobre ressuscitar com Cristo, era como um acontecimento futuro (ver, por exemplo, Romanos 6 e 1 Coríntios 15). Nas igrejas de Paulo, alguns dos convertidos nutriam uma opinião diferente, imaginando que tinham experimentado uma espécie de ressurreição espiritualcom Cristo e já estavam “reinando” com Cristo no céu. É a essa visão que Paulo se opõe com veemência em sua primeira carta aos coríntios, cujo cerne e clímax está no fim da epístola, em que Paulo ressalta que a ressurreição não é algo já experimentado, mas algo que virá, uma futura ressurreição real e física do corpo, não uma passada ressurreição espiritual (1 Coríntios 15). Paulo é bastante enfático em Romanos 6:5 e 8 ao afirmar que aqueles batizados morreram com Cristo, mas que ainda não ressuscitaram com ele (observe que ele usa o tempo no futuro):

Porque se nos tornamos uma coisa só com ele por morte semelhante à sua, seremos uma coisa só com ele também por ressurreição semelhante à sua; (...) mas se morremos com Cristo temos fé de que também viveremos com ele (grifos meus).

Mas Colossenses, e especialmente Efésios, discordam. Eis o que o autor de Colossenses diz sobre a mesma questão:

Fostes sepultados com ele no batismo, também com ele ressuscitastes, pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos. (Colossenses 2:12)

Leitores despreocupados podem não perceber muita diferença entre essas posições — afinal, em ambas o autor fala sobre morrer e ressuscitar com Cristo. Mas a precisão era muito importante para Paulo. A morte com Cristo era passado, mas a ressurreição decididamente não era. Era futuro. Paulo dedicou uma boa parcela de 1 Coríntios a discutir esse ponto, exatamente porque alguns dos convertidos tinham entendido completamente errado, e ele estava muito aborrecido com isso. Colossenses, porém, assume exatamente a posição à qual Paulo se opôs na redação da epístola 1 Coríntios.

Efésios é ainda mais enfática de que Colossenses. Ao falar sobre a passada ressurreição espiritual, o autor diz, em oposição a Paulo: “Deus (...) nos vivificou juntamente com Cristo (...) e com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesus” (2:5-6). Tudo isso já tinha acontecido. Os crentes já estão reinando com Cristo. Foi isso que alguns dos convertidos de Paulo em Corinto e os autores de Colossenses e Efésios — também membros das igrejas de Paulo — entenderam errado.

Há outros pontos fundamentais nos quais Colossenses e Efésios divergem do Paulo histórico, incluindo diferenças de vocabulário e no modo como certos termos comuns a Paulo são usados nessas epístolas. Mas minha intenção é dar pelo menos uma noção de por que a maioria dos estudiosos críticos duvida de que Paulo tenha escrito qualquer desses livros. Como 2 Tessalonicenses, eles parecem ter sido escritos após a morte de Paulo — talvez uma ou duas décadas depois, por autores que faziam parte das igrejas de Paulo e queriam se dirigir à comunidade cristã e aos problemas surgidos nela desde a morte dele. Eles o fizeram fingindo ser o próprio apóstolo para enganar seus leitores.

As epístolas pastorais Quanto às epístolas pastorais de 1 e 2 Timóteo e Tito, há ainda menos polêmica acadêmica do que nos casos de Colossenses e Efésios. Há muitos anos é consenso entre estudiosos críticos na América do Norte, no Reino Unido e na Europa ocidental — as principais regiões de pesquisa bíblica — que Paulo não escreveu esses livros.

Os livros são chamados de Epístolas Pastorais porque neles “Paulo” dá conselhos a Timóteo e Tito, supostamente pastores em Éfeso e na ilha de Creta, sobre como conduzir o trabalho pastoral nas suas igrejas. Estão repletos de conselhos pastorais sobre como os seguidores de Paulo devem comandar uma organização eficiente, manter os falsos mestres sob controle e escolher os líderes adequados para a igreja, entre outros temas.

