7) Capítulo Sete - Falsas atribuições, invenções e contrafações: fenômenos relacionados a falsificações

Capítulo Sete - Falsas atribuições, invenções e contrafações:  fenômenos relacionados a falsificações 

    Ao longo de todo este livro, me concentrei em falsificação “literária”, uma fraude em que o autor de um texto literário alega ser outra pessoa. Todos também conhecemos outros tipos de falsificações não literárias: falsificações de documentos — falsos testamentos, certidões de casamento, carteiras de motorista, outros tipos de identificação —, obras de arte, dinheiro etc. Em todos esses casos, o falsificador pretende enganar e desorientar as pessoas para seus próprios objetivos. 

Há muitas outras formas de enganar as pessoas. Algumas vezes pode ser escondendo a verdade, por exemplo, distorcendo ou não a contando toda, como fez o presidente americano por meses durante o fiasco Monica Lewinsky; ou eliminando evidências que possam revelar a verdade, como quando outro presidente anterior, ou um de seus lacaios, apagou trechos cruciais das fitas de Watergate. Algumas vezes, o logro se dá manipulando a verdade, como aconteceu quando os povos americano e britânico, e possivelmente seus representantes eleitos, foram mal-informados sobre a ameaça aos Estados Unidos, apresentada pelo Iraque estocando armas de destruição em massa. Algumas vezes, o embuste se dá quando as pessoas exageram sobre si mesmas ou sua obra, como quando James Frey afirmou que seu livro Um milhão de pedacinhos era autobiográfico quando, na verdade, era ficcional, provocando a ira não apenas de milhões de possíveis leitores, mas também da própria grande Oprah Winfrey. E algumas vezes o logro acontece quando alguém alega ser sua a obra de outra pessoa, como em casos de plágio, algo que está se tornando uma epidemia em campi universitários de todos os Estados Unidos graças à dádiva e a perdição da existência humana moderna, a internet. 

Todas essas formas alternativas de logro também estavam disponíveis na Antiguidade, com exceção da internet. Para completar meus estudos da falsificação, gostaria de abordar algumas delas neste capítulo, limitando-me às formas literárias de desinformação. A primeira não é necessariamente uma forma de logro; é o outro tipo de pseudoepigrafia que mencionei no começo da discussão. Enquanto algumas pseudoepigrafias — escritos sob um “falso nome” — são falsificações, outras envolvem “falsas atribuições”; nesse caso, alguém que não o autor alega que um texto anônimo foi escrito por alguém conhecido. Algumas vezes pode ser uma forma de embuste — embora não pelo autor. Em outras, é apenas um equívoco bem-intencionado.

FALSAS ATRIBUIÇÕES 

Era muito mais comum escrever um livro de forma anônima na Antiguidade do que é hoje. Apenas nas páginas do Novo Testamento, nove dos livros — um terço dos escritos — foram produzidos por autores que não revelaram seus nomes. Porém, quando os pais da Igreja estavam decidindo quais livros incluir nas Escrituras, era necessário “saber” quem escrevera esses livros, já que apenas escritos com claras ligações apostólicas podiam ser considerados Escritura oficial. Então, por exemplo, quatro evangelhos antigos anônimos começaram a circular com os nomes de Mateus, Lucas, Marcos e João cerca de um século após terem sido escritos. O livro dos Atos era atribuído ao autor do terceiro evangelho, motivo pelo qual Lucas herdou sua autoria. O livro anônimo de Hebreus foi atribuído a Paulo, embora muitos antigos estudiosos cristãos soubessem que Paulo não o escrevera, como os acadêmicos hoje concordam. E três curtos escritos anônimos com algumas semelhanças com o quarto evangelho foram atribuídos a esse mesmo autor, e chamados de 1, 2 e 3 João. Nenhum desses livros é atribuído ao verdadeiro autor. Mas, como os verdadeiros autores não os reivindicaram, os livros não são falsificações. São falsas atribuições — supondo, por ora, que os nomes ligados a eles não são os das pessoas que os escreveram. 

Atribuições incorretas por equívoco 

Com frequência, nos primórdios do cristianismo, escritos eram atribuídos a certos autores por motivos bastante neutros — os leitores só queriam saber quem os havia escrito. A título de exemplo simples, nos séculos III e IV, circulava um livro intitulado Contra todas as heresias. O livro, que ainda existe hoje, dá uma descrição de 32 indivíduos ou grupos que sustentavam crenças que o autor anônimo considerava falsas. Um dos grandes heresiólogos — ou seja, caçador de heresias — dos primeiros séculos cristãos foi Tertuliano, no começo do século III. Alguns leitores de Contra todas as heresias passaram a achar que, embora o livro fosse anônimo, devia ter sido escrito por ele. Escribas que copiaram o livro identificaram Tertuliano como o autor, e o livro foi adicionado ao conjunto de suas obras, embora nunca alegue ter sido escrito por ele. 

Estudiosos modernos estão convencidos, com base em estilo, que Tertuliano não escreveu o livro. Então quem o fez? Temos conhecimento de um livro com esse título escrito pelo autor da Igreja Victorinus de Pettau, que atuou por volta de 270 d.C., meio século depois de Tertuliano. Alguns acadêmicos acharam que esse é o livro que chegou a nós.170 Outros argumentaram que foi escrito por um autor desconhecido setenta anos antes, em grego, e não no latim de Tertuliano, de modo que o livro que conhecemos é uma tradução para o latim de uma obra originalmente anônima. A realidade é que nunca teremos certeza. Os leitores e escribas do mundo antigo que pensaram que Tertuliano o escrevera provavelmente estavam errados, mas poderia não haver outro motivo para essa atribuição.

 

Eles podem ter cometido um erro. 

Atribuições feitas para aumentar a autoridade de um escrito 

Em outros casos, a atribuição de um escrito a um autor pode ser feita para dar maior peso ao seu significado. Por exemplo, um dos mais antigos escritos cristãos fora do Novo Testamento é uma carta enviada da igreja de Roma aos cristãos de Corinto, conclamando-os a reempossar um grupo de anciões que tinha sido indevidamente afastado dos cargos. O livro é tradicionalmente conhecido como 1 Clemente. É uma carta longa — 65 capítulos nas edições modernas — que usa muitos argumentos retóricos e das Escrituras para provar sua tese, a de que os líderes da Igreja têm autoridade divina e não devem ser substituídos gratuitamente ou pelo voto da congregação local. Qualquer um que aja contra a liderança da Igreja o faz por inveja profana. A igreja de Corinto deve devolver seus líderes a seus devidos lugares. 

Embora a carta seja atribuída a “igreja” de Roma, obviamente alguém a escreveu, não centenas de pessoas integrando uma comissão de redação de cartas. A carta acabou atribuída a um personagem que já conhecemos em nosso estudo, Clemente de Roma, que fora escolhido para o cargo por ninguém menos que Simão Pedro, o grande discípulo de Jesus e apóstolo da Igreja. Assim que o nome de Clemente foi associado à carta, ela ganhou mais força e poder de persuasão. Não é apenas uma longa exortação escrita por um grupo de indivíduos desconhecidos e não identificados. É um livro escrito por uma das grandes autoridades dos primórdios da Igreja cristã. Em grande parte, como resultado dessa atribuição, a carta fez muito sucesso nos primórdios da Igreja. Alguns cristãos achavam que deveria ser incluída entre os escritos do Novo Testamento.171 

Atribuições incorretas dos evangelhos 

Alguns escritos anônimos foram posteriormente considerados merecedores de integrar as Escrituras cristãs. Mas isso nunca acontecera, até se saber, ou pelo menos ser alegado, que os livros foram escritos com autoridade apostólica. É o caso dos quatro evangelhos do Novo Testamento, todos originalmente anônimos e mais tarde ligados aos nomes dos apóstolos e companheiros apostólicos. 

É    interessante questionar por que um autor escolheu permanecer anônimo, e isso vale sobretudo para os evangelhos do Novo Testamento. Em alguns casos, um autor antigo não precisava se identificar porque seus leitores sabiam muito bem quem ele era sem que fosse dito. Provavelmente, esse é o caso das epístolas 2 e 3 João. São cartas particulares enviadas por alguém que chama a si mesmo de “o ancião” a uma igreja em outro local. É seguro supor que os destinatários das cartas sabiam quem ele era.

