4) Capítulo Quatro - Alternativas para mentiras e enganações

Capítulo Quatro -  Alternativas para mentiras e enganações     

Quando eu era um bom cristão evangélico conservador no Moody Bible Institute no fim da adolescência, tinha certeza de que não podia haver falsificações no Novo Testamento. A visão que tinha das Escrituras era enraizada nas próprias Escrituras e acima de tudo naquela clássica declaração da própria inspiração da Bíblia, 2 Timóteo 3,16: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça.” Se a Escritura é inspirada por Deus, não pode haver nada de errado nela, quanto mais algo semelhante a uma mentira. O próprio Deus, que inspirou o texto, não mente. 

Quanto a isso, todos conhecemos os versículos fundamentais, incluindo os seguintes: 

Deus não é homem para mentir. (Nm 23,19) 

Aquele que é a verdade de Israel não mente nem se arrepende. (1Sm 15,29) 

Na esperança da vida eterna prometida em tempos longínquos por Deus veraz e fiel [...]. (Tt 1,2) 

Por este ato duplamente irrevogável, pelo qual o próprio Deus se proibia de desdizer-se [...]. (Hb 6,18) 

A Escritura diz que é inspirada por Deus. Deus não mente nem pode mentir. Portanto, a Escritura não contém nem pode conter mentiras. Falsificação, por outro lado, envolve mentir. Por essa razão não pode haver falsificações na Bíblia.97 

Esse ponto de vista evangélico conservador ainda é muito defendido por alguns estudiosos hoje, pelo menos pelos estudiosos evangélicos conservadores. Mas devo dizer que se baseia em premissas teológicas do que tem de ser verdade, não com base no que de fato é verdade.98 Para os evangélicos conservadores, a Bíblia tem de ser sem equívocos, erros ou mentiras. E, se tem de ser assim, bem, então assim é!

                        PODE A BÍBLIA CONTER MENTIRAS? 

Obviamente mudei minha opinião sobre o tema. Três anos após me formar no Moody, eu estava estudando em um programa de mestrado no Seminário Teológico de Princeton, uma faculdade presbiteriana estabelecida que insiste mais no conhecimento crítico do que no dogmatismo acrítico. Foi no seminário de Princeton que passei a achar que antes tinha abordado a Bíblia da forma errada. Como evangélico conservador, eu pegara a Bíblia supondo certas coisas sobre ela antes mesmo de lê-la. Eu afirmava que não poderia conter equívocos. E, se não poderia conter equívocos, é óbvio que não continha equívocos. Portanto, qualquer coisa que parecesse um equívoco não podia ser de fato um equívoco, porque a Bíblia não poderia conter equívocos. E como sabia que a Bíblia não poderia conter equívocos? Não com base em qualquer exame ou investigação da Bíblia, apenas com base no que outras pessoas me haviam dito, sustentado por algumas passagens usadas como prova. Eu via a Bíblia com a crença em um texto livre de erros, e não os encontrava, pois não poderia haver nenhum. 

Todavia, por que deveria acreditar que essa visão era verdadeira? Havia muitos outros cristãos que acreditavam em outras coisas, especialmente em um lugar como o Seminário Teológico de Princeton. Foi lá que me dei conta de que, como a Bíblia é um livro, faz mais sentido abordá-la do modo como se aborda um livro. Sem dúvida, há livros no mundo que não contêm qualquer equívoco. Mas ninguém insistiria em que um determinado catálogo telefônico, livro de química ou manual de instruções de carro não tem nenhum erro, antes de lê-lo para descobrir se tem ou não. Em vez de pensar que a Bíblia não pode ter equívocos, antes de procurar para ver se tem, por que não ver se tem? 

Sei que muitos cristãos evangélicos acham isso é retrógrado e errado, que questionar a Bíblia é questionar Deus. Mas não penso assim. Se Deus criou um livro livre de erros, ele não deve conter erros. Se o que temos não é um livro sem erros, não é um livro que Deus nos deu sem erros. 

Ademais, à medida que estudava a Bíblia, comecei a ver os erros, aqui e ali. E eles começaram a se multiplicar. E acabaram envolvendo não apenas pequenos detalhes, mas questões muito grandes e pontos de fato importantes. Eu me convenci de que a Bíblia, independentemente do que mais poderia ser, é um livro muito humano. 

Livros humanos do mundo antigo, algumas vezes, continham falsificações, escritos alegando ter como autores alguém que não os escreveu. É o caso da Bíblia hebraica, o Antigo Testamento cristão. O livro de Daniel é atribuído em parte ao profeta Daniel durante o cativeiro na Babilônia, no século VI a.C. Mas não há como ele ter sido escrito nessa época. Por mais de cem anos os estudiosos apresentaram motivos claros e convincentes para acreditar que foi escrito quatrocentos anos depois, no século II a.C., por alguém falsamente alegando ser Daniel. Da mesma forma, o Eclesiastes. O autor desse livro não se apresenta e diz que seu nome é Salomão, mas diz que é o filho de Davi — rei em Jerusalém que é fantasticamente rico e sábio. Em outras palavras, ele alega ser Salomão sem usar seu nome. Mas não há como ele ser Salomão. Esse livro não poderia ter sido escrito até seiscentos anos após a morte de Salomão, como concordam hoje os estudiosos críticos da Bíblia.99 

Mas, enquanto há duas falsificações no Antigo Testamento, há muitos casos no Novo Testamento. Até o momento avaliamos dois livros atribuídos de modo inadequado a Pedro e seis a Paulo. É um fenômeno impressionante que, embora os estudiosos em geral concordem que esses livros não foram de fato escritos por seus supostos autores, muitos acadêmicos relutam em chamá-los do que são: falsificações literárias com o objetivo de enganar os leitores. Algumas vezes, acho um pouco estranho que, quando alguns estudiosos se referem a livros com falsas alegações de autoria fora do Novo Testamento, não têm pudores em chamá-los de “falsificações”, mas quando se referem a livros assim dentro do Novo Testamento, os chamam de “pseudoepigráficos”. Talvez seja melhor usar o termo técnico mais antisséptico para lidar com a Bíblia? Ou talvez, em vez disso, seja melhor falar com clareza. Estamos lidando com o mesmo fenômeno, seja um livro incluído no cânone ou não. 

Neste capítulo, vou abordar as formas pelas quais alguns estudiosos tentaram contornar o problema de o Novo Testamento conter falsificações. Algumas vezes o fazem com explicações que se tornaram muito comuns e disseminadas a ponto de parecer senso comum para algumas pessoas. Entre outras coisas, costuma-se dizer que a prática de fazer falsas alegações de autoria era aceitável em escolas filosóficas da Antiguidade, de modo que era desculpável para um seguidor de Pedro ou Paulo. Ou afirma-se que epístolas supostamente pseudoepigráficas podem ser explicadas imaginando que Pedro e Paulo usaram secretários para produzir esses escritos. Como veremos, há muito poucas evidências que sustentem qualquer desses pontos de vista.100 Antes de lidar com essas explicações, preciso abordar outro ponto de vista com frequência apresentado por estudiosos: o de que autores antigos que assumiam uma falsa identidade não estavam tentando ser desonestos. 