Paulo poderia ter escrito essas cartas? Claro que teoricamente isso é possível, mas os argumentos contrários parecem esmagadoramente convincentes para a maioria dos estudiosos.

Em geral, concorda-se que as três cartas são da mesma pessoa. Quando se leem 1 Timóteo e Tito isso fica bastante claro: elas abordam muitos dos mesmos temas, com frequência usando a mesma linguagem, ou similar. Olivro 2 Timóteo é diferente em muitos sentidos, mas, se você comparar suas linhas iniciais com as de 1 Timóteo, também parecem quase idênticas.

Para alguns estudiosos fica claro que esse autor não era Paulo, com base no vocabulário e no estilo literário das epístolas. Há 848 palavras gregas diferentes usadas nessas cartas, das quais 306 não aparecem em nenhum momento nas supostamente escritas por Paulo no Novo Testamento (mesmo incluindo 2 Tessalonicenses, Efésios e Colossenses). Isso significa que mais de um terço das palavras são não paulinas. Cerca de dois terços dessas palavras não paulinas são vocábulos usados por autores cristãos do século II. Isso significa que o vocabulário dessas epístolas parece mais elaborado, mais característico do desenvolvimento posterior do cristianismo.

Algumas das palavras significativas usadas por esse autor são as mesmas de Paulo, mas ele as utiliza de formas muito diferentes. Tomemos como exemplo a palavra “fé”. Para Paulo, fé significava ter uma aceitação confiante da morte de Cristo para ser justo perante Deus. É um termo relacional, significando algo como “confiança”. Nas Epístolas Pastorais, a palavra significa outra coisa: o conjunto de crenças e ideias que compõe a religião cristã (Tito 1:13). Não é um termo relacional, e sim um termo que especifica um conjunto de ensinamentos cristãos, em cujo conteúdo é preciso acreditar — o modo como a palavra passou a ser usada em contextos cristãos posteriores.

Esse, portanto, é um exemplo de como as Epístolas Pastorais parecem provir de um ambiente não paulino posterior. Argumentos baseados em vocabulário são reconhecidamente perigosos quando se tenta definir se dado autor escreveu determinado livro: as pessoas usam diferentes vocabulários em circunstâncias diversas. Mas neste caso as diferenças parecem bastante claras. Porém, um argumento ainda mais convincente é o fato de que toda a situação da Igreja que as Epístolas Pastorais pressupõem parece diferir do que sabemos sobre essa instituição na época de Paulo.

Temos uma boa ideia de como eram as igrejas de Paulo a partir de epístolas, como 1 e 2 Coríntios, nas quais ele debate o funcionamento interno de sua congregação, o modo como eram organizadas e estruturadas e a forma como funcionavam. No momento em que chegamos às Epístolas Pastorais, tudo mudou drasticamente.

As igrejas de Paulo não tinham uma estrutura hierárquica. Não havia um líder ou um grupo de líderes no comando. Havia comunidades de crentes que funcionavam de acordo com o Espírito de Deus operando por intermédio de cada membro.

É importante ter em mente que Paulo sustentava uma visão completamente apocalíptica. Ele acreditava que a ressurreição de Jesus indicava que o fim dos tempos estava próximo. Chegaria a qualquer momento, com Jesus reaparecendo dos céus; os mortos seriam erguidos e os crentes vivos se transformariam em corpos imortais, vivendo para sempre no futuro reino.