Alguns acreditaram que os evangelhos foram escritos por pessoas de destaque em determinadas congregações que não precisavam se identificar porque todos sabiam quem eram. Mas, à medida que os livros eram copiados e circulavam, isso acontecia sem que nomes fossem ligados a eles. Como resultado, em pouco tempo, foram perdidas as identidades dos autores. Dessa forma, leitores posteriores, correta ou incorretamente, associaram os livros a dois dos discípulos (Mateus e João) e a dois companheiros dos apóstolos (Marcos, companheiro de Pedro, e Lucas, companheiro de Paulo). 

Outra opção é que os autores não tenham se identificado por achar que suas narrativas ganhavam mais autoridade se contadas de forma anônima. Se as histórias dos evangelhos sobre Jesus são reivindicadas por um determinado autor, de certa forma, parecem perder seu apelo e sua aplicação universais; são vistas como a versão de uma pessoa para a história, não “a” versão da história. 

Há uma razão específica para pensar que foi isso o que os autores dos evangelhos tinham em mente. Envolve o modo como as narrativas são escritas. Nos quatro evangelhos, a história de Jesus é apresentada como uma continuação da história do povo de Deus, de acordo com a narrativa da Bíblia judaica. Os trechos do Antigo Testamento que contam a história de Israel após a morte de Moisés são encontrados nos livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. Todos esses livros são anônimos. Eles acompanham a história do povo de Deus desde a conquista da terra prometida (Josué) até seus altos e baixos sob governantes carismáticos chamados juízes (o livro Juízes), e depois uma série de reis (1 Samuel e 2 Reis). Essa história bíblica inclui uma promessa ao primeiro rei verdadeiramente grande, Davi, de que ele sempre teria um descendente no trono de Israel (2 Samuel 7,14). Mas a história termina em tragédia quando os Exércitos babilônicos arrasam a nação e derrubam o rei (fim de 2 Reis). 

Muitos judeus esperavam que no futuro Deus cumprisse Sua promessa a Davi e trouxesse um novo ungido, um novo “messias”, para governar seu povo, Israel. Os evangelhos são escritos para mostrar que esse novo messias era ninguém menos que Jesus (ver Marcos 1,1; João 20,30-31). Na verdade, Jesus era diferente do tipo de messias que outros judeus esperavam.172 Em vez de surgir como um grande rei, como Davi, ele veio como um profeta falando do futuro Reino de Deus. Ele mesmo traria esse reino não sendo instalado como rei em Jerusalém, mas morrendo na cruz para oferecer a salvação. Era uma salvação não dos inimigos de Israel, os romanos, mas dos maiores inimigos de Deus, os poderes do pecado e da morte. Jesus derrotou esses poderes externos em sua morte e ressurreição, e logo voltará como rei da Terra. 

Essa é a mensagem dos evangelhos, e é apresentada nesses livros como uma continuação da história anônima de Israel como disposta nas Escrituras do Antigo Testamento. Isso pode ser visto, por exemplo, no mais antigo evangelho, o de Marcos, que começa citando uma série de profecias do Antigo Testamento que antecipam o advento do messias e depois apresentando Jesus como aquele apontado por essas profecias. Isso pode ser visto nos evangelhos de Mateus e Lucas, que retratam o nascimento de Jesus como a realização das previsões das Escrituras, usando imagens e linguagem muito baseadas nas narrativas do Antigo Testamento para dar a suas histórias iniciais um clima “bíblico”. Isso pode ser visto até no Evangelho de João, que começa com um poema forte sobre Cristo vindo ao mundo no fim dos tempos, em termos que lembram muito as histórias da Criação no livro do Gênesis (Gênesis: “No princípio, Deus criou os céus e a terra”; João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus”). 

Os autores dos evangelhos, cada um a seu modo, parecem retratar a história de Jesus como uma continuação da história do povo de Deus, Israel. Ele é a realização de tudo que foi antecipado pelos autores e profetas do Antigo Testamento. Faz sentido que esses autores dos evangelhos permaneçam anônimos, pois os escritores da história bíblica eram quase sempre anônimos. 

O anonimato dos escritores dos evangelhos foi respeitado durante décadas. Quando os evangelhos do Novo Testamento eram referidos ou citados por autores do começo do século II, nunca eram intitulados, nunca nomeados. Mesmo Justino Mártir, escrevendo por volta de 150-160 d.C., cita versículos dos evangelhos, mas não indica que eles tinham nomes. Para Justino, esses livros eram conhecidos coletivamente como as “Memórias dos apóstolos”. Cerca de um século após os evangelhos começarem a circular, eles foram definitivamente chamados de Mateus, Marcos, Lucas e João. Isso acontece pela primeira vez nos escritos do pai da Igreja e futuro heresiólogo Irineu, por volta de 180-185 d.C. 

Irineu escreveu uma obra em cinco volumes conhecida hoje como Contra as heresias, dirigida contra os falsos ensinamentos comuns entre os cristãos de sua época. Em dado momento, nesses escritos, ele defende que “heréticos” (isto é, “falsos mestres”) se desencaminharam por usar evangelhos que não eram realmente evangelhos, ou por usar apenas um ou outro dos quatro evangelhos legítimos. Alguns grupos heréticos usavam apenas Mateus, outros apenas Marcos, e assim por diante. Para Irineu, assim como o evangelho de Cristo tinha sido espalhado pelos quatro ventos do céu, para os quatro cantos da Terra, só poderia haver quatro evangelhos, e eles são Mateus, Marcos, Lucas e João.173 

Leitores modernos talvez não achem muito fascinante esse tipo de lógica, mas não é difícil entender por que escritores ortodoxos como Irineu queriam reforçar esse ponto. Havia muitos evangelhos circulando. Os cristãos que queriam apelar à autoridade dos evangelhos tinham de saber quais eram legítimos. Para Irineu e seus colegas cristãos ortodoxos, evangelhos legítimos só poderiam ser aqueles com autoridade apostólica por detrás. A autoridade de um evangelho estava na pessoa de seu autor. Portanto, o autor precisava ter autoridade, ou sendo um apóstolo, ou um companheiro íntimo de um apóstolo que pudesse contar as histórias do evangelho sob sua autoridade. No ano de 155, quando Justino escrevia, ainda era aceitável citar os evangelhos sem atribuí-los a autores específicos. Mas, em pouco tempo, havia tantos outros evangelhos circulando que os livros citados pelos cristãos ortodoxos precisavam receber credenciais apostólicas. Eles então começaram a ser conhecidos como Mateus, Marcos, Lucas e João. 

Por que esses nomes foram escolhidos no fim do século II? Durante algumas décadas, circularam boatos de que dois personagens importantes dos primórdios da Igreja haviam escrito relatos dos ensinamentos e das atividades de Jesus. Encontramos esses boatos já nos escritos do pai da Igreja, Pápias, por volta de 120-130 d.C., quase meio século antes de Irineu. Pápias alegava, com base em boa autoridade,174 que o discípulo Mateus havia escrito as falas de Jesus em idioma hebraico e que outros providenciaram traduções, presumivelmente para o grego. Ele também disse que o companheiro de Pedro, Marcos, reorganizara a pregação de Pedro sobre Jesus em uma ordem lógica e com isso criara um livro.175 

Nada indica que, quando Pápias se refere a Mateus e Marcos, esteja se referindo aos evangelhos que mais tarde foram chamados de Mateus e Marcos. Na verdade, tudo que ele diz sobre esses livros contradiz o que sabemos sobre (nossos) Mateus e Marcos: Mateus não é uma coletânea de falas de Jesus, mas também de suas proezas e experiências; não foi escrito em hebraico, mas em grego; e não foi escrito — como supõe Pápias — independentemente de Marcos, mas com base no Evangelho de Marcos. Quanto a ele, não há nada em nosso Marcos que leve a pensar que era a versão de Pedro da história; não mais do que é a versão de qualquer outro personagem do relato (por exemplo, João, filho de Zebedeu). Não há nada sugerindo que Marcos foi baseado nos ensinamentos de qualquer pessoa, muito menos Pedro. Em vez disso, deriva da tradição oral sobre Jesus que “Marcos” ouvira quando circulava havia algumas décadas. 

