1) Capítulo Um - Um mundo de enganações e falsificações

 Capítulo Um        

 - Um mundo de enganações e falsificações

 Sempre que leciono sobre falsificação, retorno à minha primeira palestra sobre o assunto, há 25 anos, na Universidade Rutgers. Por mais estranho que possa parecer, na época, a falsificação estava na cabeça de todos. Poucos meses antes, uma falsificação passara semanas nas primeiras páginas dos grandes jornais do mundo. Os diários de Adolf Hitler tinham sido descobertos, autenticados por um dos principais especialistas mundiais no Führer, o historiador britânico Hugh Trevor-Roper. Os diários tinham sido comprados por milhões de dólares, primeiro pela revista alemã Stern, e depois por Rupert Murdoch para a publicação em inglês. Mas, quando começaram a sair, foram denunciados como falsificações sem valor.4 

O falsificador dos diários era um alemão ocidental chamado Konrad Kujau. Ele tivera uma formação operária de classe inferior; com pouca idade, descobrira uma habilidade artística que o levara a uma carreira de falsário. Passara algum tempo preso quando jovem por falsificar vales-refeição. No entanto, ele tinha muitos pseudônimos, e as pessoas às quais vendeu os diários de Hitler não se dedicaram a verificar seus antecedentes. 

Os diários consistiam em cerca de sessenta cadernos de anotações manuscritas que o próprio Hitler supostamente fizera durante seu período no poder, de junho de 1932 até abril de 1945. Para colecionadores de memorabilia nazista, essa descoberta seria inestimável. Temos alguns documentos e pinturas produzidos por Hitler, mas nada como isso, um relato de atividades diárias, encontros, sucessos, excessos, companheiros, amores, ódios e divagações. Quando a Stern ficou de posse dos livros e decidiu publicá-los em 1984, os editores consultaram Trevor-Roper, que, a despeito de uma suspeita inicial de que deveria ser uma fraude, convenceu-se da autenticidade dos livros após uma rápida espiada em algumas páginas. Os documentos pareciam velhos; continham vários dados precisos e muitas digressões e irrelevâncias, algo que seria de se esperar em um diário pessoal. E eram muitas! Que falsificador teria tanto trabalho? 

Ademais, havia uma explicação plausível para eles terem sobrevivido à guerra. Era bem conhecido que, quando a derrota se tornou iminente, Hitler fez com que várias caixas de metal com

objetos pessoais fossem tiradas de Berlim por avião; mas a aeronave tinha sido derrubada, e o piloto, morto. Moradores de aldeias próximas ao local da queda saquearam o avião, e as caixas acabaram com particulares. Colecionadores de memorabilia depois compraram o material, e um desses colecionadores, chamado Konrad Fischer (um pseudônimo de Konrad Kujau), terminara com os diários. Eles em tese tinham sido contrabandeados para fora do Leste pelo irmão, um general do Exército da Alemanha Oriental. 

Entretanto, na verdade, era tudo um golpe do próprio Kujau, que aprendera a imitar a caligrafia de Hitler, lera biografias eruditas do Führer para aprender os fatos mais ou menos corretamente e produzira os relatos minuciosamente ao longo de três anos no começo da década de 1980. Para fazer com que as páginas parecessem velhas e gastas, ele as manchou com chá e bateu várias vezes com elas na mesa. E enganou os especialistas, pelo menos por tempo suficiente para receber 4,8 milhões de dólares por seus esforços. 

Contudo, no dia anterior à data em que os diários seriam revelados ao público, Trevor-Roper começou a ter dúvidas. Durante os dias seguintes, após a Stern ter anunciado a descoberta histórica mais significativa em décadas, outros especialistas foram convocados. Os diários foram considerados falsificações além de qualquer dúvida. Peritos descobriram que o papel, a cola e a tinta eram posteriores a 1945; historiadores demonstraram que os diários estavam cheios de erros. 