O que aconteceria nesse ínterim, enquanto os crentes esperavam a vinda do Senhor? Eles deveriam se reunir em comunidades para veneração, edificação, educação e apoio mútuo. Como essas comunidades deveriam se organizar? Paulo achava que elas eram organizadas pelo próprio Deus, por intermédio do Espírito Santo; isso é dito em 1 Coríntios 12-14. Quando as pessoas eram batizadas na Igreja cristã, elas não apenas “morriam com Cristo” como também recebiam o Espírito Santo, a presença de Deus na Terra antes do fim. Nesse momento, todos recebiam uma espécie de “dom espiritual” que podia ser usado para ajudar os outros na comunidade. Algumas pessoas recebiam o dom do conhecimento, algumas o do ensino, outras o da doação, havia as que faziam profecias a partir de Deus, as que faziam revelações em línguas estrangeiras ou angelicais que não costumavam ser compreendidas (“falando em línguas”), as que interpretavam essas revelações (a “interpretação de línguas”). Esses dons tinham como objetivo o bem comum, de modo que a comunidade de crentes pudesse funcionar em paz e harmonia nos últimos dias antes do fim.

Porém, com frequência as coisas não funcionavam como o planejado, como na igreja de Corinto. Na verdade, ela era uma grande bagunça. Diferentes “líderes” espirituais se diziam mais espiritualmente dotados do que outros e tinham seus próprios clãs de seguidores, levando a divisões na Igreja. Essas divisões se tornaram absolutamente impossíveis de administrar: alguns membros da Igreja estavam levando outros ao tribunal e os processando. A imoralidade estava se disseminando: alguns dos homens tinham encontros com prostitutas e se gabavam disso na igreja; um homem coabitava com sua madrasta. Os serviços da igreja eram caóticos, já que os “mais espirituais” entre os coríntios tinham decidido que o verdadeiro sinal da espiritualidade era a habilidade de falar em línguas, e assim estavam competindo uns com os outros no momento de veneração para ver quem fazia isso mais alto e com maior frequência. Durante a refeição comunal semanal — uma verdadeira refeição, não simplesmente comer uma hóstia e tomar um gole de vinho —, alguns dos membros da igreja chegavam cedo, se empanturravam e se embriagavam, e outros, obrigados a chegar tarde (possivelmente as classes inferiores e os escravos, que é provável que trabalhassem mais), não tinham nada para comer ou beber. Alguns membros da congregação estavam tão convencidos de sua superioridade espiritual que alegavam já ter sido ressuscitados com Cristo e já estarem reinando com ele nos lugares celestiais (semelhante à alegação feita muito depois pelo autor de Efésios).

Paulo lida com os problemas na Igreja se dirigindo à instituição como um todo, pedindo que todos os membros mudem de comportamento. Por que ele não se dirige ao bispo da Igreja ou ao pastor-chefe? Por que não escreve uma carta ao líder da Igreja para mandar que ele cuide de suas tropas? Porque não havia líder na Igreja. Não havia bispos ou pastores-chefes. Nas igrejas de Paulo, naquele breve tempo entre a ressurreição de Jesus e a ressurreição de todos os crentes, a comunidade era governada pelo Espírito de Deus agindo por intermédio de cada membro.25

O que acontece quando não há hierarquia oficial, nenhum líder indicado, ninguém no comando? O que costuma acontecer é o que aconteceu em Corinto. Uma boa dose de caos. Como esse caos pode ser controlado? Alguém precisa assumir o comando. Com o tempo, foi isso o que acabou acontecendo nas igrejas de Paulo. Depois que ele mesmo já tinha saído de cena, suas igrejas assumiram o modelo imaginado, no qual havia alguém no alto, alguém que dava as ordens, alguém que tinha como subordinados líderes nomeados para manter o grupo unido, garantir que apenas os ensinamentos corretos fossem passados adiante e disciplinar quem não se comportasse adequadamente.

Não há esse tipo de estrutura na Igreja na época de Paulo. Há nas Epístolas Pastorais, que são cartas escritas aos pastores-chefes das igrejas em duas das comunidades de Paulo. Essas epístolas dão instruções para colocar os falsos mestres na linha; orientações para nomear bispos, que evidentemente eram encarregados da supervisão espiritual da Igreja, e diáconos, que cuidavam das esmolas e do atendimento às necessidades físicas da comunidade; e admoestações sobre como as pessoas em diferentes papéis sociais (maridos e mulheres, pais e filhos, senhores e escravos) deveriam se comportar, de modo que a Igreja sobrevivesse a longo prazo. Para Paulo, por outro lado, não haveria um longo prazo.