Por fim, acabou sendo necessário atribuir nomes de autores aos quatro evangelhos mais utilizados nos círculos ortodoxos, para distingui-los dos “falsos” evangelhos usados por heréticos. Não é difícil identificar esse processo no primeiro e no quarto evangelhos. Como se acreditava que Mateus havia escrito um evangelho (daí Pápias), um dos evangelhos recebeu seu nome, aquele que parecia ser o mais judaico em sua orientação, uma vez que, afinal, Mateus era judeu. Acreditava-se que o quarto evangelho pertencia a um personagem misterioso citado no livro como “o discípulo amado” (ver, por exemplo, João 20,20-24), que precisaria ter sido um dos seguidores mais próximos de Jesus. Em nossas tradições iniciais, os três mais próximos de Jesus eram Pedro, Tiago e João. Pedro era citado explicitamente no quarto evangelho, por isso não poderia ser o discípulo amado; Tiago era conhecido por ter sido martirizado nos primórdios da história da Igreja, portanto não poderia ter sido o autor. Isso permitia que fosse João, o filho de Zebedeu. Então, foi atribuída a ele a autoria do quarto evangelho. 

Alguns estudiosos argumentaram que não faria sentido atribuir o segundo e o terceiro evangelhos a Marcos e Lucas a não ser que os livros tivessem sido escritos por pessoas chamadas Marcos e Lucas, já que eles não tinham sido discípulos de Jesus na Terra e eram figuras obscuras nos primórdios da Igreja. Nunca achei muito persuasivos esses argumentos. Para começar, só porque certas figuras podem nos parecer obscuras hoje, não significa que fossem obscuras em círculos cristãos nos primeiros séculos. Ademais, nunca se deve esquecer que havia muitos livros atribuídos a pessoas sobre as quais sabemos muito pouco, como Filipe, Tomé e Nicodemos. Marcos com certeza não era obscuro; ele foi companheiro de Paulo, e acredita-se que braço direito de Pedro, de modo que o que escreveu pode ser aceito como a versão de Pedro do evangelho. Essa ligação é estabelecida não apenas em Pápias, mas também nos escritos de Tertuliano, que afirma explicitamente: “O que Marcos publicou pode ser afirmado como de Pedro, cujo intérprete foi Marcos.”176 

Com relação ao terceiro evangelho, seu autor também escreveu o livro de Atos, e lá ele alega implicitamente ter sido um companheiro de Paulo. Como Atos diz que o cristianismo fez sucesso principalmente entre os gentios, o próprio autor poderia ser gentio. Como se acreditava que havia um gentio chamado Lucas entre os companheiros de Paulo, foi atribuído a ele o terceiro evangelho. 

A autoridade dos evangelhos estava garantida: dois deles supostamente tinham sido escritos por testemunhas oculares dos acontecimentos que narram (Mateus e João), e os outros dois, do ponto de vista dos dois maiores apóstolos, Pedro (o Evangelho de Marcos) e Paulo (o Evangelho de Lucas). Contudo, nenhum desses livros parece escrito por uma testemunha ocular da vida de Jesus ou companheiros de seus dois grandes apóstolos.177 Para meus propósitos aqui, basta enfatizar mais uma vez que os livros não foram escritos por essas pessoas, e inicialmente não se supunha que tinham sido escritos por elas. Os autores desses livros nunca falam na primeira pessoa (o primeiro evangelho nunca diz: “Certo dia, Jesus e eu fomos a Jerusalém...”). Nunca alegam estar ligados pessoalmente a qualquer dos acontecimentos que narram ou às pessoas sobre as quais contam histórias. Os livros são inteira, clara e invariavelmente anônimos. Ao mesmo tempo, cristãos posteriores tiveram ótimos motivos para atribuir os livros a pessoas que não os escreveram.

Consequentemente, os autores desses livros não são os próprios fazendo falsas alegações de autoria. Leitores posteriores fazem essas alegações sobre eles. Portanto, eles não são falsificações, mas falsas atribuições. 

Outras falsas atribuições 

Em grande medida pode ser dito o mesmo dos outros livros anônimos do Novo Testamento. Os estudiosos são quase unânimes em achar que Paulo não escreveu a epístola aos hebreus, embora ela tenha sido incluída no cânone do Novo Testamento pelos pais da Igreja.178 As epístolas 1, 2 e 3 João, em muitos sentidos, parecem com o Evangelho de João, mas também são muito diferentes, sobretudo no contexto histórico que pressupõem. É provável que elas não tenham sido escritas pelo mesmo autor, que de qualquer forma não era João, o filho de Zebedeu, mas um cristão posterior que viveu na mesma comunidade, que começara a experimentar uma gama de problemas diferente daqueles pressupostos no quarto evangelho. Mas escritores cristãos posteriores que aceitaram os livros como autoridades sagradas precisaram atribuí-los a um apóstolo, por isso fazia sentido alegar que eles, assim como o quarto evangelho, tinham sido escritos por João, o filho de Zebedeu. 

Atribuir livros anônimos a autoridades conhecidas não terminou com os escritos do Novo Testamento. Apenas para dar um exemplo, eu poderia mencionar um dos livros mais interessantes a não entrar no cânone das Escrituras. Durante séculos, houve cristãos achando que o livro deveria ser incluído. Acho que todos podemos ficar contentes por não ter sido. O livro oferece um dos ataques mais virulentos a judeus e ao judaísmo nos primórdios do cristianismo. Se ele tivesse sido incluído nas Escrituras, as relações judaico-cristãs teriam sido ainda piores do que foram, se é que isso pode ser imaginado. Esse livro foi originalmente escrito no anonimato, mas depois atribuído a um dos mais íntimos companheiros e colegas de Paulo, de modo que é conhecido como a Epístola de Barnabé.179 

Esse livro é um pouco como uma carta no sentido em que o autor a dirige a um grupo de leitores, mas na verdade é mais como um longo ensaio. O objetivo é mostrar a superioridade do cristianismo em relação à religião judaica. O autor mostra isso atacando o judaísmo como uma religião que é e sempre foi falsa, desde a época do próprio Moisés. Isso porque, segundo seu autor, os antigos israelitas romperam o pacto que Deus fizera com eles nos primórdios, quando Moisés recebeu os Dez Mandamentos. Quando Moisés desceu do monte Sinai com os mandamentos nas mãos, viu que o povo cometera idolatria. Com raiva, ele jogou no chão as duas tábuas da lei, fazendo-as em pedaços. Segundo o autor de Barnabé, isso representou a ruptura do pacto (4,7-8; 14,1-4). E Deus nunca renovou o pacto com os judeus. Eles estavam perdidos desde aquele dia em diante. 

Os judeus receberam mais leis de Moisés, incluindo um novo conjunto de Dez Mandamentos. Mas, como eles haviam se afastado de Deus, nunca entenderam essas leis e cometeram o erro fatal de supor que Deus queria que fossem entendidas literalmente, e não simbolicamente. Por conseguinte, os judeus sempre entenderam errado suas próprias leis. Quando Deus ordena que os judeus não comam porco, por exemplo, não quer que eles evitem esse animal. Quer dizer que as pessoas não devem se comportar como o suíno, grunhindo alto quando com fome, mas ficando em silêncio quando saciados. As pessoas devem se voltar para Deus com suas preces não apenas quando necessitadas, mas também quando as coisas vão bem (10,1-3). 

Da mesma forma, quando Deus ordena que o sabá seja respeitado, não quer que as pessoas sejam ociosas um dia da semana. O sétimo “dia” deve ser entendido simbolicamente, tendo em mente que “um dia diante do Senhor é como mil anos, e mil anos, como um dia”. O mandamento do sabá significa que o dia do sabá, o milênio, deve ser esperado e antecipado pelo povo de Deus. A Criação durará seis dias — seis mil anos —, depois do que haverá na Terra um período de mil anos em que Deus e seu povo reinarão supremos. Os judeus não entenderam a mensagem e supuseram que Deus queria que eles não trabalhassem aos sábados (15,1-9). 

Barnabé repassa várias das leis do Antigo Testamento para demonstrar que Deus nunca quis que elas fossem seguidas literalmente, mas entendidas de forma alegórica. Como os judeus não entenderam isso, nunca foram o verdadeiro povo de Deus. São os seguidores de Jesus que têm a verdadeira interpretação das Escrituras. Desse modo, os judeus não são o povo de Deus; os cristãos, sim. E o Antigo Testamento não é um livro judaico, mas cristão. 