A FALSIFICAÇÃO É DESONESTA?

Um equívoco acadêmico comum 

Um número surpreendente de estudiosos alegou que, embora a Bíblia possa conter falsificações, estas nunca pretenderam enganar ninguém. Segundo esse ponto de vista, autores antigos que assumiam um nome falso não tentavam desorientar seus leitores. Eles não estavam mentindo, não estavam enganando e não eram condenados. 

É   difícil entender como alguém que leu qualquer das discussões sobre falsificação na Antiguidade possa dizer tal coisa. Mas esse ponto de vista é tão disseminado que se tornou um lugar-comum absoluto no estudo do Novo Testamento. Vou dar vários exemplos de estudiosos que fazem afirmações desse tipo, juntamente com alguns comentários, antes de enfatizar como essa visão é equivocada.

Um autor muito respeitado dos anos 1920, em um estudo clássico das epístolas pastorais, alegou que o autor que se dizia Paulo, ainda que fosse outra pessoa, “não estava de modo algum consciente de se fazer passar pelo apóstolo; não estava conscientemente enganando ninguém; de fato, não é necessário supor que ele enganou ninguém”.101 Qual evidência esse autor apresenta para fazer essas alegações? Nenhuma. E que declaração impressionante! Se o autor não queria enganar ninguém e não enganou, por que todo intérprete conhecido dessas epístolas por mais de 1.700 anos foi enganado, como muitos continuam a ser hoje, quando assumem que o autor que diz ser Paulo de fato era Paulo? 

Ou avalie a declaração de um autor dos anos 1970 que nos diz: 

A pseudonímia era uma característica frequente da literatura antiga. Não havia nada imoral nisso; era apenas o equivalente ao anonimato moderno. Era um sinal de humildade; o autor, sendo tímido demais para escrever usando o próprio nome, abrigava-se sob um nome mais conhecido.102 

Esse autor pelo menos está certo em uma coisa: a falsificação é frequente na literatura antiga. Mas é   como o “anonimato moderno”? É algo muito estranho de dizer sobre essa prática. Por que não dizer que é como o anonimato “antigo”? Livros eram escritos anonimamente no mundo antigo assim como no moderno — na verdade, com maior frequência. Mas isso levanta uma enorme questão que esse estudioso não pode responder. Se um autor que escrevia com humildade não queria mencionar o próprio nome, por que ele não escreveu anonimamente? Por que adicionou um nome falso à sua obra, se fazendo passar por outra pessoa? 

Ou pegue este comentário de um acadêmico escrevendo nos anos 1990 sobre a autoria pseudônima de 2 Tessalonicenses: 

Esse tipo de pseudonímia não deveria ser rotulada de “falsificação”. Essa classificação implica um julgamento moral negativo, e veremos que muito provavelmente o autor de 2 Tessalonicenses e os autores de documentos pseudônimos comparáveis não consideravam seus escritos produto de fraudes. Deveríamos tentar avaliar esses escritos segundo os padrões que eram aceitos no ambiente onde se originaram.”103 

Isto parece ser uma postura sensata: avaliar os escritos segundo os padrões antigos, e não segundo os modernos. Mas esse acadêmico nunca faz isso. Ele nunca examina como os povos antigos chamavam essa prática ou leva em consideração o que tinham a dizer sobre isso. É importante lembrar como os povos antigos chamavam “esse tipo de pseudonímia” — eles chamavam livros assim de “escritos falsamente assinados”, “mentiras” e “bastardos”! 

A obra de um acadêmico recente que lida com o fato de que o autor de Efésios alegou falsamente ser Paulo representa essa mesma linha de raciocínio. Esse acadêmico afirma que tal alegação falsa era uma prática literária aceita e disseminada nas culturas judaicas e greco-romanas [...]. Não há motivo para pensar no artifício da pseudonímia em termos negativos e associá-lo necessariamente a ideias como falsificação e embuste.104 

Mais uma vez, leitores críticos querem saber qual evidência o autor cita de que a prática era “aceita” e não era associada a “falsificação e embuste”. Mas ele não cita nenhuma. Por quê? Ou porque o autor — conquanto seja, afora isso, um estudioso respeitado do Novo Testamento — não está familiarizado com o que os povos antigos disseram sobre falsificação, ou porque não ousa citar o que disseram, já que o que disseram contradiz o que ele diz. 

Outros estudiosos permitiram que suas visões teológicas nublassem sua avaliação histórica. Considerem um dos mais recentes analistas de Colossenses, que considera a obra uma falsificação, mas insiste em que é uma “falsificação honesta” (em oposição a uma desonesta): 

A evidência do mundo antigo torna necessário fazer uma distinção entre falsificação desonesta, realizada com objetivos nefandos e maldosos, e o que poderia ser descrito, por mais paradoxal que possa parecer, como falsificação honesta. [...] Deve-se enfatizar mais uma vez que a última opção [que Colossenses não tenha sido escrita por Paulo] não necessariamente carrega o estigma de fraude ou falsificação. Isso poderia se aplicar ao caso de uma obra escrita para propor uma doutrina herética, e, como já foi observado antes, muitas obras assim foram depois estigmatizadas como apócrifas ou heréticas — e, portanto, rejeitadas. Porém, no caso das pseudoepigrafias do Novo Testamento, o caso é um pouco diferente: essas obras foram reconhecidas pela Igreja como válidos e autênticos testemunhos da genuína fé cristã. [...] Elas testemunham aquilo em que a Igreja acreditava.105 

Em outras palavras, se cristãos ortodoxos posteriores dos séculos II, III ou IV concordaram com os pontos de vista encontrados no livro de Colossenses e decidiram que deveria ser incluído na Bíblia, seu autor era um falsificador honesto. Contudo, outros autores que defendiam pontos de vista que cristãos posteriores rejeitaram eram falsificadores desonestos. E como os próprios autores saberiam se séculos depois seus pontos de vista seriam aceitos ou não? Bem, é óbvio que eles não teriam como saber. Então, sua honestidade ou desonestidade está baseada em circunstâncias alheias ao seu controle.106 

Uma perspectiva alternativa 

Todos os estudiosos que citei têm três coisas em comum. Todos sustentam que o que estou chamando de falsificação — a alegação de um autor ser alguém que não é — não era uma prática enganosa; todos baseiam seus pontos de vista em declarações provenientes de estudiosos anteriores em vez de em um exame das fontes antigas; e todos eles escolheram não oferecer um único fragmento de evidência. 