Kujau foi condenado por falsificação, um crime segundo os padrões modernos, embora, como veremos, não pelos da Antiguidade, e passou vários anos na cadeia. Mas saiu sem se arrepender, e passou boa parte do resto de sua vida pintando falsificações de grandes obras de arte — imitações de Monet, Rembrandt e Van Gogh — e vendendo-as como imitações. Isso acabou criando um mercado para que outros falsificadores produzissem e vendessem réplicas das imitações de Kujau. No clímax dessa história aparentemente interminável, no fim da vida, Kujau produziu uma autobiografia, nunca publicada. Em vez disso, foi lançado um livro diferente com seu nome, chamado Die Originalität der Fälschung (“A originalidade da falsificação”). Kujau alegou, evidentemente com toda a sinceridade, que não escrevera uma só palavra desse. 

FALSIFICAÇÕES NO MUNDO ANTIGO 

 Quando faço palestras abertas sobre falsificação, costumam me perguntar: “Quem faria tal coisa?” A resposta é: “Muita gente!” E por muitas razões diferentes. A mais comum hoje, com certeza, é ganhar dinheiro. Konrad Kujau talvez seja o caso mais conhecido e destacado, mas existem muitas centenas de colegas e discípulos menos famosos. O comércio de falsificações prospera: artigos falsos em nome de George Washington, Abraham Lincoln, lorde Byron, Robert Frost e muitos, muitos outros, continuam a inundar o mercado, como confirmado pela literatura recente sobre falsificações modernas.5 Estas são quase sempre produzidas com o objetivo de serem vendidas como autênticas. Também havia muita atividade desse tipo no mundo antigo (e muito menos especialistas em falsificação capazes de identificar uma quando a viam), embora não fosse um elemento importante no começo do cristianismo, por uma simples razão: em geral, os livros cristãos não estavam à venda. 

Outros bandidos hoje eventualmente falsificam um documento apenas para testar se não seriam descobertos. Isso também era algo que já acontecia no mundo antigo. O relato mais famoso é o conhecido caso de Dionísio, o Renegado. 

Dionísio era um acadêmico literário e filósofo do século III a.C. Ele acabou recebendo o epíteto de “Renegado” por ter rompido com seus colegas filósofos estoicos ao reparar que seus pontos de vista filosóficos não correspondiam à vida real como ele a experimentava. Os estoicos ensinavam que as pessoas deviam se distanciar mental e emocionalmente da dor e da angústia desta vida para experimentar paz de espírito interior. Durante muito tempo, Dionísio partilhou dessa visão. Porém, ficou muito doente, sentiu muita dor e começou a pensar que sua filosofia anterior era uma farsa diante da própria dor. Então, abandonou os estoicos e foi chamado por eles de “renegado”. 

Contudo, ele é mais famoso nos anais da história pela brincadeira que fez com um colega acadêmico literário, seu antigo mestre e, mais tarde, adversário Heráclides de Ponto. A brincadeira envolveu uma falsificação e não passou de um golpe para fazer com que Heráclides passasse vergonha.6 

Dionísio escreveu e colocou em circulação uma tragédia que intitulou Parthenopaeus, alegando ser obra do famoso dramaturgo grego Sófocles. A peça acabou indo parar nas mãos de Heráclides, que não viu motivo para duvidar de sua autenticidade. Heráclides, em dado momento, citou-a para ilustrar uma tese sobre Sófocles. Era exatamente aquilo que Dionísio esperava: uma oportunidade de desmascarar seu adversário. Ele confrontou Heráclides, triunfante, e disse que a peça era uma falsificação; que, na verdade, ele mesmo a escrevera. Heráclides, porém, não acreditou e insistiu em que Dionísio mentia. Mas Dionísio tinha um ou dois ases na manga. Ele mostrou a Heráclides que se pegasse a primeira letra de uma série de linhas na primeira parte da peça e as unisse em um acróstico, surgiria o substantivo Pankalos, que era o nome do amante de Dionísio. 

Heráclides ainda não estava convencido, então Dionísio mostrou a ele dois outros acrósticos escondidos nas linhas do texto. O primeiro formava um dístico poético: 

Um macaco velho não cai em armadilha; 

Sim, ele até cai, mas demanda tempo. 

A outra linha era decisiva: 

Heráclides ignora as letras e não se envergonha de sua ignorância. 