Essa carta foi originalmente publicada no anonimato, talvez porque os primeiros leitores sabiam quem a havia escrito. Ela não poderia ser de um dos colegas e companheiros mais próximos de Jesus, Barnabé, porque só apareceu muitos anos após sua morte — em geral datada de 130-135 d.C. Mas por que acabou sendo atribuída a ele? Ninguém sabe ao certo, mas acho que se pode dizer que alguns leitores do livro quiseram destacar algo em particular com a atribuição, algo relativo às divergências existentes no cristianismo, no século II, cerca de cinquenta anos após o livro ter sido escrito. 

No fim do século II, uma das maiores ameaças ao cristianismo “ortodoxo” era a igreja mundial estabelecida por Marcião e seus seguidores. Como se lembram, Marcião reivindicara a autoridade de Paulo para sua visão de que havia dois deuses: o inferior raivoso do Antigo Testamento e o superior amoroso de Jesus. Paulo era visto como o verdadeiro representante da mensagem do Cristo, aquele que entendia que a salvação independe da lei judaica. Marcião levou ao extremo a diferença estabelecida por Paulo entre o evangelho de Cristo e a lei dos judeus, de modo que não havia ligação entre eles. Cristo representava um Deus diferente. O Deus do Antigo Testamento, o Deus dos judeus, da Criação e da Lei, deveria ser evitado pelos cristãos em vez de venerado por eles. 

Marcião, portanto, rejeitava o Antigo Testamento, alegando não ter nada a ver com o evangelho de Jesus. A Epístola de Barnabé assume um ponto de vista diferente. Na verdade, pode-se argumentar que assume o ponto de vista oposto. Ali, em vez de não ter qualquer relação com o cristianismo e a mensagem de Jesus, o Antigo Testamento tem tudo a ver com eles. É o livro cristão por excelência, pois proclama o evangelho de Cristo — simbolicamente. 

Por que, então, atribuir o livro ao companheiro mais próximo de Paulo? Porque ao fazer isso, o livro se torna o ponto de vista do verdadeiro Paulo, em oposição ao Paulo de Marcião, que em tese não tem nada a ver com o Antigo Testamento e suas leis. Agora Paulo, por intermédio de Barnabé, proclama a verdadeira mensagem. O Antigo Testamento é Escritura. É a verdade de Deus. É uma proclamação do evangelho de Cristo. É um livro cristão. 

Portanto, ao atribuir esse tratado popular a Barnabé, os adversários de Marcião puderam reivindicar Paulo para seu ponto de vista e mostrar que o apóstolo defendia uma compreensão do cristianismo que divergia das visões defendidas pelo principal herético do século II, que reivindicara Paulo para si. 

INVENÇÕES 

Como já indiquei, uma falsa atribuição não é necessariamente um embuste; pode ser um equívoco ou a “aposta” de alguém sobre o autor de uma obra anônima. Meu palpite é que a maioria dos escritores que alegou que uma determinada pessoa famosa era autora deste ou daquele escrito provavelmente acreditava estar certa, soubesse ou não ser verdade. O mesmo não pode ser dito de falsificadores. Quem escreveu 1 Timóteo sabia não ser o apóstolo Paulo. Ele inventou isso. 

Outros tipos de literatura também são “inventados”. Mas, como no caso das falsas atribuições, nem sempre fica claro que a pessoa que escreve esse tipo de literatura sabe ser inventada. Ela pode achar que o que diz é acurado. Quando isso envolve narrativas históricas, talvez acredite que o que diz é historicamente factual, mesmo com seu relato sendo lendário. Mas, em algum momento, alguém no fim sempre surge com um relato lendário. Claro que sempre é possível que, mesmo nesses casos, o autor que apresenta a história pense que ela tenha acontecido. E, algumas vezes, as histórias parecem sair do nada. Mas em muitos casos a pessoa que inventa a história sem dúvida sabe o que faz. 

Vimos várias histórias inventadas em livros forjados. Seja lá quem forjou o Evangelho de Pedro escreveu o relato de Jesus saindo do túmulo tão alto que sua cabeça se erguia acima dos céus, com uma cruz que falava e andava saindo atrás dele. Isso não é narrativa histórica; é ficção. Eu chamaria de “invenção”, ou seja, uma “história criada que tenta se passar por histórica”. 

Em muitos casos, invenções acabam disseminadas por autores anônimos que não são falsificadores. Foi assim, por exemplo, com os relatos encontrados em Atos de Pedro, que conta histórias das disputas de milagres entre Pedro e Simão, o Mágico, em que ele realiza feitos impressionantes como erguer dos mortos um atum defumado. O primeiro a se sair com essa — fosse o autor do texto ou alguém que a transmitiu oralmente antes que o autor a ouvisse — estava dizendo algo que (possivelmente? provavelmente?) sabia não ser historicamente preciso. Isso ocorre também com Atos de Paulo (ou Atos de Paulo e Tecla), em que se diz que Paulo pregou um evangelho de salvação distinto afirmando que a pessoa é justificada perante Deus não por meio da morte e ressurreição de Jesus, mas levando uma vida casta e evitando toda atividade sexual. 

Como no caso de mitos antigos (mencionado no capítulo 2), em geral é difícil saber se os leitores dessas histórias as consideravam relatos históricos, narrativas divertidas ou algo diferente. Mas em muitas situações fica claro que alguns leitores entendiam tais histórias como casos “falsos”, já que eram tão claramente rejeitados em certos círculos. Basta pensar na reação de Serapião ao Evangelho de Pedro (ver capítulo 2) ou as palavras duras de Tertuliano sobre Atos de Paulo (capítulo 3). Nos dois casos, o conteúdo das histórias foi considerado questionável, e o relato foi acusado de ser inventado para promover uma compreensão falsa da fé. 

Isso mostra que, para alguns leitores antigos, pelo menos, tais invenções históricas não eram consideradas apenas ficções inócuas, mas casos falsos, no sentido de que não transmitiam a “verdade”, ou histórias falsas, que contavam acontecimentos que não existiram. Em ambos os casos, na visão de seus adversários, eram invenções danosas. Danosas ou não, circularam muitas invenções, nos primórdios da Igreja, sobre Jesus e aqueles ligados a ele: sua família, seus discípulos e outros conhecidos. Temos muitas dessas histórias dos primeiros quatro séculos da Igreja cristã. 

O Protoevangelho de Tiago

Um dos conjuntos de histórias mais influentes está em um livro chamado Protoevangelho de Tiago.180 O Protoevangelho foi muito popular entre cristãos durante a Idade Média — ainda mais popular que muitos livros da Bíblia. Teve um impacto significativo na imaginação e na arte cristãs.181 Leitores o chamaram de protoevangelho porque narra acontecimentos anteriores aos relatos do nascimento e vida de Jesus, encontrados nos evangelhos do Novo Testamento. O livro gira em torno principalmente da mãe de Jesus, Maria, seu nascimento e começo de vida, a concepção e o nascimento de Jesus. Eu disse que é falsificado porque é atribuído a Tiago, meio-irmão de Jesus, que nesse relato é filho de um casamento anterior de José. Há discussões sobre quando o livro foi escrito, mas como ele indica ter conhecimento dos evangelhos de Mateus e Lucas, do fim do século I, e é citado pelo teólogo Orígenes no início do século III, costuma ser datado de meados ao fim do século II. 

Uma das principais questões da narrativa diz respeito à adequação de Maria para o papel de mãe do Filho de Deus. A mãe de Jesus sem dúvida não era uma pessoa comum! E nessa história, Maria é tudo menos comum. Seu próprio nascimento foi milagroso. Sua mãe, Ana, é estéril, mas a concebe milagrosamente como resultado de suas preces e as preces do marido, o rico aristocrata judeu Joaquim. Quando criança, Maria é muito especial. Devotada a Deus desde o nascimento, ela é levada pelos pais ao sagrado templo judaico aos três anos e criada pelos sacerdotes, que nem precisam alimentá-la, já que recebe a comida diária da mão de um anjo. 