Que esses pontos de vista são errados deve ficar claro já a partir de meu rápido exame das evidências antigas no capítulo 1. Se falsificação nunca foi considerada algo errado, por que em todos os casos conhecidos de uma pessoa sendo apanhada ela é censurada, agredida ou punida? E, se o propósito não era enganar os leitores, qual era? 

Consideremos apenas as motivações que levavam autores a alegar ser outra pessoa. Alguns falsificadores faziam isso para descobrir se conseguiam ou não ser desmascarados. Bem, se ninguém era enganado, como eles poderiam ser desmascarados? Alguns faziam para ganhar dinheiro. Mas, se ninguém era enganado, quem pagaria o dinheiro? Outros usavam a falsificação para lançar suspeitas sobre o caráter de outrem, a pessoa que supostamente escreveu o texto. Mas, se os leitores sabiam que o suposto autor não era o real autor, como essa tática poderia funcionar? Alguns autores falsificavam documentos com objetivos militares ou políticos, para, em nome de uma autoridade, convencer as pessoas a se engajar em algum tipo de ação violenta ou golpe. Mas o que seria convincente se a autoridade não fosse a pessoa que alegava ser? Outros falsificadores, provavelmente a maioria entre os cristãos, produziam seus trabalhos em nome de outro para garantir que seus pontos de vista circulassem amplamente. Mas, se era sabido que o suposto autor, na verdade, não escrevera o livro — se ele na verdade não era escrito por Platão, Pedro ou Paulo —, por que alguém se daria ao trabalho de lê-lo? 

Pode-se examinar todas as motivações que documentei com base em fontes antigas. Nenhuma delas faz sentido se a falsificação não “funcionasse”, ou seja, se ninguém fosse enganado. E, como já disse, o fato de que as pessoas eram enganadas pode explicar as reações negativas e algumas vezes violentas dos leitores que se davam conta de terem sido enganados. 

Por isso há outro grupo de estudiosos que fala de falsificação e a chama do que é: um logro intencional. Esses outros estudiosos leram o que as fontes antigas têm a dizer sobre essa prática. Meu próprio professor Bruce M. Metzger, que conhecia as fontes antigas como a palma da mão, fez a pergunta retórica do primeiro grupo de estudiosos que mencionei: “Como se pode saber com tanta confiança que tais produções ‘não enganavam ninguém’? Se ninguém era enganado pelo artifício da pseudoepigrafia, é difícil entender por que ela era adotada.”107 

Um dos melhores estudiosos alemães a discutir a falsificação no mundo antigo, Norbert Brox afirma explicitamente após repassar todas as discussões antigas: 

O conhecimento contemporâneo sobre falsificação mostra, sem qualquer dúvida, que a falsificação literária, mesmo naquela época, levantava a questão de sua própria moralidade e não era absolutamente tolerada como uma prática comum, puramente rotineira e aceitável.108 

E a principal autoridade em falsificação nos tempos modernos, o acadêmico austríaco Wolfgang Speyer, indica claramente no começo de seu gigantesco estudo do fenômeno: “Todo tipo de falsificação distorce os fatos do caso, e, nesse sentido, a falsificação pertence ao âmbito da mentira e do embuste.”109 

PSEUDOEPIGRAFIA COMO PRÁTICA ACEITA 

Outros estudiosos que não desejam que seus leitores tenham uma imagem ruim das falsificações (em especial aquelas na Bíblia) fazem mais do que simples afirmações genéricas de que os falsificadores não estavam enganando. Esses outros estudiosos dão motivos e circunstâncias especiais sob os quais a utilização de um nome falso era uma prática aceitável na Antiguidade. Acadêmicos que agem assim podem ser reunidos em três grandes escolas de pensamento. 

Pseudoepigrafia no Espírito 

Um ponto de vista popular entre acadêmicos por anos foi o de que quando um autor cristão antigo escreveu um livro no nome de outro, foi por ter sido inspirado a fazê-lo pelo Espírito de Deus. Quando dito secamente, isso soa muito como uma alegação teológica (e possivelmente não muito boa); mas não necessariamente. Você não precisa acreditar que o Espírito Santo inspirou uma pessoa a escrever assim; pode apenas achar que a pessoa acreditou ter sido levada pelo Espírito a escrever em nome de uma antiga autoridade cristã. Para essa pessoa que acreditava estar inspirada, as palavras que escreveu vieram de uma autoridade impecável (por exemplo, um apóstolo). 

Um dos principais defensores desse ponto de vista foi o acadêmico alemão Kurt Aland, que alegou que os primeiros “profetas” cristãos acreditavam terem sido inspirados pelo Espírito, e assim disseram uma espécie de “palavra profética” cuja autoridade não eram eles mesmos, mas o Espírito Santo. “Autoridades” cristãs, em dado momento, começaram a escrever essas palavras proféticas. Mas um autor não podia escrever em seu próprio nome, como se sua autoridade pessoal pudesse sustentar uma ideia ou palavras fornecidas pelo Espírito. Em vez disso, o autor era uma espécie de ferramenta utilizada pelo Espírito (na crença do autor) para transmitir sua própria mensagem. Aland alegou: 

Não só a ferramenta [isto é, o autor humano] pela qual a mensagem era transmitida era irrelevante, como [...] corresponderia a uma falsificação até mesmo nomear a ferramenta, porque [...] não era o autor do escrito quem de fato falara, mas apenas a testemunha autêntica, o Espírito Santo, o Senhor, os apóstolos. 

Resultado: 

Quando escritos pseudônimos do Novo Testamento invocavam a autoridade apenas dos apóstolos mais proeminentes, esse não era um truque habilidoso dos chamados falsificadores para garantir a maior reputação e a maior circulação possíveis para sua obra, mas a conclusão lógica da pressuposição de que o próprio Espírito era o autor.110 

A despeito da popularidade desse ponto de vista entre alguns estudiosos em certo momento, ele na verdade nunca foi disseminado. Para começar, não fazia sentido dizer que, na mais antiga tradição cristã, os autores se recusavam a usar seus nomes porque era o Espírito que falava por intermédio deles. Nosso primeiro autor foi Paulo, e ele usa o próprio nome. 

Em segundo lugar, se os autores queriam alegar que era o Espírito falando por intermédio deles, que não baseavam sua mensagem em sua própria autoridade, por que não dizer somente: “Assim diz o Senhor”, ou “Assim diz o Espírito”? Por que alegariam ser outro humano — Pedro, Paulo ou Tiago —, sabendo que não eram? Ou seja, esse ponto de vista pode explicar escritos anônimos iniciais, mas não explica a única coisa que está tentando explicar: escritos pseudônimos iniciais. E, em particular, não explica por que um autor falsamente usaria para si mesmo um nome em vez de outro. Se era o Espírito que inspirava o autor, por que este chamaria a si mesmo de Pedro? Por que não João, Paulo ou Tiago? Ou, como sugeri, por que não dar nome algum? Consequentemente, essa explicação, embora interessante, não é convincente. 