Ele achava que o fim chegaria rapidamente. Mas não chegou, e suas igrejas tiveram de se organizar para sobreviver. Elas fizeram isso, e as Epístolas Pastorais foram escritas no contexto dessa nova situação, provavelmente duas décadas ou mais depois de Paulo ter saído de cena. Na nova situação, um autor escreveu as três epístolas alegando ser o apóstolo para que sua mensagem tivesse a autoridade dele. Mas sua mensagem não era a de Paulo. Este tinha vivido em outra época.

QUEM ESCREVEU OS OUTROS LIVROS DO NOVO TESTAMENTO?

Muito do que já foi dito também pode ser dito sobre os livros remanescentes do Novo Testamento. Alguns deles são anônimos, especificamente a Epístola aos Hebreus e os livros chamados de 1, 2 e 3 João. Como muitos autores já nos primórdios da Igreja perceberam, não havia razão para imaginar que Paulo tivesse escrito Hebreus, mas ela acabou sendo incluída no cânone por líderes da Igreja que argumentaram ser de Paulo. Na verdade, o estilo literário é completamente diferente do de Paulo; os principais temas da epístola estão ausentes das suas outras epístolas e o modo de argumentação não é de modo algum o dele. E por que alguém deveria pensar que Paulo a escreveu? Diferentemente de seus próprios textos, este livro é anônimo.

As chamadas epístolas de João também não informam que foram escritas por João; as epístolas 2 e 3 são de alguém que chama a si mesmo de “o ancião”, e o autor de 1 João não fala nada sobre si mesmo. Poderia ser praticamente qualquer líder da igreja no final do século I.

Outros livros são homônimos. O autor de Tiago não alega ser nenhum Tiago em particular, muito menos o Tiago que segundo outras tradições teria sido o irmão de Jesus. O livro de Judas informa ter sido escrito por um Judas que é o “irmão de Tiago”, então isso pode ser interpretado como uma alegação de ser irmão de Jesus, já que segundo o Evangelho de Marcos dois de seus irmãos eram chamados de Tiago e Judas. Mas é estranho, caso ele queira ser visto como o irmão de Jesus, não se apresentar e dizer isso para conferir ainda mais autoridade a seu livro. Mas Judas e Tiago eram nomes comuns na Antiguidade judaica e na Igreja cristã. Cristãos posteriores que estabeleceram o cânone alegaram que esses dois eram parentes de Jesus, mas eles mesmos nunca dizem isso.

Também é difícil acreditar que essas epístolas possam ter sido escritas por dois camponeses de classe baixa falantes de aramaico da Galileia (cujo irmão mais famoso não era conhecido pela sua capacidade de escrever, quanto mais de compor um complicado tratado em grego). O argumento aqui é o mesmo apresentado anteriormente em relação ao Evangelho segundo João: teoricamente é possível que os irmãos de Jesus — criados no interior da Galileia rural, ganhando a vida com trabalho braçal, não tendo em nenhum momento nem tempo nem dinheiro para uma educação — decidissem posteriormente adquirir uma educação grega e fazer cursos de composição literária, para serem capazes de escrever esses livros densamente retóricos e relativamente sofisticados. Mas parece um tanto improvável.

O mesmo raciocínio se aplica às epístolas 1 e 2 Pedro. Mas esses livros, assim como as epístolas deutero-paulinas (2 Tessalonicenses, Colossenses e Efésios) e as Epístolas Pastorais, na verdade trazem a informação de que foram escritos por alguém que não os escreveu. Eles são pseudônimos no sentido pesado do termo: parecem ser fraudes.