Quando está prestes a chegar à puberdade, Maria não pode permanecer no templo, presumivelmente porque se acreditava que a menstruação produzia impureza ritual. Então, os sacerdotes se reúnem para decidir como encontrar um marido para ela. Orientados por Deus, eles reúnem todos os homens solteiros de Israel, cada um com uma vara de madeira. O sumo sacerdote reúne todas as varas e as leva para o santuário. No dia seguinte, ele as distribui aos homens, e surge um grande sinal. Uma pomba emerge da vara de José, voa e pousa em sua cabeça. Assim, ele é o escolhido para tomar como esposa a jovem Maria. 

No entanto, José reluta bastante, já que é um idoso com filhos criados, e com certeza se tornará motivo de chacota entre os israelitas se casando com uma moça tão jovem. O sumo sacerdote convence José de que não tem escolha, então ele toma Maria em casamento. 

As histórias sobre Maria e José continuam, em geral aumentando os relatos encontrados nos evangelhos de Mateus e Lucas no Novo Testamento (os únicos do Novo Testamento que falam do nascimento de Jesus), algumas vezes oferecendo histórias novas. Nenhuma delas tão estranha e memorável quanto o relato do que acontece logo após Maria dar à luz Jesus na periferia de Belém. É dito que José saíra para encontrar uma parteira que ajudasse no parto. Ele encontra uma, mas chegam tarde demais. Chegando à caverna onde Maria tinha sido deixada, eles veem uma luz brilhante e depois uma criança surgindo do nada. A parteira logo se convence de que aquele tinha sido um nascimento milagroso e sai correndo em busca de uma companheira, Salomé, que se recusa a acreditar que uma virgem deu à luz. Ela vai à caverna e decide fazer um exame pós-parto em Maria para verificar se seu hímen permanecia intacto. De fato permanecia, o que não surpreende os leitores. Mas a mão de Salomé começa a queimar como se pegasse fogo. É sua punição por se recusar a acreditar no poder de Deus e no nascimento de Jesus. Quando ela ora a Deus e pede perdão, recebe a ordem de pegar a criança. Ela o faz, e a mão fica curada. 

O relato traz muitas outras histórias de milagres, todas elas frutos da imaginação devota de contadores de histórias posteriores ou do autor do relato, em vez de baseado em acontecimentos históricos. Esses não são relatos precisos de acontecimentos reais, mas histórias posteriores disfarçadas de narrativa histórica. Elas eram lidas como relatos históricos ou apenas como entretenimento? Pode-se dizer que eram lidas das duas formas. Alguns cristãos baseavam nelas alegações teológicas sérias, como a doutrina da “virgindade perpétua de Maria”, ou seja, a ideia de que Maria permaneceu virgem mesmo após dar à luz Jesus. Esses cristãos sem dúvida consideravam esses relatos “verdade”, e muitos (a maioria?) deles acreditavam que os fatos narrados aconteceram. 

O    Evangelho do pseudo-Mateus 

O   mesmo pode ser dito das histórias encontradas no Evangelho do pseudo-Mateus. É chamado assim porque, na Idade Média, acreditava-se ser do próprio Mateus. Contudo, originalmente, o livro era uma versão bastante modificada do Protoevangelho. Também era atribuído a Tiago, meio-irmão de Jesus.182 

Entre os relatos mais interessantes dessa narrativa, estão os milagres que Jesus realiza quando a Sagrada Família foge para o Egito após seu nascimento. Aprendemos, por exemplo, que no caminho eles param para descansar do lado de fora de uma caverna. Para terror de José e Maria, uma tropa de dragões sai da caverna. Contudo, Jesus, de dois anos, não sente medo algum. Ele anda desajeitadamente e se coloca diante das feras assustadoras. Quando elas veem quem Ele é, curvam-se em adoração. O autor nos diz que isso cumpriu a previsão das Escrituras: “Foi então cumprido o que foi afirmado pelo profeta nos Salmos, dizendo: ‘Louvem o Senhor da terra, ó dragões e todos das profundezas do mar’”, uma referência à versão grega do salmo 148,7. 

Mais tarde, durante sua viagem, a família para sob uma palmeira para descansar, e a mãe de Jesus, Maria, olha pensativamente para os frutos no alto, desejando que houvesse uma forma de conseguir alguns para comer. José a censura, já que não há como subir na árvore. Mas o jovem Jesus intervém e ordena que a árvore se curve para dar à sua mãe o fruto precioso. E ela o faz. Maria se farta, e Jesus abençoa a árvore por sua obediência, dizendo que, como recompensa, um de seus galhos será levado para o céu e plantado no Paraíso. De imediato um anjo desce e retira um galho para levá-lo a seu novo lar celestial. 

A família não tem onde ficar quando chega ao Egito, então vai se abrigar em um templo pagão. Dentro do templo, há 365 ídolos representando os deuses a serem idolatrados, um para cada dia do ano. Mas, quando Jesus entra, os ídolos caem de rosto no chão em reverência à verdadeira divindade no meio deles. Assim que o governante local toma conhecimento do que aconteceu, vai até lá e venera a criança, dizendo a todos os seus amigos e a todo o seu Exército que o Senhor de todos os deuses está no meio deles. 

O evangelho do pseudo-Tomé

Mais ou menos na mesma época em que o Protoevangelho de Tiago começava a circular, surgiu outro relato inventado de Jesus, hoje conhecido como o Evangelho do pseudo-Tomé.183 O que conduz a narrativa é uma pergunta que muitos cristãos fizeram ao longo do tempo: se Jesus era o milagroso Filho de Deus quando adulto, como ele era na infância? O Evangelho do pseudo-Tomé contém histórias sobre Jesus entre os cinco e os 12 anos de idade. 

O relato começa com Jesus aos cinco anos brincando ao lado de um regato perto de sua casa em Nazaré. O jovem Jesus recolhe um pouco da água do regato em uma poça e ordena que ela se torne pura. E isso acontece unicamente por sua palavra. Jesus se agacha e faz 12 pássaros de lama. Um judeu que caminha por ali fica aborrecido, pois é sabá e Jesus violou a lei “trabalhando”. O homem vai contar a José o que seu filho fez, e José dispara na direção do riacho para censurar o garoto por violar o sabá. Em resposta, Jesus bate palmas e grita para que os pássaros ganhem vida e voem para longe, e eles o fazem. Jesus é apresentado como estando acima da lei e senhor da vida. Além disso, ele evita problemas com o pai destruindo qualquer prova incriminadora. Pássaros de lama? Que pássaros? 

Outra criança que brinca perto de Jesus pega um galho e espalha a água que ele com cuidado juntara. Isso enfurece o jovem Jesus, que diz ao garoto: “Idiota ímpio e irreverente! O que as poças de água fizeram de mal a você? Veja, agora você também secará como uma árvore, e nunca dará folhas, raízes ou frutos.” A criança seca imediatamente. 

Na história seguinte, Jesus está caminhando por sua aldeia quando outra criança corre em sua direção e sem querer esbarra em seu ombro. Jesus fica irritado e diz ao garoto: “Você não irá longe em seu caminho.” E a criança cai morta. Os pais do garoto o levam embora dizendo palavras duras a José: “Como você tem um filho assim, não pode viver conosco na aldeia. Ou você o ensina a abençoar, e não amaldiçoar, pois ele está matando nossos filhos.” 

Por fim, José acaba decidindo que Jesus precisa receber uma educação, e em três oportunidades o manda para professores que tentam em vão instruí-lo. Em uma oportunidade, o professor tenta ensinar a Jesus o alfabeto grego, e pratica repetição com ele. Mas Jesus não responde, até que diz ao professor: “Se você é de fato um professor e conhece bem as letras, diga-me o poder do alfa (a primeira letra do alfabeto), e lhe direi o poder do beta.” O professor fica com raiva e bate na cabeça de Jesus. Um grande erro. Jesus o amaldiçoa, e ele morre no ato. José leva Jesus de volta para casa e instrui Maria: “Não o deixe cruzar a porta; pois aqueles que o enfurecem morrem.” 

Contudo, Jesus enfim começa a usar seu poder não para causar mal, mas para ajudar: levantando crianças dentre os mortos, curando seu irmão Tiago de uma picada de cobra mortal e se mostrando útil com suas habilidades milagrosas na oficina de carpintaria do pai. O relato termina com Jesus aos 12 anos, no Templo em Jerusalém, demonstrando sua inteligência e superioridade espiritual nas discussões com os mestres da lei, uma história conhecida do evangelho de Lucas. 