Não encontramos nada tão hilariante ou ultrajante nos escritos dos primeiros cristãos. Na verdade, há poucas evidências sugerindo que autores cristãos falsificaram documentos apenas para descobrir se seriam desmascarados. Ainda assim, houve muitos falsificadores cristãos antigos que produziram muitos documentos falsificados, provavelmente por muitas razões diferentes. Como destaquei na introdução, ainda temos muitos documentos falsificados originários da Igreja inicial, inúmeros evangelhos, atos, epístolas e apocalipses (esses são os quatro gêneros literários do Novo Testamento), todos eles alegando terem sido escritos por apóstolos. 

Muitos desses livros não canônicos são fascinantes e merecem ser lidos.7 Entre os evangelhos, por exemplo, há um relato supostamente escrito por Pedro que oferece uma narrativa detalhada da Ressurreição. Isso é chocante, porque — a maioria dos leitores nunca percebeu — os evangelhos do Novo Testamento não narram a Ressurreição. Eles dizem que Jesus foi enterrado e indicam que, no terceiro dia, seu túmulo estava vazio, porém não trazem o relato dele efetivamente saindo do túmulo. Mas há um relato assim no Evangelho de Pedro. Nele, Jesus sai caminhando do túmulo apoiado em dois anjos altos como montanhas, ainda que ele fosse ainda mais alto; atrás deles, saindo do túmulo, vem a cruz, que fala a Deus no céu. Outros evangelhos “apostólicos” contam outras histórias impressionantes sobre Jesus ou registram ensinamentos bizarros, supostamente ditos por ele; evangelhos alegadamente escritos por Tomé, irmão de Jesus, seu discípulo Filipe e sua companheira Maria Madalena. Todos esses livros se diziam autênticos, mas cada um deles foi classificado como “falsificação” por outros cristãos antigos que não acreditavam que os apóstolos de fato os haviam escrito. 

Também há atos não canônicos, livros que contam as aventuras dos apóstolos de Jesus após sua ascensão, como os Atos de Paulo, no qual Paulo prega que, para ter a vida eterna, os seguidores de Jesus devem se abster do sexo mesmo sendo casados, e evitar o casamento sendo solteiros. Esse livro foi inventado por um líder da Igreja da Ásia Menor (atual Turquia) no século II. Sabemos disso porque um famoso pai da Igreja, Tertuliano, indica que a pessoa foi apanhada e julgada pela Igreja por produzir o relato e depois afastada, sem cerimônias, de sua posição de liderança.8 A maioria dos líderes da Igreja não apreciava documentos inventados. Mas havia muitos deles. Ainda hoje temos muitas cópias de Atos de João, Pedro, André e Tomé, bem como fragmentos de obras anteriores que não sobreviveram intactas. 

Também havia epístolas falsificadas, incluindo um conjunto de cartas entre Paulo e o mais famoso filósofo da época, Sêneca, mostrando não apenas que Paulo era íntimo das maiores mentes do Império Romano, mas também respeitado e reverenciado por elas. Alguns líderes posteriores da Igreja sustentaram que essas epístolas eram autênticas, mas outros consideraram que tinham sido falsificadas com o objetivo de criar uma boa imagem para Paulo. Também houve discussões sobre a autenticidade de outras cartas de Paulo, Pedro e mesmo de Jesus. Alguns desses outros escritos ainda existem. 

Da mesma forma, apocalipses falsificados pontuavam a paisagem literária cristã, incluindo um relato fascinante encontrado em 1886 em uma tumba do Egito: um texto em primeira pessoa, supostamente escrito por Pedro, no qual ele faz uma excursão, guiada pelo próprio Jesus, pelo céu e o inferno, pelas respectivas bênçãos dos salvos e pelos horrendos tormentos dos condenados. Esse livro quase foi incluído no Novo Testamento, já que, mesmo no século IV, havia líderes da Igreja que o consideravam uma Escritura. Outros, porém, alegavam ser uma falsificação.

Essa é apenas uma pequena parte dos documentos que foram contestados no mundo antigo. Alguns dos primeiros cristãos alegaram que de fato tinham sido escritos por apóstolos e integravam o Novo Testamento. Outros insistiram em que não tinham sido escritos por apóstolos, sendo falsificações. Quantos outros documentos assim havia? Nunca saberemos. Hoje, temos conhecimento de mais de cem escritos dos quatro primeiros séculos que um autor cristão ou outro alegou terem sido falsificados por colegas cristãos.9 

ANTIGAS FALSIFICAÇÕES CRISTÃS 

A maioria dos casos que acabei de mencionar é de falsificações da época dos próprios apóstolos, dos séculos II, III e IV da era cristã. A maioria dos livros do Novo Testamento, por outro lado, foi escrita no século I. Há alguma evidência de falsificação nesse período anterior? Na verdade, há evidências muito boas, e elas nos chegam pelas páginas do próprio Novo Testamento. 