É certo que quem quer que tenha escrito 2 Pedro não escreveu também 1Pedro: os estilos literários são inteiramente diferentes. Já nos primórdios da Igreja havia estudiosos cristãos argumentando que Pedro não escreveu 2 Pedro. Hoje há ainda menos controvérsia sobre essa questão do que sobre as Pastorais. O livro chamado 2 Pedro foi escrito muito depois da morte de Pedro, por alguém incomodado pelo fato de algumas pessoas estarem negando que o fim estivesse próximo (é compreensível que surgissem incrédulos com o passar do tempo); esse autor queria livrar essas pessoas de suas noções equivocadas e fez isso alegando ser ninguém menos que Simão Pedro, o braço direito de Jesus.

O livro chamado de 1 Pedro gera discussões mais acaloradas entre os acadêmicos do que 2 Pedro. Mas, novamente, qual é a probabilidade de que um simples pescador da Galileia rural de repente desenvolvesse habilidades em composição literária em grego? Às vezes se argumenta que alguém escreveu a epístola para ele, como por exemplo Silvano, identificado na epístola (5:12). Mas a própria epístola não diz isso. E, se alguém a escreveu, não seria ele o verdadeiro autor, e não Pedro? O uso sofisticado do Antigo Testamento nesse livro sugere que quem o escreveu era muito educado e muito bem formado, diferentemente de Simão Pedro. E é importante notar que temos um grande número de livros dos primórdios do cristianismo que alegam ter sido escritos por Pedro e que não foram — como, por exemplo, um Evangelho de Pedro, uma epístola de Pedro a Tiago, vários “Atos” de Pedro e três livros do Apocalipse de Pedro. Forjar livros em seu nome era uma grande indústria.

CONCLUSÃO: QUEM ESCREVEU A BÍBLIA?

Agora retorno à minha pergunta original: quem escreveu a Bíblia? Dos 27 livros do Novo Testamento, apenas oito quase certamente foram escritos pelos autores aos quais são tradicionalmente atribuídos: as sete inquestionáveis epístolas de Paulo e o Apocalipse de João, que poderia ser classificado como homônimo, já que não alega ter sido escrito por um João específico; isso era reconhecido até mesmo por alguns autores dos primórdios da Igreja.

Meus pontos de vista sobre os autores do Novo Testamento não são radicais na academia. Na verdade, há discussões entre os acadêmicos sobre este ou aquele livro. Alguns estudiosos muito bons acreditam que Paulo escreveu 2 Tessalonicenses, que Tiago, o irmão de Jesus, escreveu Tiago ou que Pedro escreveu 1 Pedro. Mas a maioria dos estudiosos críticos há muito duvida dessas atribuições, e quase não se discutem alguns dos livros do Novo Testamento, como 1 Timóteo e 2 Pedro. Esses livros não foram escritos por seus supostos autores.

Dúvidas sobre a autoria de textos que se tornaram o cânone foram levantadas nos primórdios da Igreja, mas na época moderna, a partir do século XIX, os estudiosos fortaleceram os argumentos com raciocínios convincentes. Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentos forjados do Novo Testamento de fraudes — afinal, é da Bíblia que estamos falando. Mas a realidade é que, por qualquer definição do termo, é isso o que eles são. Um grande número de livros dos primórdios da Igreja foi escrito por autores que alegaram falsamente ser apóstolos para enganar os leitores e fazê-los aceitar seus livros e os pontos de vista que representavam. Essa visão de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é ensinada em praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por todo o Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério.

E por que isso não é mais conhecido? Por que as pessoas nos bancos das igrejas — para não falar das pessoas nas ruas — não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom quanto o meu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

🙏 Por Que Deixei de Fazer Parte do Sistema Religioso?

Por Que Deixei de Fazer Parte do Sistema  Religioso?  O propósito deste blog é deixar clara a razão pela qual deixei de pertencer o Sistema ...