É     difícil saber o que pensar dessas histórias do menino prodígio Jesus.184 Alguns leitores modernos acharam que elas mostram Jesus sob um ângulo bastante negativo. Mas não fica claro que os antigos leitores cristãos teriam visto dessa maneira. As histórias talvez tenham sido criadas como uma boa diversão cristã. Ou como uma tentativa séria de mostrar como o Filho de Deus milagroso era ativo e embebido de poder divino mesmo nos primeiros anos, muito antes de seu ministério público. 

Invenções no cânone

Não se deve imaginar que os cristãos começaram a inventar histórias sobre Jesus somente depois que o Novo Testamento estava concluído. Na verdade, há pouca dúvida de que alguns relatos foram construídos nos primeiros anos do movimento cristão. Algumas dessas invenções chegaram ao Novo Testamento. 

Poderíamos falar muito sobre narrativas do Novo Testamento que afirmam apresentar acontecimentos históricos, mas na verdade são histórias inventadas. Essas narrativas podem ser encontradas entre as histórias sobre o nascimento, a vida, os ensinamentos, a morte e ressurreição de Jesus, bem como em histórias sobre seus seguidores, como Pedro e Paulo, após sua morte, no livro de Atos. 

Com relação às histórias sobre o nascimento de Jesus, não é preciso esperar pelos evangelhos posteriores, mencionados acima, para começar a ver relatos inventados; eles estão nas versões conhecidas de Mateus e Lucas. Nunca houve um censo sob César Augusto obrigando José e Maria a ir para Belém pouco antes do nascimento de Jesus; nunca houve uma estrela misteriosa guiando reis magos do Oriente até Jesus; Herodes, o Grande, nunca massacrou todos os bebês de Belém; Jesus e sua família nunca passaram vários anos no Egito. Essas podem parecer afirmações ousadas e provocativas, mas há muitos anos os estudiosos conhecem as razões e as evidências para elas. Contudo, como lhes dediquei considerável atenção — e também a outros relatos inventados dos evangelhos — em outro livro recente, não entrarei em detalhes aqui.185 

É      quase impossível dizer se as pessoas que inventaram e transmitiram essas histórias eram comparáveis a falsificadores, sabendo muito bem que estavam envolvidas em uma espécie de embuste, ou se, em vez disso, eram como aqueles que atribuíram livros anônimos a autores conhecidos sem saber que estavam errados. Minha aposta é que a maioria das pessoas que contou essas histórias acreditava de fato que haviam acontecido. Ainda assim, não devemos dizer que esses contadores de histórias não estavam envolvidos em logro. A intenção pode até não ter sido enganar os outros (ou pode ter sido!), mas com certeza enganaram. Enganaram os outros muito bem. Durante muitos séculos, imaginou-se que as narrativas sobre Jesus e os apóstolos — narrativas do Novo Testamento ou fora dele — descreviam acontecimentos reais. A maioria dos leitores ainda lê os relatos canônicos dessa forma. Mas muitas dessas histórias não são narrativas históricas. São, em vez disso, relatos inventados intencionalmente, para provar uma tese, ou apenas surgiram quando cristãos repassaram “informações” sobre Jesus e sobre aqueles ligados a ele. 

CONTRAFAÇÕES 

Além de falsificação, falsa atribuição e invenção, há outro tipo de atividade literária fraudulenta que pode ser chamada de “contrafação”. Isso ocorre sempre que alguém copia o texto de um autor à mão, mas o altera de alguma forma, omitindo, acrescentando algo ou apenas mudando as palavras. Se alguém copia a primeira epístola de Paulo aos coríntios e acrescenta alguns versículos extras imaginados por ele mesmo, a próxima pessoa a ler aquele manuscrito imaginará que o próprio Paulo escrevera as palavras inseridas. Isso é muito semelhante ao que acontece com a falsificação: alguém escreve as próprias palavras, mas as atribui a outro. Nesse caso, porém, em vez de redigir um documento inteiro no nome de alguém, um copista escreveu apenas um trecho de um documento e o incluiu no livro de outra pessoa. 

A prática de alterar textos no processo de copiá-los acontecia o tempo todo na Antiguidade.186 Em um mundo sem meios eletrônicos de publicação, máquinas de fotocópia ou mesmo papel-carbono, era quase impossível garantir que uma cópia de um texto fosse 100% precisa, sem mudanças de qualquer tipo. Isso é verdade para todos os livros copiados no mundo antigo. É por isso que quando grandes reis queriam criar bibliotecas significativas em suas cidades, algumas vezes estavam dispostos a pagar grandes quantias por “originais” dos grandes clássicos. Não era possível ter certeza de que as cópias eram fiéis ao original. 

Todos os primeiros escritos cristãos eram necessariamente suscetíveis às vicissitudes da cópia. Não temos nenhum original de qualquer dos livros do Novo Testamento ou qualquer outro livro cristão inicial. O que temos são cópias feitas de cópias de cópias de cópias. Na maioria dos casos, nossas cópias completas mais antigas são de séculos depois dos originais. 

Quase todo copista cometia erros na cópia. Se se quisesse copiar uma cópia de um original, na maioria dos casos se copiaria não apenas as palavras do original, mas também os erros que seu predecessor cometeu ao copiar o original. E quem vier depois reproduzirá os mesmos erros, além de introduzir os próprios. E assim vai, ano após ano, século após século. O único momento em que erros são eliminados é quando um copista nota que um predecessor copiou algo errado e tenta corrigir o erro. O problema é que não há como saber se o copista corrige o erro corretamente ou não. Ele também pode corrigi-lo equivocadamente, ou seja, mudá-lo para algo que é diferente da cópia que está copiando e do original que foi inicialmente copiado. As possibilidades são infinitas. 

Não precisamos especular se escribas cristãos alteraram os textos que copiaram. É possível pegar qualquer livro dos primórdios do cristianismo e comparar as cópias preservadas, seja de um livro do Novo Testamento, digamos, um dos evangelhos ou as epístolas de Paulo, seja um livro ausente do Novo Testamento, como o Evangelho do pseudo-Tomé ou a Epístola de Barnabé. Todas as cópias diferirão em geral de muitas pequenas formas insignificantes, e algumas vezes, grandes. Na imensa maioria dos casos, as mudanças que os copistas fizeram foram apenas acidentais: uma pena que escorregou, uma palavra grafada errado, a omissão acidental de uma palavra ou linha. Mas algumas vezes os escribas mudavam os textos porque queriam fazê-lo, ou por achar que seus predecessores haviam cometido um erro que precisava ser corrigido ou por querer acrescentar algo ao texto (ou tirar, ou mudar algo). Como indiquei, esse tipo de contrafação é semelhante à falsificação; é um autor transmitindo suas próprias palavras como as palavras de uma autoridade respeitada. 

Falei sobre esses tipos de mudanças em dois dos meus livros anteriores, e não quero me alongar no tema aqui. Em vez disso, dou alguns exemplos do tipo de coisa a que me refiro das páginas do Novo Testamento. No capítulo 5, falei sobre a famosa história encontrada em manuscritos posteriores do Evangelho de João sobre a mulher flagrada em adultério e levada a Jesus para julgamento. É o relato em que Jesus oferece uma de suas falas mais famosas: “Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra.” A história, porém, não é encontrada nos manuscritos mais antigos do Evangelho de João. Mais ainda, o estilo de redação (em grego) é significativamente diferente do estilo do restante do evangelho. Além do mais, a história quebra o fluxo da narrativa de João 7-8, em que é encontrada. Em outras palavras, se eliminarmos a história de João, o contexto faz muito mais sentido, já que a história anterior ao relato flui melhor se lida diretamente para a história posterior a tal relato. Por essas e muitas outras razões, não há quase nenhuma dúvida entre estudiosos do Novo Testamento de que essa história, por mais maravilhosa, poderosa e influente que seja, não era originalmente parte do Novo Testamento. Foi adicionada por um escriba. 