Reatualizando a tradição 

A próxima explicação de como a autoria pseudoepigráfica poderia ser vista como uma prática aceitável é um pouco mais complicada. Resumindo, ela argumenta que, se um autor se considerava um representante posterior de pontos de vista defendidos por um autor famoso anterior (que morrera, por exemplo), poderia escrever um documento em nome dessa pessoa. O objetivo não era alegar ser realmente aquela pessoa, mas sugerir que os pontos de vista apresentados no documento eram os daquela autoridade anterior. Ou, pelo menos, seriam os pontos de vista daquela autoridade caso ainda estivesse viva para lidar com a nova situação que surgira desde sua morte. 

O termo técnico para esse tipo de procedimento é “reatualizar a tradição”. Uma tradição é qualquer ponto de vista, ensinamento ou história transmitido por escrito ou oralmente. Uma tradição é “reatualizada” quando é tornada ativamente relevante (reativada) para uma nova situação. 

Suponha que um autor muito influente em 1917 condenou os cristãos que bebiam álcool alegando que fazer isso os fazia perder os sentidos e se comportar de modo irresponsável. Cinquenta anos depois, surgira um novo problema: as pessoas haviam começado a usar drogas alucinógenas. Um novo autor quer dizer aos cristãos que não devem fazer tal coisa. O novo autor, vivendo em 1967, escreve um ensaio alegando ser o famoso e respeitado autor de 1917, condenando não apenas o consumo de álcool, mas também o uso de drogas. Esse novo autor se insere na tradição do autor anterior e faz a tradição se aplicar à situação “atual” que está abordando. Em outras palavras, ele “reatualiza” a tradição. Ao usar o nome do autor de 1917 ele não está exatamente alegando ser aquela pessoa, mas continuando a tradição daquela pessoa. 

Essa, pelo menos, é a teoria, e tem sido aplicada por alguns estudiosos ao fenômeno da pseudoepigrafia no Novo Testamento. Como argumentou um acadêmico britânico, a pseudonímia era “uma prática aceitável, sem a intenção de enganar”, porque um autor pseudoepigráfico, continuando a tradição de um autor anterior, “poderia apresentar sua mensagem como a mensagem do criador daquela tradição, porque, a seus olhos, era o que era. [...] Não havia intenção de enganar, e quase certamente os leitores finais não eram de fato enganados”.111 

Pode-se identificar um dos problemas-chave desse ponto de vista. Se a pessoa que falsificou epístolas do Novo Testamento de, digamos, Pedro e Paulo não tinha “intenção de enganar” e “na verdade” não enganou ninguém, mais uma vez ficamos com o problema de por que todos (por muitos, muitos séculos) foram enganados. Por 1.700 anos todos que leram essas cartas acharam que Pedro e Paulo as escreveram. E mais uma vez ficamos com a questão: qual é a evidência de que “reatualizar a tradição”, assumindo um nome falso, era uma prática muito seguida e aceitável? 

O principal defensor desse ponto de vista é o acadêmico americano David Meade, que publicou sua tese de doutorado sobre o tema.112 Meade argumenta que a evidência da prática está na Bíblia hebraica. Ele diz que era de costume escritos de vários autores serem repassados sob o nome da pessoa que iniciou a tradição à qual eles pertenciam. Estudiosos da Bíblia hebraica sustentaram por mais de um século, por exemplo, que o livro de Isaías não foi escrito inteiramente pelo famoso Isaías de Jerusalém no século VIII a.C. Os capítulos quarenta a 55, por exemplo, provavelmente foram escritos por outra pessoa que viveu 150 anos depois, na época em que a nação de Judá estava no cativeiro na Babilônia. 

Como observa Meade, Isaías 40-55 foi transmitido como parte do livro de Isaías. Mas, na opinião de Meade, o autor desses capítulos não estava tentando enganar ninguém ao levar a pensar que era de fato Isaías de Jerusalém, de um século e meio antes. Meade argumenta que ele apenas alegava pertencer à mesma tradição profética de Isaías de Jerusalém. Da mesma forma, os 11 capítulos finais de Isaías, que foram escritos por um terceiro autor, que viveu ainda mais tarde. Como diz Meade, ao chamar esses autores posteriores de “Isaías”, os judeus não faziam uma alegação sobre as “origens literárias” de seus escritos (isto é, sobre quem originalmente escreveu seus livros), mas sobre sua “tradição de autoridade” (isto é, sobre qual tradição — a de Isaías — eles continuavam para o novo dia). 

Meade também encontra esse tipo de tradição em outros trechos da Bíblia hebraica e conclui que, no que diz respeito ao Novo Testamento, os autores estão fazendo algo muito similar. O autor de 2 Pedro, por exemplo, que não era realmente Pedro, alega ser Pedro não por querer que as pessoas pensem que ele é Pedro. Ele não pretende mentir sobre isso. Está indicando a que tradição — a de Pedro — ele considera pertencer. 

Alguns estudiosos foram atraídos para essa teoria, já que ela pode explicar como atores podiam fazer falsas alegações sobre si mesmos sem mentir sobre isso, e ela parece se encaixar na antiga tradição judaica de autoria. Mas há problemas muito grandes com essa teoria. 

Em primeiro lugar, a maior parte da evidência não funciona. Não temos certeza de quem escreveu Isaías 40-55, além de dizer que, para início de conversa, não foi Isaías de Jerusalém quem o fez e, depois, que provavelmente o autor foi um israelita que viveu durante o cativeiro babilônico. Não sabemos se ele mesmo acrescentou manualmente seus escritos aos de Isaías de Jerusalém (por exemplo, no mesmo rolo), ou se escreveu seu livro usando muitas das ideias de seu predecessor. Isso significa dizer que pode ter sido outra pessoa que juntou os dois escritos, de modo que o autor do que é hoje Isaías 40-55 não estava fazendo qualquer alegação de autoria, mas apenas escrevendo anonimamente. Ademais, em nenhum momento o autor de Isaías 40-55 alega ser Isaías. Isso é um claro contraste com, digamos, o autor de 2 Pedro, que alega ser Pedro, ou com o autor de Efésios, que alega ser Paulo.