Há no Novo Testamento 13 epístolas alegadamente escritas por Paulo, incluindo duas aos tessalonicenses. Na segunda epístola aos tessalonicenses, encontramos um versículo intrigante, no qual o autor diz a seus leitores que não devem ser desencaminhados por uma carta “que se diga vir de nós” indicando que “o Dia do Senhor” já estivesse próximo (2,2). O autor, em outras palavras, tem conhecimento de uma carta que circula alegando ser de Paulo mas que, na verdade, não é. Essa outra carta supostamente ensina uma ideia à qual o próprio Paulo se opõe. Quem criaria essa carta falsificada? Obviamente, alguém que queria defender sua própria visão de quando o fim chegaria e decidiu fazer isso com a autoridade de Paulo, embora não a tivesse. 

No entanto, há uma ironia terrivelmente interessante ligada a essa passagem. A segunda epístola aos tessalonicenses, na qual aparece a passagem, é em si considerada por muitos acadêmicos como não pertencente a Paulo, ainda que alegue ter sido escrita por ele (veremos as razões para pensar assim no capítulo 3). Será 2 Tessalonicenses ela mesma uma falsificação em nome de Paulo? Caso positivo, por que alertaria contra uma falsificação em nome de Paulo? Pode haver pouca dúvida sobre a resposta: um dos “truques” usados por antigos falsificadores para assegurar aos leitores que seus próprios escritos eram autênticos era alertar para escritos que não eram. Os leitores naturalmente presumem que o autor não está fazendo aquilo que condena.10 

Temos outras instâncias interessantes desse fenômeno na literatura cristã inicial. Trezentos anos mais tarde, no fim do século IV, surgiu um livro que os acadêmicos chamaram de Constituições Apostólicas. Esse livro longo, em oito volumes, dá instruções de como a Igreja deve ser organizada e administrada por seus líderes. O livro alega ser escrito por um homem chamado Clemente, que supostamente era o quarto bispo de Roma (isto é, um “papa” inicial), escolhido pelo próprio apóstolo Pedro para liderar a grande Igreja. Mas, na realidade, o livro foi escrito cerca de três séculos após Clemente ter sido sepultado. Ou seja, é uma falsificação. Mais que isso, o livro é chamado de Constituições “apostólicas” por transmitir conselhos e instruções dos próprios apóstolos de Jesus, com frequência na primeira pessoa: “Eu, Pedro”, vos digo isso; “Eu, João”, vos digo isso; “Eu, Tiago”, vos digo isso, e assim por diante. Uma das mais fascinantes instruções do verdadeiro autor do livro (não sabemos quem de fato o escreveu) está no fim, quando ele alerta seus leitores a não ler livros que aleguem ter sido escritos pelos apóstolos, não o sendo. Em outras palavras, ele está dizendo a seus leitores para não ler livros como aquele que estão lendo, uma falsificação apostólica. Por que inserir essa instrução? Mais uma vez, como no caso de 2 Tessalonicenses, porque, ao fazer isso, ele tira seus leitores do rastro de sua própria fraude. 

Em 2 Tessalonicenses, somos apresentados a uma situação particularmente interessante. Não importa como se entenda a questão, o livro mostra que é quase certo circularem falsificações em nome de Paulo desde a época dos textos do Novo Testamento. Se os acadêmicos que acham que 2 Tessalonicenses não foi escrita por Paulo estão errados — ou seja, Paulo de fato a escreveu —, isso mostra que o próprio Paulo tinha conhecimento de uma falsificação em seu nome que chegara 

à     igreja de Tessalônica. Mas, se os outros acadêmicos estão certos e Paulo não escreveu 2 Tessalonicenses, esse próprio livro é uma falsificação em nome de Paulo que circulava pela Igreja. De qualquer forma, deveria haver falsificações paulinas já no século I. 