Nesse caso, estamos lidando com uma contrafação do texto (fazendo com que ele diga algo diferente do que originalmente dizia) e uma invenção (já que é uma história inventada). Há muitos outros casos semelhantes nos manuscritos do Novo Testamento ainda preservados. Outro exemplo famoso está no final do Evangelho de Marcos. Pessoas que não leram o capítulo final do evangelho de Marcos com atenção suficiente, algumas vezes dizem que ele “carece de uma narrativa da ressurreição”. Isso não é verdade. No Evangelho de Marcos, com certeza Jesus é erguido dentre os mortos. As mulheres vão ao túmulo três dias após ele ter sido sepultado, para dar a seu corpo um enterro adequado, mas o corpo não está lá. Em vez disso, há, no túmulo, um homem que lhes informa que Jesus foi erguido dentre os mortos. Marcos, portanto, acredita que Jesus foi fisicamente erguido dos mortos, e diz isso a seus leitores. Porém, o mais impressionante é o que acontece a seguir. 

O homem no túmulo instrui as mulheres a procurarem os discípulos e dizer a eles que Jesus os seguirá à Galileia e que eles deverão encontrá-lo lá. Mas, em vez de transmitir aos discípulos a mensagem, “elas saíram do sepulcro e fugiram [...]. E a ninguém disseram coisa alguma por causa do medo...” (16,8) E é onde o evangelho termina. Definitivamente, há uma ressurreição de Jesus. Mas os discípulos nunca souberam disso, e não há um relato do encontro de Jesus com qualquer deles. 

Esse fim é brilhante. Ele faz com que os leitores parem de repente e digam: “O quê? Como as mulheres puderam não contar a ninguém? Como pôde ninguém saber da ressurreição de Jesus? Como Jesus não apareceu a ninguém depois? É assim? Termina desse jeito? Como pôde terminar assim?” Os escribas acharam o mesmo. E diferentes escribas acrescentaram diferentes finais ao evangelho. O final que se tornou mais popular na Idade Média foi encontrado nos manuscritos usados pelos tradutores da versão do rei James de 1611, de modo que se tornou muito conhecido pelos leitores da Bíblia inglesa. Em 12 versículos adicionais, as mulheres (ou pelo menos Maria Madalena) vão contar aos discípulos, que então veem Jesus e se convencem de que ele foi elevado. É nesses versículos que encontramos as famosas palavras de Jesus de que aqueles que acreditam nele conseguirão falar línguas estrangeiras, pegar em serpentes e beber veneno sem sofrer dano algum. 

No entanto, Jesus nunca disse essas palavras, e Marcos nunca alegou que ele dissera. Elas foram acrescentadas a Marcos por um escriba posterior e copiadas ao longo dos anos.187 É uma história inventada, que foi colocada na Bíblia por um copista que falsificou o texto. 

Há centenas de mudanças significativas nos manuscritos do Novo Testamento, mas vou mencionar apenas mais uma. Nos exemplos anteriores, seria possível argumentar que as contrafações não foram a mesma coisa que falsificações, já que tanto João, no primeiro exemplo, quanto Marcos, no segundo, são escritos anônimos. Os escribas que mudaram os textos não estavam dizendo que suas palavras saíram da pena de uma figura de conhecida autoridade. Eu questionaria essa alegação, porque, no momento em que os escribas fizeram essas mudanças, acreditava-se que o quarto evangelho era de João e o segundo de Marcos. Mas não há ambiguidade em meu último exemplo, pois envolve uma das cartas incontestes de Paulo. 

Uma das passagens mais prejudiciais à causa das mulheres que desejam ser atuantes na igreja cristã está em 1Co 14,34-35. Aí Paulo é registrado como dizendo: 

Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas nas assembleias: não lhes é permitido falar, mas devem estar submissas, como também ordena a lei. Se querem aprender alguma coisa, perguntem-na em casa aos seus maridos, porque é inconveniente para uma mulher falar na assembleia. 

As mulheres devem ficar caladas e ser submissas aos maridos. Não devem nunca falar na igreja. Isso torna impossível para uma mulher pronunciar uma profecia, rezar pública e abertamente ou ensinar na igreja. As mulheres não são autorizadas sequer a fazer uma pergunta na igreja. 

Esses versículos são muito parecidos com o de uma epístola paulina que não é autêntica, 1 Timóteo, que, como vimos no capítulo 3, também indica que as mulheres devem ser submissas aos homens e não exercer qualquer autoridade sobre eles (2,11-15). Mas, assim como 1 Timóteo é falsificada, também esta passagem de 1 Coríntios foi falsificada. Esses versículos do capítulo 14 não foram escritos por Paulo. Alguém os acrescentou à passagem posteriormente, depois que a carta fora posta em circulação. 

Os estudiosos citaram muitas razões para esse ponto de vista. Para começar, os versículos parecem invadir a passagem na qual são encontrados. Imediatamente antes desses versículos, Paulo fala sobre profecia na igreja; logo depois, fala sobre profecia. Mas essa passagem sobre as mulheres interrompe o fluxo do argumento. Retire-os e tudo flui muito melhor.

Mais ainda, é difícil acreditar que Paulo dissesse às mulheres que elas não podiam falar na igreja em 1 Coríntios 14, quando apenas três capítulos antes ele indicara que elas podiam fazê-lo. Em 1 Coríntios 11, Paulo conclama as mulheres que rezam e profetizam na igreja a fazê-lo somente com véus nas cabeças. Se elas eram autorizadas a falar no capítulo 11, como podiam ser ordenadas a não falar no capítulo 14? Faz mais sentido que estejam certos os estudiosos que acreditam que os versículos não eram originalmente parte do texto de 1 Coríntios. Alguém distorceu a ideia do livro acrescentando os versículos, fazendo a passagem dizer o que aqueles copistas queriam que dissesse, em vez de permitir a Paulo dizer o que queria dizer.188 

PLÁGIO 

Plágio envolve pegar o escrito de alguém e repassá-lo como sendo seu. Como indiquei no início deste capítulo, isso se tornou um problema cada vez mais sério nos campi universitários. As técnicas de plágio foram aperfeiçoadas com a internet, e é muito fácil encontrar várias coisas escritas sobre diversos temas — quando não ensaios completos, com aproximadamente o mesmo tamanho do seu trabalho, pelo menos trechos de textos facilmente copiados para um trabalho em um momento importante. Felizmente, os métodos de detecção de plágio melhoraram com os avanços da tecnologia, e hoje muitos professores usam programas de computador sofisticados para identificar casos assim. As punições para quem é flagrado podem ser graves. Na minha universidade, qualquer um apanhado e condenado por plágio é afastado da faculdade. Não por um ou dois dias, mas para sempre. 

Algumas vezes os acadêmicos alegam que o plágio é um fenômeno moderno sem exemplos antigos. Há alguns anos, por exemplo, foi lançado um livro influente e popular chamado The Five Gospels, produzido por uma equipe de estudiosos do projeto Jesus Seminar. O livro era resultado do esforço de muitos anos, com estudiosos trabalhando para decidir quais das falas nos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas, João e Tomé remontavam ao Jesus histórico. As falas de Jesus que, na opinião desses estudiosos, eram reais foram impressas em vermelho; as que eram relativamente parecidas com algo que ele disse foram impressas em rosa; falas que não eram parecidas com nada dito anteriormente estavam em cinza; as falas que não eram dele estavam em preto. 

A maioria das falas nos evangelhos estava em cinza e preto. Isso irritou muitas pessoas. Mas alguns estudiosos que não estavam envolvidos no projeto se preocuparam mais com quais falas estavam em preto. Em minha opinião, os integrantes do Jesus Seminar, na verdade, entenderam errado o que Jesus disse. 