Entretanto, ainda mais problemático é o fato de que escritores do século I, quando os livros do Novo Testamento estavam sendo escritos, não sabiam que Isaías 40-55 não tinha sido escrito por Isaías de Jerusalém. Ao contrário, supunha-se, em geral, que Isaías escrevera Isaías inteiro! Essa ideia de que autores posteriores estavam reatualizando a tradição se baseia em visões do século XX, de autoria da Bíblia hebraica que ninguém no mundo antigo conhecia. Não há registro de alguém no mundo antigo reconhecer esse ponto de vista, falar sobre ele, refletir sobre ele, adotá-lo, defendê-lo ou divulgá-lo. Nenhum autor antigo sequer menciona esse ponto de vista. Como uma pessoa do século I, como o autor de Colossenses, poderia ter ideia do que havia acontecido com os escritos de Isaías quinhentos anos antes? Ele vivia em um país diferente e falava um idioma diferente; ele não era judeu; ele lia Isaías em grego em vez de hebraico; e para ele todo Isaías tinha sido escrito por Isaías. 

Ainda há mais um problema com esse ponto de vista. Mesmo que fosse verdade que o autor de 2 Pedro se imaginava continuando a tradição de Pedro, isso justificaria sua alegação de ser Pedro? Qual é a lógica de alegar ser a pessoa cujos pontos de vista você aceita? Uma das razões pelas quais essa lógica é falha é que havia muitos cristãos representando muitos pontos de vista, muitos dos quais se contradiziam. Como os defensores de uma tradição teriam reagido a outros que alegavam ser da mesma tradição, mas tinham algo diferente a dizer? Pense no autor das pastorais, que alegou ser Paulo embora não fosse, e o autor dos Atos de Paulo, que alegou representar a proclamação de Paulo, ainda que não representasse. Eles tinham pontos de vista opostos sobre as mulheres e seu papel na Igreja. Deveríamos pensar que os antigos cristãos que aceitavam a visão das pastorais considerariam aceitável o autor de Atos de Paulo colocar na boca de Paulo palavras que ele não disse? Claro que não. O autor dos Atos de Paulo acharia aceitável que o autor das pastorais alegasse ser Paulo não sendo? Não. O que cada um desses autores teria dito do outro? Eles chamariam o outro autor de mentiroso. E teriam classificado os livros do outro autor de pseuda (falsidade, mentira) e notha (bastardo).

Escolas filosóficas 

Outra razão pela qual a explicação de Meade para a falsificação é falha é que a maioria dos autores do Novo Testamento não fazia parte da tradição judaica. Eles eram gentios. Então, outros estudiosos tentaram encontrar uma base para legitimar escritos pseudoepigráficos na tradição pagã, em que esses autores tinham suas raízes. Esses estudiosos algumas vezes alegam que era comum os discípulos de um filósofo escreverem tratados e não assinarem o próprio nome, mas sim o nome do mestre. Isso, alega-se, era feito em um ato de humildade, com os autores sentindo que suas ideias não eram suas, tendo sido dadas a eles pelo líder de sua escola filosófica. Por isso, para dar o devido crédito, ligavam o nome de seu mestre aos seus próprios escritos. 

Estudiosos do Novo Testamento costumam afirmar que isso pode explicar por que alguém alegou ser Paulo ao escrever Colossenses, Efésios ou as epístolas pastorais. Em um dos comentários-padrão sobre Colossenses, por exemplo, lemos o seguinte: 

Documentos pseudônimos, especialmente cartas de conteúdo filosófico, eram colocados em circulação porque discípulos de um grande homem pretendiam expressar, por imitação, sua adoração ao mestre reverenciado e garantir ou reforçar sua influência sobre uma geração posterior em circunstâncias modificadas.113 

Um comentarista mais recente de Colossenses e Efésios afirma algo semelhante: 

Ver Colossenses (ou Efésios) como sendo deuteropaulinos não deve ser confundido com significar que esses documentos são simplesmente exemplos de falsificação. Por exemplo: escrever em nome de um filósofo que era seu patrono podia ser visto como um sinal de honra concedida àquela pessoa.114 

Devo destacar que, como acontece com frequência, nenhum desses comentaristas oferece qualquer evidência de que essa fosse uma prática comum em escolas filosóficas. Eles afirmam como se fosse um fato. E por que acham que é um fato? Para a maioria dos estudiosos do Novo Testamento, isso é considerado um fato porque, bem, tantos estudiosos do Novo Testamento disseram isso! Mas pergunte a alguém que faz essa alegação qual é sua fonte antiga de informação ou qual filósofo antigo afirma que isso era uma prática comum. Em geral, receberá de volta um olhar vazio. 

Os acadêmicos que mencionam evidências antigas para essa suposta prática costumam apontar duas fontes principais.115 Mas uma delas não diz tal coisa. É o filósofo neoplatônico do século III, Porfírio, que supostamente teria dito que na escola do antigo filósofo Pitágoras (que viveu oitocentos anos antes) era prática comum os discípulos escreverem livros assinando com o nome de seu mestre.116 É um pouco difícil rastrear essa afirmação de Porfírio, porque não está em seus escritos gregos preservados; está apenas em uma tradução de uma de suas obras para o árabe, do século XIII.117 

Duvido que qualquer dos estudiosos do Novo Testamento que se referem a essa afirmação de Porfírio realmente a tenha lido, já que está em árabe, e a maioria dos estudiosos do Novo Testamento não lê árabe. Eu também não. Mas tenho um colega que lê, Carl Ernst, um especialista em islamismo medieval. Pedi que o professor Ernst traduzisse para mim. Ficou claro que Porfírio não diz nada sobre seguidores de Pitágoras escrevendo livros e assinando o nome dele. Em vez disso, diz que o próprio Pitágoras escreveu oitenta livros; duzentos foram escritos por seus seguidores, e 12, “falsificados” em nome de Pitágoras. Os 12 livros são condenados por usar o nome de Pitágoras, sendo que ele não os escreveu. Os falsificadores são chamados de “pessoas desavergonhadas” que “inventaram livros falsos”. Não é dito que os duzentos livros teriam sido escritos pelos discípulos de Pitágoras em nome dele; foram apenas livros escritos por seguidores de Pitágoras. 

Essa, portanto, é uma das duas referências antigas algumas vezes citadas por estudiosos para indicar que a prática de escrever em nome do mestre era “comum”. Nos outros escritos de Porfírio, bem como nesta passagem, ele demonstra grande interesse em saber quais livros são autênticos e quais são falsificados, e condena as falsificações, incluindo o livro de Daniel, do Antigo Testamento, que acredita que não poderia ter sido escrito por um israelita no século VI a.C. 