Há outras falsificações dos primórdios da época cristã? Abordo essa questão mais longamente a seguir, estudando evidências de que alguns dos livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas que supostamente são seus autores. Por ora, estou interessado em destacar que esta não é apenas uma descoberta da erudição moderna. Vários dos livros do Novo Testamento foram contestados já nos primórdios do cristianismo, entre os estudiosos cristãos dos séculos II a IV que debatiam quais livros deveriam ser incluídos nas Escrituras.

 

O caso mais famoso é o livro do Apocalipse. Um acadêmico cristão de Alexandria (Egito), do século III, chamado Dionísio argumentou que o livro, na verdade, não fora escrito pelo discípulo João, filho de Zebedeu. O argumento de Dionísio era bom e continua a ser bom para os estudiosos de hoje. Ele sustentava que o estilo de redação do livro é tão diferente daquele do Evangelho de João que eles não poderiam ter sido escritos pela mesma pessoa (estudiosos modernos discordam de Dionísio apenas em pensar que também o evangelho provavelmente não foi escrito por João). Dionísio acreditava que deveria haver dois autores de mesmo nome que depois foram confundidos com a mesma pessoa. Mas é interessante que Dionísio, segundo o pai da Igreja, Eusébio, teve uma série de predecessores que argumentaram que o Apocalipse tinha sido escrito não por outro homem chamado João, mas por um herege chamado Cerinto, que falsificou o relato com o intuito de promover seu falso ensinamento de que haveria um futuro paraíso de mil anos sobre a face da Terra.11 

A pequena epístola de Judas, supostamente escrita pelo irmão do próprio Jesus, também foi discutida nos primórdios da Igreja. Alguns cristãos argumentaram que, em parte, não era autêntica, segundo o famoso estudioso cristão do século IV, Jerônimo, porque o livro cita outro, apócrifo, chamado Enoque, como se fosse Escritura oficial.12 O livro 2 Pedro foi rejeitado por alguns dos primeiros pais da Igreja, como discutido por Jerônimo e Eusébio, mas nenhum deles fora mais franco e direto que o notável mestre cristão de Alexandria, Dídimo, o Cego, que argumentou que “a carta é falsa e, portanto, não deve estar no cânone”.13 Em outras palavras, Pedro não a escreveu, segundo Dídimo, embora o autor alegasse ser Pedro. 

Outros mestres cristãos questionaram se 1 e 2 Timóteo de fato eram de Paulo, alguns alegando que o conteúdo mostrava que ele não as escrevera.14 A epístola aos hebreus foi particularmente debatida; o livro não alega de forma explícita ser escrito por Paulo, mas há indícios de que o autor deseja que os leitores pensem que ele é Paulo (ver 13,22-25). Durante séculos, a autoria paulina foi questionada. O livro foi admitido no cânone apenas quando quase todos passaram a acreditar que Paulo devia tê-la escrito. 

Resumindo: houve, nos primórdios da Igreja, longos, demorados e frequentemente acalorados debates sobre documentos falsificados. Os primeiros cristãos se deram conta de que havia inúmeras falsificações circulando e quiseram saber quais livros eram escritos por seus alegados autores e quais não eram. Como veremos adiante, quase ninguém aprovava a prática da falsificação; ao contrário, ela era amplamente condenada, mesmo em livros em si falsificados (como 2 Tessalonicenses e as Constituições Apostólicas). 

A maior parte deste livro irá se focar em exemplos de falsificação dos primórdios do cristianismo. Contudo, para compreender as primeiras falsificações cristãs, precisamos recuar e analisar o fenômeno da falsificação no mundo antigo de forma mais abrangente. Esse será o objetivo do restante deste capítulo. Começaremos com uma discussão muito importante sobre os termos que empregarei. 

OS TERMOS DO DEBATE 

Os dois primeiros termos são especialmente técnicos, e, embora eu não vá utilizá-los muito, é importante saber o que significam. Um texto “ortônimo” (literalmente, “nome correto”) é aquele de fato escrito pela pessoa que alega estar escrevendo. Das 13 epístolas do Novo Testamento, há sete de Paulo que praticamente todos concordam serem ortônimas. 