Fora isso, o volume contém pelo menos uma afirmação que os acadêmicos chamam de “cretinice”, um erro tão ultrajante que os estudiosos que o cometeram deviam se envergonhar. Está na introdução do livro, na qual é afirmado: “O conceito de plágio era desconhecido no mundo antigo.”189

Não sei como alguém que teve o trabalho de ler as fontes antigas pode dizer algo assim. Está errado. Os autores antigos sabiam tudo sobre plágio e o condenavam como uma prática enganosa. Para começar, vejam as palavras de Vitrúvio, um famoso arquiteto e engenheiro romano do século I a.C., no livro 7 de sua obra em dez volumes sobre arquitetura: “Nós [...] tendemos a censurar aqueles que, tomando de outros, publicam como sendo seu aquilo de que não são autores.”190 Ou os comentários de Políbio, um dos grandes historiadores do mundo grego antigo, escrevendo cem anos antes e dizendo que historiadores próximos de sua época que haviam roubado os escritos de historiadores antigos e os repassado como sendo seus haviam se comportado de uma forma “muito vergonhosa”. Aqueles que fazem isso se entregam a “um comportamento infame”.191 

Alguns autores ficavam furiosos quando suas próprias obras eram plagiadas. Em várias oportunidades o inteligente poeta romano Marcial censurou outros por roubar seus escritos e copiá-los sob os próprios nomes, como se os houvessem composto: “Você se engana, ambicioso ladrão de minhas obras que acha que pode se tornar um poeta apenas pelo custo de uma transcrição e um rolo de papiro barato. O aplauso não se adquire por seis ou dez sestércios.”192 

Em vários pontos, o historiador da filosofia Diógenes Laércio fala de filósofos e autores literários que tentavam apresentar obras de outros como sendo suas, “roubando-as” e publicando como se eles mesmos as tivessem escrito. Isso era verdade, indica, para um discípulo de Sócrates chamado Esquines, que pegou com a viúva vários dos diálogos de Sócrates e alegou serem composições suas. Também verdade no caso de Heráclides, que conhecemos no capítulo 1, que “roubou” um ensaio de outro estudioso sobre os antigos Homero e Hesíodo e o publicou como sendo seu. E verdade para o filósofo Empédocles, que foi proibido de assistir às palestras do famoso Pitágoras, do século VI a.C., por ter sido “condenado naquela época por roubar seus discursos”.193 

Como a falsificação, o plágio é desonesto, pois pretende desencaminhar os leitores. Mas, em outro sentido, pode ser visto como o outro lado da moeda da falsificação. Os falsificadores escrevem suas próprias palavras e alegam ser as palavras de outro; os plagiadores pegam as palavras de outro e alegam ser suas. 

É   uma questão interessante se os estudiosos antigos teriam acusado alguns dos primeiros escritores cristãos de plágio. Isso tende a ser complicado pelo fato de que possíveis casos de plágio envolvem o empréstimo de textos anônimos; ademais, os plagiadores em geral não costumam se identificar pelo nome, sendo anônimos ou alegando ser outra pessoa. Um falsificador pode plagiar? Talvez sim. 

Caso positivo, o que dizer do livro 2 Pedro? Os acadêmicos há muito tempo reconhecem que o capítulo 2 e o início do capítulo 3 parecem muito com o livro de Judas em seu ataque virulento a pessoas falsas e imorais que se infiltraram na Igreja cristã. Há grandes semelhanças entre Judas 4-13, 16-18 e 2 Pedro 2,1-18; 3,1-3. Não há longas repetições verbais exatas, mas eles partilham muitas das mesmas ideias, pensamentos e em geral palavras. Se um estudante moderno reescreveu um texto mudando muitas das palavras, mas mantendo todas as ideias, sem identificar sua fonte, isso pode ser considerado plágio. Mas talvez a questão não seja tão simples nesse caso.

E quanto aos evangelhos? Desde o século XIX, estudiosos argumentam que a razão pela qual Mateus, Marcos e Lucas são tão parecidos — contando muitas das mesmas histórias, normalmente na mesma sequência, com frequência com as mesmas palavras — é terem usado as mesmas fontes. É reconhecido hoje que um deles foi a fonte dos outros dois. Quase todos os estudiosos acham que Marcos foi usado por Mateus e Lucas. Alguns acadêmicos continuam a sustentar o ponto de vista de que Mateus foi a fonte de Marcos e Lucas, mas essa é uma posição minoritária. Em qualquer dos casos, temos um documento que é usado por outros, com frequência literalmente. É verdade que nenhum dos autores se identifica. Assim, os autores posteriores não estão plagiando, no sentido de que não estão publicando o trabalho de alguém sob seu próprio nome. Mas estão assumindo o trabalho de alguém e publicando como seu. Antigos estudiosos que falaram sobre esse fenômeno teriam chamado a isso de “roubo”. No jargão moderno, talvez seja melhor chamar a isso de uma espécie de plágio. 

Há outros casos do fenômeno fora do Novo Testamento. Já mencionei neste capítulo, por exemplo, que o Evangelho do pseudo-Mateus toma a narrativa do Protoevangelho de Tiago, publicando-o em uma forma editada (algumas vezes muito editada, mas em outros pontos quase nada editada), sem reconhecer de onde veio a história. De muitas formas, isso é comparável ao que os autores dos evangelhos de Mateus e Lucas, do Novo Testamento, fizeram com Marcos. Outro livro que mencionei no capítulo 1, Constituições apostólicas, é ainda mais explícito, tomando, quase na íntegra, três documentos de períodos anteriores, o Didache, do ano 100 aproximadamente, a “Tradição apostólica”, do fim do século II, e o Didascalia, do século III, combinando-os em um grande documento e publicando como se fossem informações transmitidas diretamente pelos apóstolos. Mas não eram; eram tomadas — roubadas, para usar o jargão antigo — de escritos anteriores da tradição cristã. 

CONCLUSÃO 

O que podemos dizer como conclusão sobre as formas de enganação que estudamos neste capítulo? Falsas atribuições, invenções, contrafações, plágio — todas envolvem práticas fraudulentas. Leitores que leram livros erroneamente atribuídos a apóstolos ou seus companheiros, que continham histórias inventadas, apresentavam textos alterados por escribas ou contendo passagens ou relatos inteiros “roubados” dos escritos de autores anteriores sem reconhecimento — leitores de todo esse material foram enganados de um modo ou de outro. Alguns foram enganados para pensar que o que leram tinha sido escrito pelas pessoas apontadas como seus autores; outros foram conduzidos a pensar que os acontecimentos históricos narrados eram reais. Em todos os casos, eles estavam errados. Eles foram enganados. Assim como as pessoas continuam a ser enganadas quando pensam, por exemplo, que o coletor de impostos Mateus escreveu o primeiro evangelho, que Paulo disse às mulheres que deviam ficar em silêncio na igreja ou que o autor de 2 Pedro teve as ideias e as frases encontradas em seu segundo capítulo. 

Contudo, um aspecto determinante da falsificação não parece envolvido em todos os casos dessas outras formas de embuste. A falsificação quase sempre envolve uma mentira absoluta. Falsificadores alegam ser alguém, sabendo muito bem sua identidade real. Nem sempre é esse o caso nos fenômenos comparáveis que abordei aqui. Algumas vezes, obras anônimas foram atribuídas a pessoas em quem se acreditava ser as autoras dos escritos, e tudo foi um equívoco. Algumas vezes, talvez, histórias foram inventadas inocentemente, assim como histórias imprecisas são inventadas o tempo todo, sem qualquer intenção de enganar. Algumas vezes, escribas alteraram os textos que estavam copiando por acidente, sem a intenção de fazê-lo. 

Contudo, outras instâncias provavelmente envolveram uma boa dose de intencionalidade. Um teólogo interessado em convencer seus adversários de que seus pontos de vista eram os dos apóstolos pode muito bem ter alegado que o quarto evangelho foi escrito por João sem saber se isso era verdade ou não. Um contador de histórias que inventou um relato sobre Jesus, para provar uma tese, pode muito bem ter sabido que estava transmitindo uma ficção como se fosse um acontecimento histórico. Um escriba que desejava que um texto dissesse algo que não dizia pode muito bem ter modificado o texto por essa razão. Em alguns casos, é difícil imaginar como mais poderia ter surgido o embuste resultante. Seja lá quem adicionou os 12 versículos finais de Marcos não fez isso apenas por um deslize da caneta. 

Em suma, havia muitas formas de mentir na literatura e por meio dela na Antiguidade, e alguns cristãos se valeram de toda a gama de esforços para promover sua visão da fé. Para os leitores modernos, pode parecer estranho, ou mesmo sem sentido, que uma religião que construiu uma reputação de possuir a verdade tenha tido membros que tentaram disseminar sua compreensão da verdade se valendo de meios fraudulentos. Mas foi o que aconteceu. A utilização de embuste para promover a verdade pode muito bem ser considerada uma das ironias mais perturbadoras da tradição cristã inicial.

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