A outra referência a uma tradição das escolas filosóficas diz o que os estudiosos afirmaram dizer. Está nos escritos de Jâmblico, outro filósofo neoplatônico aproximadamente da mesma época de Porfírio. Em seu relato sobre a vida de Pitágoras, Jâmblico diz o seguinte: 

Essa também é uma bela circunstância, que eles [isto é, os seguidores de Pitágoras] tenham atribuído tudo a Pitágoras e chamado por seu nome, e que não tenham dado a si mesmos a glória de suas próprias invenções, exceto muito raramente. Pois há muito poucos cujas obras são reconhecidas como sendo suas.118 

Há muitos problemas em considerar esta declaração como uma indicação do que “normalmente” acontecia nas escolas filosóficas da Antiguidade, como um modelo para o que os autores cristãos fizeram quando alegaram ser Pedro, Paulo, Tiago, Tomé, Filipe e outros: 

1.          Para essa tradição ter tido impacto em tantos autores cristãos antigos, precisaria ser amplamente conhecida. Mas não era. A tradição não é mencionada por um único autor desde a época de Pitágoras (século VI a.C.) até a de Jâmblico (século III a IV d.C.). Consequentemente, nada sugere que esse ponto de vista era muito conhecido. Ao contrário, ninguém parece ter tomado conhecimento disso durante oitocentos anos. 

2.          Mais especificamente, Jâmblico vivia duzentos anos após terem sido escritos 1 e 2 Pedro e as deuteropaulinas. Não há referência a essa tradição existir na época dos textos do Novo Testamento. Mal poderia ser considerada uma prática amplamente aceita na época.

 

3.          Jâmblico se refere ao que aconteceu em apenas uma de muitas escolas filosóficas. Ele não diz nada sobre uma ampla tradição em escolas filosóficas fora de círculos pitagóricos.

 

4.          Como destacaram estudiosos recentes do pitagorismo, há razão para crer que o que Jâmblico diz não é correto nem para a escola pitagórica.119

 

a.          Em primeiro lugar, ele escreveu oitocentos anos após Pitágoras, e não teria como saber se o que estava dizendo era verdade. Pode ter apenas suposto que era como funcionava.

 

b.          Nenhum dos outros filósofos ou historiadores que falam sobre Pitágoras e sua escola antes de Jâmblico dizem qualquer coisa sobre obras pseudônimas escritas em seu nome.

 

c.             O comentário de Jâmblico é casual e extemporâneo. 

d.          Para completar, quando a afirmação de Jâmblico pode ser verificada, parece estar errada. A imensa maioria dos escritos da escola pitagórica não foi feita em nome de

Pitágoras. Seus seguidores escreveram sob os próprios nomes.120 

Consequentemente, o comentário breve e casual de Jâmblico (que, é bom lembrar, viveu mais de duzentos anos após Paulo e Pedro) não pode, de modo algum, ser considerado evidência do que acontecia nos dias de Pitágoras e seus alunos (seiscentos anos antes de Paulo e Pedro), muito menos do que costumava acontecer nas escolas filosóficas, que dirá do que provavelmente acontecia nos primórdios do cristianismo.121 

Por essas razões, os estudiosos do Novo Testamento precisam revisar seus pontos de vista sobre escolas filosóficas e seu impacto nas práticas de falsificação dos antigos cristãos. Não há praticamente nada sugerindo que havia nessas escolas uma tradição de praticar pseudoepigrafia como ato de humildade. Eu sugeriria que os estudiosos se aferraram à ideia porque ela lhes dá uma chance de falar sobre o que acontecia na tradição literária dos primórdios do cristianismo sem dizer que os antigos autores cristãos eram culpados por falsificação. 

A HIPÓTESE DO SECRETÁRIO 

Os três grupos de estudiosos que mencionei acham que, sob certas condições, a pseudoepigrafia era uma prática aceitável na Antiguidade. Por essa razão, na opinião desses estudiosos, os autores de antigos escritos cristãos não devem ser vistos como mentirosos quando alegam ser outra pessoa que não eles mesmos. Há outra escola de pensamento a considerar que diz que, em alguns casos, o que parece ser falsificação, não é. Os acadêmicos que defendem isso não alegam, com base teológica, que não pode existir algo como falsificação nos primórdios do cristianismo. Eles alegam, com base histórica, que alguns livros que parecem ser pseudônimos não são. Isso porque o verdadeiro autor, que realmente era quem alegava ser, usou um secretário, e o secretário escreveu em um estilo diferente daquele do próprio autor. Algumas vezes, o verdadeiro autor pode ter ditado uma carta a um secretário, palavra por palavra. Mas, em outras oportunidades, pode ter pedido ao secretário para retrabalhar a carta e melhorar o estilo. Em certos casos, um autor pode ter apenas pedido ao secretário que escrevesse uma carta para ele, de modo que tanto o conteúdo quanto o estilo da carta são do secretário, mesmo que a “autoridade” final seja do autor indicado. 

Essa é uma teoria muito popular; pode ser encontrada por toda parte em comentários bíblicos nas epístolas deuteropaulinas e petrinas. Isso explica por que 1 Pedro parece ter um estilo de redação diferente de 2 Pedro. Explica por que os pontos de vista da contestada epístola “paulina” aos Efésios parece diferir tão radicalmente dos pontos de vista da epístola não contestada aos romanos. Quase todos os problemas que tenho chamado de falsificações podem ser resolvidos caso secretários estivessem envolvidos na redação dos escritos cristãos iniciais. A despeito da popularidade dessa teoria, argumentarei, mais uma vez que não há evidências com credibilidade para sustentá-la.

Livros inteiros foram dedicados a essa questão em anos recentes. O mais completo e exaustivo é de E. Randolph Richards, intitulado The Secretary in the Letters of Paul.122 Richards examina todas as provas de secretários no mundo antigo. Ele vasculha diligentemente as cartas do mais famoso escritor de cartas de Roma, o estadista e filósofo Cícero. Na maioria dessas cartas, Cícero usou secretários. Richards avalia todas as outras grandes figuras do império que reconhecidamente usaram secretários (Bruto, Pompeu e Marco Aurélio, por exemplo). Examina toda evidência de secretários que consegue encontrar nas cartas antigas preservadas em papiros, a maioria descoberta no Egito ao longo do século passado. E estuda o que as próprias fontes cristãs antigas têm a dizer sobre cartas e secretários. É um estudo completo e muito útil. 

Não há dúvida de que o apóstolo Paulo eventualmente usou um secretário. Um de seus secretários nos conta que escreveu a carta! Em Romanos 16,22, lemos: “Eu, Tércio, que escrevi esta carta, vos saúdo no Senhor.” Tércio não quer dizer que foi o “autor” da carta. Foi o escriba que escreveu o que Paulo mandou que escrevesse. Paulo também usou um escriba para sua carta aos Gálatas, já que, no fim, ele diz a seus leitores: “Vede com que tamanho de letras vos escrevo, de próprio punho.” (6,11) Os comentaristas concordam que Paulo ditou a carta a um secretário, mas no fim estava escrevendo ele mesmo. Usou uma caligrafia maior por não ser tão habilidoso na escrita quanto o secretário, por ter problemas de visão e por isso escrever letras maiores, ou por outro motivo. 