Um texto “homônimo” (literalmente, “mesmo nome”) é aquele escrito por alguém que por acaso tem o mesmo nome de outra pessoa. No mundo antigo, a imensa maioria das pessoas tinha os mesmos prenomes. Isso era verdade entre os cristãos, como entre todos os outros. Muitas pessoas se chamavam João, Tiago e Judas, por exemplo. Se alguém chamado João escreveu o livro do Apocalipse e chamou a si mesmo de João, não estava necessariamente alegando ser qualquer outro que não ele mesmo. Quando cristãos posteriores supuseram que aquele João tinha de ser o discípulo João, filho de Zebedeu, a culpa não foi do autor. Ele por acaso apenas tinha o mesmo nome de outra pessoa mais famosa. O livro, portanto, não é falsificado. É apenas homônimo, supondo que João, filho de Zebedeu, não o escreveu, uma suposição segura para a maioria dos acadêmicos críticos. Ele foi incluído no cânone por causa de sua identidade equivocada. 

Outros escritos são “anônimos” (literalmente, “sem nome”). São livros cujos autores nunca se identificaram. Ou seja, tecnicamente falando, um terço dos livros do Novo Testamento. Nenhum dos evangelhos traz o nome do autor. Apenas mais tarde os cristãos os chamaram de Mateus, Marcos, Lucas e João; e escribas posteriores acrescentaram, então, esses nomes aos títulos dos livros. Também são anônimos o livro dos atos e as epístolas conhecidas como 1, 2 e 3 João. Tecnicamente, o mesmo se dá para a epístola aos hebreus; o autor nunca menciona seu nome, mesmo querendo que você suponha ser Paulo.15 

O termo “pseudônimo” (literalmente, “nome falso”) é um pouco mais dúbio, e preciso explicar como o empregarei. Tecnicamente, ele se refere a qualquer livro que apareça sob o nome de alguém que não o autor, mas há dois tipos de textos pseudônimos. Algumas vezes os autores apenas escolhem um nome fantasia. Quando Samuel Clemens escreveu As aventuras de Huckleberry Finn e assinou como “Mark Twain” ele não tentava enganar seus leitores levando-os a pensar que era alguém famoso; era apenas um nome fantasia para disfarçar sua própria identidade. Da mesma forma quando Mary Ann Evans escreveu Silas Marner e assinou “George Eliot”. Esse uso de um nome fantasia não acontecia muito no mundo antigo, mas eventualmente, sim. O historiador grego Xenofonte, por exemplo, escreveu sua famosa obra Anábase usando o nome fantasia de Temistógenes; e o filósofo grego Jâmblico escreveu seu tratado Sobre os mistérios com o nome inventado Abamon. Nesses casos, parece não ter havido qualquer tentativa real de enganar os leitores e levá-los a pensar que o autor era alguém famoso.16 

O outro tipo de escrito pseudônimo envolve um livro que circula sob o nome de outra pessoa, normalmente uma figura com alguma autoridade que, imagina-se, é bem conhecida pelo público leitor. Para esse tipo especial de escrita pseudônima, usarei o termo técnico “pseudoepigráfico” (literalmente, “escrito sob nome falso”). Portanto, um escrito pseudoepigráfico é aquele alegadamente escrito por uma pessoa famosa, bem conhecida ou de autoridade, mas que, na verdade, não o escreveu. 

Entretanto, também há dois tipos de escritos pseudoepigráficos. Algumas vezes um texto foi publicado anonimamente, sem o nome do autor, como o Evangelho de Mateus. Mas leitores e copistas posteriores afirmaram saber quem o havia escrito e alegaram ter sido uma pessoa conhecida e de autoridade, neste caso, o discípulo Mateus. Em escritos desse tipo, equivocadamente atribuídos a uma pessoa conhecida, o autor não está tentando enganar ninguém.17 Ele permaneceu anônimo. Foram leitores posteriores que alegaram ser o autor outra pessoa. Esse tipo de pseudoepigrafia, portanto, envolve uma “falsa atribuição”; uma obra é “atribuída” a alguém que não a escreveu. 

O outro tipo de pseudoepigrafia envolve uma espécie de fraude intencional por parte de um autor. 

É   quando um autor escreve uma obra alegando ser outra pessoa. É o que chamo aqui de falsificação. Minha definição de falsificação, portanto, é um texto que alega ser escrito por alguém (uma pessoa conhecida) que, na verdade, não o escreveu. 