Paulo usou um secretário para todas as suas cartas? Impossível dizer. Os secretários contribuíram com o conteúdo das cartas? Isso é mais fácil dizer. A despeito do que os estudiosos frequentemente alegam, todas as evidências de que dispomos sugerem que a resposta é não. A mesma evidência se aplica aos autores de 1 Pedro, 2 Pedro, e a todos os outros escritores cristãos iniciais.

 

Em seu estudo, Richards argumenta que os secretários foram usados de quatro formas distintas para escrever cartas. Na maioria das vezes, um secretário apenas registrava o que o autor ditava a ele, devagar, sílaba por sílaba; em uma espécie de estenografia quando o autor falava em velocidade normal; ou de alguma forma intermediária. Em outras oportunidades, um secretário recebia do autor o pedido de corrigir a gramática e melhorar o estilo do que o autor escrevera ou ditara. Em certos casos, alega Richards, o secretário era uma espécie de coautor que contribuía com seus próprios pensamentos e ideias para uma carta. E algumas vezes, afirma Richards, o secretário redigia toda uma carta para o autor, de modo que todas as palavras e ideias eram do secretário, mesmo que o autor assinasse o que ele havia escrito. 

Se secretários trabalhavam regularmente, ou pelo menos de vez em quando, dessas últimas formas, faria sentido que diferentes cartas do mesmo “autor” pudessem parecer muito diferentes uma da outra não apenas no estilo de redação, mas no conteúdo. Então, qual é a evidência de que funcionava desse jeito? 

Não há dúvida sobre a primeira categoria de Richards. Há muitas evidências — todas podem ser lidas no estudo de Richards — de que autores com frequência ditavam cartas em vez de eles próprios as escreverem. Quando isso acontecia, o autor era de fato o autor. Ele não levou a pena ao papiro, mas os pensamentos são os seus, as palavras são as suas, a gramática é a sua. Nenhum problema.

É    com as três outras categorias que começamos a ter problemas. Um problema muito grave é a natureza de nossas evidências. Quase todas elas são de autores muito ricos e poderosos, e atipicamente educados. Eram a elite máxima, o nível mais alto da elite culta: imperadores, cônsules e senadores. É uma questão legítima quão relevante é essa evidência para pessoas que pertenciam às classes inferiores, que poderiam ser medianamente educadas, o que as colocaria muito à frente da maioria das pessoas, claro, mas muito abaixo de um Cícero ou um Marco Aurélio. Os papiros — ou seja, as cartas particulares escritas pelas pessoas comuns em vez da nata da sociedade — não nos ajudam em nada na compreensão dessas três categorias. 

Outro problema diz respeito à natureza das “cartas” envolvidas. A maioria das cartas no mundo greco-romano era muito breve e objetiva. Tinham uma página ou menos. Apresentavam um conteúdo muito limitado. Mais comumente, o autor dizia quem era, indicava a quem estava escrevendo, fazia um rápido agradecimento aos deuses pelo destinatário, dava sua informação ou fazia seu pedido e assinava. Blá-blá-blá e pronto. 

A razão pela qual isso é um “problema” é que as cartas dos primórdios do cristianismo que nos interessam — a epístola aos Efésios, por exemplo, ou 1 Pedro — não são assim. São longos tratados em forma de carta que lidam com questões grandes e complexas. Elas têm as características estilísticas de cartas antigas: os nomes de autor e destinatário, uma graça, o corpo da carta e o encerramento. Mas são muito mais extensas que as cartas típicas, por exemplo, em suas exposições teológicas, exortações éticas e citações e interpretações de Escrituras. Essas “cartas” do Novo Testamento, na verdade, parecem ensaios em forma de carta — de modo que as evidências derivadas das breves cartas estereotipadas, em geral encontradas em círculos gregos e romanos, não necessariamente se aplicam às “cartas” dos primeiros cristãos. 

Com essas restrições em mente, o que podemos dizer sobre as três outras categorias que Richards apresenta: secretários que melhoram o estilo de um autor, que são coautores da carta ou que redigem a carta? Há algumas evidências, embora limitadas, de que eventualmente os secretários eram solicitados a melhorar o estilo de um autor. A evidência é toda dos estratos superiores da classe alta da antiga Roma, uma carta do comandante militar Bruto e outra do imperador Marco Aurélio, por exemplo. É difícil saber se esse procedimento era muito usado, ou alguma vez usado fora dos círculos ultrarricos da aristocracia proprietária de terras. 

A evidência dos outros tipos de cartas — pelo menos como citadas por Richards — é quase inexistente, como ele mesmo diz. Ao falar sobre a possibilidade de que algumas cartas tenham sido escritas em parceria por autor e seu secretário, Richards indica um possível exemplo: cartas escritas por Cícero e seu secretário Tiro. Mas depois Richards ameniza a sugestão de que Tiro foi coautor de cartas com Cícero e mostra por que a sugestão provavelmente é errada. De forma marcante, este é o único exemplo que Richards cita antes de concluir: “É evidente, então, [...] que secretários eram usados como coautores!” É difícil entender o que torna isso “evidente” quando ele não citou um único caso. Talvez outros estudiosos (ou o próprio Richards) possam um dia encontrar alguma evidência.

Há um problema similar com a ideia de que secretários algumas vezes redigiam cartas em nome de outra pessoa. É verdade que analfabetos algumas vezes contratavam os serviços de um secretário escriba para redigir uma transmissão de terras, uma certidão de casamento, recibo de vendas ou outro documento, e que eventualmente (ainda que bem pouco) usavam secretários escribas para redigir breves cartas estereotipadas. Mesmo as classes superiores algumas vezes instruiriam um secretário a produzir uma rápida carta estereotipada em seu nome para alguém, como evidenciado em várias oportunidades no caso de Cícero. No que diz respeito às evidências de Cícero, apenas ele fazia isso. Mas redigir uma breve carta estereotipada é completamente diferente de compor uma carta longa, detalhada, bem-argumentada, cuidadosamente refletida e cheia de nuances, como 1 Pedro ou Efésios. Que evidência há de que a redação de cartas-ensaio desse tipo já foi dada a um secretário? Não há nenhuma de que eu tenha conhecimento. 

Richards também não encontrou nenhuma evidência. Quando Cícero pediu que um secretário redigisse uma rápida carta estereotipada e fizesse parecer com que saíra dele, ele estava fazendo algo que nenhuma outra pessoa na Antiguidade é conhecida por ter feito. Como o próprio Richards diz: “É tentador concluir que um pedido de autor por um embuste era de fato raro, talvez singularmente limitado a Cícero e naquele momento de sua vida” (isto é, quando ele estava velho, cansado e sem disposição de escrever uma carta).123 

E quanto a outros secretários que possam ter redigido uma carta (ao menos uma carta-ensaio) para outro autor? Mais uma vez, segundo Richards: “Em parte alguma havia qualquer indício de que um secretário comum tenha sido solicitado a redigir, muito menos supostamente redigido uma carta para o autor.” Ao contrário, “sem uma referência explícita ao uso de um secretário como redator de uma carta, esse método secretarial provavelmente não deveria sequer ser considerado uma opção válida”.124 Certamente não há tal referência explícita nas cartas deuteropaulinas ou petrinas. 

Não tenho conhecimento de uma única evidência ou uma única analogia sugerindo que Pedro ou Paulo usaram um secretário que tenha, significativamente ou não, contribuído para o conteúdo da carta. Por isso, é importante considerar não só o estilo de redação, mas também o conteúdo ao avaliar se Paulo escreveu ou não, digamos, Efésios ou 1 Timóteo, ou se Pedro escreveu ou não 1 ou 2 Pedro. Quando uma pessoa alegava ter escrito uma carta, assumia o conteúdo. Algumas vezes, uma carta atribuída a Paulo está em contradição com o que Paulo diz em outro ponto, como quando Efésios difere da visão de Paulo sobre a ressurreição dos crentes em sua carta aos romanos. Como secretários não produziram o conteúdo de cartas (pelo menos cartas-ensaio desse tipo), um secretário não podia ser responsável pela diferença. Então, provavelmente, de modo algum Paulo foi responsável pela carta questionada. Em outros momentos, o que se encontra em uma carta pode, de forma plausível, ser explicado como sendo do autor indicado. Quem escreveu 1 Pedro, por exemplo, foi um cristão de língua grega muito educado que sabia como usar recursos retóricos gregos e podia citar o Antigo Testamento grego com elegância e sutileza. Isso não se aplica ao pescador sem educação, analfabeto, de língua aramaica do interior da Galileia, e ela não parece ter sido produzida por um secretário agindo em seu nome.

Como apontei no capítulo 2, também ajuda pensar de que forma a hipótese do secretário poderia explicar como o próprio Pedro poderia ter escrito 1 Pedro. Ele não poderia ter ditado a carta a um secretário, porque não tinha formação em técnicas gregas de composição e retórica. Nem poderia ter ditado a carta em aramaico e pedido que o secretário a traduzisse para o grego, porque a carta contém formas sofisticadas de argumentação e apresentação que funcionam apenas em grego e pressupõem conhecimento do Antigo Testamento grego, não da versão hebraica que o próprio Pedro provavelmente conhecia. E não parece possível que Pedro tenha dado a ideia geral do que desejava dizer, e um secretário tenha redigido a carta para ele em seu nome, já que, para começar, o então secretário, e não Pedro, seria o verdadeiro autor da carta, e, segundo e ainda mais importante, não parece haver qualquer analogia de um procedimento assim no mundo antigo. 

Os historiadores têm de decidir o que provavelmente aconteceu no passado. O que é mais provável: um cenário que não tem qualquer analogia conhecida (Pedro pedindo a alguém para escrever um tratado em seu nome) ou um cenário com muitas analogias, já que acontecia o tempo todo? Falsificações aconteciam o tempo todo. Certamente essa é a melhor explicação para o que está acontecendo aqui. 

O mesmo se aplica às cartas com o nome de Paulo que ele não escreveu, nas quais o conteúdo, não apenas o estilo, difere significativamente dos pontos de vista do próprio Paulo. Essas cartas não foram produzidas por secretários. Foram produzidas por autores cristãos posteriores, alegando ser Paulo. Consequentemente, a hipótese do secretário, por mais promissora que pareça à primeira vista, não consegue explicar as falsificações do Novo Testamento. 

CONCLUSÃO 

Posso amarrar estes quatro primeiros capítulos fazendo uma série de afirmações resumidas. Houve muitas falsificações literárias nos primórdios do cristianismo; algumas podem ser encontradas no Novo Testamento. Elas são falsificações, livros cujos autores alegam ser personagens de autoridade bem conhecidos, embora sejam outra pessoa. Alguns estudiosos hoje evitam o termo “falsificação” e chamam esses escritos de pseudônimos ou pseudoepigráficos; tecnicamente, esses termos estão corretos, mas são imprecisos. Escritos pseudônimos incluem escritos produzidos por um nome fantasia, e nenhum dos escritos que analisamos se encaixa nessa categoria. Escritos pseudoepigráficos incluem escritos originalmente anônimos que mais tarde foram erroneamente atribuídos a figuras conhecidas. Os livros de que estamos falando aqui são de autores que mentiram sobre sua identidade para levar seus leitores a pensar que eram alguém que não eram. O termo técnico para esse tipo de atividade é falsificação. 

A falsificação na Antiguidade era diferente da falsificação hoje em alguns aspectos importantes, e essas diferenças precisam ser sempre levadas em consideração. O mais importante: atualmente, falsificação conota uma atividade ilegal que pode colocar a pessoa na cadeia. No mundo antigo, não

havia leis contra tais coisas, então a prática não podia ser considerada ilegal. Mas essa diferença não 

é   suficientemente significativa para exigir que usemos um termo diferente para a prática. “Livros” no mundo antigo, por exemplo, eram muito diferentes dos livros de hoje. Eram escritos em rolos, e não eram produzidos em massa. Ainda assim, isso não impede ninguém de chamá-los de livros. As falsificações no mundo antigo eram de algumas formas diferentes das falsificações hoje, mas ainda são falsificações. 

As conotações negativas do termo são adequadas ao fenômeno antigo. Autores antigos chamavam tais obras de falsamente atribuídas, mentiras e “filhos ilegítimos”. Muitas tentativas de estudiosos modernos verem a prática sob uma luz mais favorável apenas não resistem ao escrutínio. As alegações mais comuns, tanto entre acadêmicos quanto entre leigos, são de que a prática era aceita em escolas filosóficas ou que o fenômeno pode ser explicado supondo que um autor se valeu de um secretário que redigiu o escrito. Nenhuma das explicações se baseia em fontes antigas. 

É       importante recordar que escritores antigos que mencionam a prática de falsificação consistentemente a condenam e indicam que é enganosa, inadequada e errada. Se devemos fazer o mesmo, provavelmente depende de vários fatores. Leitores modernos comprometidos religiosamente com os ensinamentos do Novo Testamento podem querer desculpar os autores que enganaram seus leitores sobre sua identidade alegando, por exemplo, que eles mentiam com o objetivo de produzir um bem maior. Outros leitores podem estar inclinados a reconhecer que os autores violaram antigos padrões éticos e são mais bem-descritos como tenho feito então aqui — falsificadores.

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