Ao longo dos anos, muitas pessoas fizeram objeções à minha utilização do termo “falsificação”, e compreendo bem a reticência de outros acadêmicos em usar o termo. Nos tempos modernos, quando pensamos em falsificação, pensamos em atividades altamente ilegais (falsificar pedras preciosas, dinheiro ou livros para ter lucro) que podem mandar a pessoa para a cadeia. Os falsificadores da Antiguidade não eram jogados na cadeia, porque não havia leis regulamentando a produção e distribuição de literatura. Não havia leis de direitos autorais, por exemplo. Mas os autores antigos viam esse tipo de atividade como fraudulenta, a reconheciam como enganosa, chamavam a isso de mentir (e outras coisas ainda piores) e com frequência puniam aqueles apanhados fazendo isso. Portanto, quando uso o termo “falsificação”, considero que tem conotação negativa; em parte porque, como veremos, os termos usados pelos autores antigos eram igualmente negativos, quando não ainda mais. 

Porém, meu emprego do termo “falsificação” não diz respeito ao status legal do documento em questão ou à atividade criminosa do autor. É um termo técnico relativo a um tipo de escrita pseudoepigráfica, no qual um autor intencionalmente alega ser outra pessoa. Uma das teses do meu livro é que aqueles envolvidos nessa atividade no mundo antigo eram claramente condenados por mentir e tentar enganar seus leitores. 

MOTIVAÇÕES PARA A FALSIFICAÇÃO 

Se, como demonstrarei mais adiante, a falsificação era bastante condenada, por que as pessoas a praticavam? E como justificavam aos próprios olhos o que estavam fazendo? Essas serão as duas principais questões do restante deste capítulo. A questão de “por que” faziam é um tanto complicada, e aqui preciso fazer uma distinção entre duas ideias que as pessoas algumas vezes confundem. São as noções de “intenção”, por um lado, e “motivação”, por outro. Acho que a diferença entre as duas pode ser facilmente explicada. 

Se minha esposa me perguntasse “Por que você está indo à loja?”, eu poderia dar uma série de respostas. Uma delas poderia ser: “Para comprar algo para o jantar.” Outra poderia ser: “Porque não há nada na geladeira.” São, na verdade, dois tipos diferentes de respostas. A primeira indica o que tenciono fazer assim que estiver na loja: tenciono comprar comida para esta noite. A segunda indica o que me motiva a ir à loja em primeiro lugar: sou motivado pelo fato de que não há comida na casa. Intenção não é o mesmo que motivação. A “intenção” é o que você quer realizar; a “motivação” é a razão pela qual quer realizar. 

Esse também é o caso no que diz respeito a falsificadores e suas falsificações. Há uma diferença entre a intenção e a motivação de um falsário. Em quase todos os casos, a intenção do falsificador é enganar os leitores sobre sua identidade, ou seja, fazer os leitores acreditarem que é outro que não ele. Mas pode haver muitas diferentes razões (motivações) para se querer fazer isso. 

Os autores sempre tiveram numerosas razões para querer escrever uma falsificação. No mundo moderno, como já vimos, a principal motivação é ganhar dinheiro, como no caso de Konrad Kujau e os diários de Hitler. Essa não parece ser a principal razão para falsificações na Antiguidade. O mercado para tais “livros originais” era limitado porque a indústria editorial era muito modesta — livros não podiam ser produzidos em massa e publicados amplamente. Mas havia casos em que livros falsificados podiam gerar lucro, como aprendemos com um autor famoso chamado Galeno, um médico do século II que vivia em Roma. 

Galeno era extremamente culto e um dos autores mais prolíficos do mundo antigo. Aquele era um mundo em que na maioria dos casos não havia bibliotecas públicas que as pessoas pudessem usar. Mas às vezes um rei local criava uma biblioteca, sobretudo para estudiosos, e algumas vezes havia uma competição entre as bibliotecas para adquirir um acervo superior ao das concorrentes como uma espécie de símbolo de status. As duas mais importantes bibliotecas da Antiguidade eram as de Alexandria, no Egito, e de Pérgamo, na Ásia Menor. Segundo Galeno, os reis que construíram essas bibliotecas estavam ansiosos para aumentar seu acervo, e pretendiam conseguir o maior número possível de exemplares originais de autores como Platão, Aristóteles, Hipócrates, Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Ter cópias originais desses escritos era importante em uma época em que os escribas cometiam erros ao reproduzir o texto. Se você possuía o original, sabia ter as palavras do próprio autor, não algum tipo de cópia repleta de erros, estragada pelo escriba local. Então essas duas bibliotecas estavam dispostas ao pagamento contra entrega, em dinheiro, por cópias originais das obras de seus autores cobiçados. 

Você ficaria impressionado com quantas cópias “originais” de Platão, Aristóteles e Eurípedes começam a aparecer quando se está disposto a pagar em ouro por elas. Segundo Galeno, começaram a surgir falsificações feitas por autores inescrupulosos, interessados apenas no dinheiro.18 

Vimos outra motivação, ou combinação de motivações, no caso de Dionísio, o Renegado. Pode-se argumentar que Dionísio perpetrou sua peça fraudulenta, o Parthenopaeus, principalmente para ver se conseguiria não ser desmascarado. Ou talvez para fazer de tolo sua nêmesis, Heráclides. Temos, no mundo antigo, outros casos de motivação similar, enganar alguém, ou todos. Na verdade, uma motivação assim pode ainda existir em nosso mundo atual, já que alguns acadêmicos pensaram que uma das mais famosas “descobertas” de um antigo evangelho no século XX foi, na verdade, uma falsificação do acadêmico que alegou tê-lo descoberto. Foi o famoso Evangelho secreto de Marcos, supostamente descoberto por Morton Smith em 1958.19 

Outros autores falsificaram documentos com finalidades políticas ou militares. O historiador judeu Josefo, por exemplo, relata que um inimigo de Alexandre, o filho do rei Herodes, falsificou uma carta em nome de Alexandre, anunciando planos para assassinar seu pai. Segundo Josefo, o falsificador era um secretário do rei, “um homem corajoso, habilidoso na contrafação da caligrafia de qualquer um”. Mas o plano fracassou; após apresentar muitas falsificações, o homem foi apanhado e “enfim executado por isso”.20 

Falsificações políticas não costumavam ser tratadas com gentileza. Mas algumas vezes funcionavam. No século III, o imperador romano Aureliano tinha um secretário particular chamado Eros que caíra em desgraça com o mestre e estava prestes a ser punido. Para impedir isso, falsificou uma lista de nomes de líderes políticos que o imperador supostamente decidira executar por traição e a colocou em circulação. Os homens na lista se rebelaram e assassinaram o imperador.21 

Algumas vezes a motivação para uma falsificação era menos política que religiosa — defender instituições ou práticas religiosas, ou as alegações da religião de alguém contra as dos adversários. Um dos relatos mais divertidos está nos escritos do autor pagão do século II Luciano de Samósata, homem de uma brilhante sagacidade e crítico perspicaz de todo tipo de hipocrisia. Um dos hilariantes tratados de Luciano, Alexandre, o falso profeta, é dirigido a um homem chamado Alexandre, que queria instalar um “oráculo” — ou seja, um lugar onde um deus se comunicaria com os humanos — na cidade de Abonuteichos. Alexandre era um sujeito habilidoso, ele sabia que tinha de convencer as pessoas de que o deus Apolo realmente decidira se comunicar por intermédio dele, naquele local de profecia recém-aberto, já que planejava receber pagamentos por ser capaz de transmitir os pronunciamentos de Apolo aos que fossem buscá-los. Então, segundo Luciano, Alexandre falsificou um conjunto de tabuletas de bronze e o enterrou em um dos mais antigos e famosos templos de Apolo, na cidade de Calcedônia. Quando as tabuletas foram desenterradas, correu a notícia do que estava escrito naquela descoberta “milagrosa”. Apolo declarava nas tabuletas que logo se mudaria para se instalar em um novo lar, em Abonuteichos. Alexandre então abriu o oráculo lá e atraiu um grande número de seguidores, graças, em grande medida, aos escritos falsificados em nome do deus que ele alegava representar. 

Um exemplo de uma falsificação judaica criada para apoiar o judaísmo pode ser encontrado na famosa Carta de Aristeas.22 Aristeas era supostamente um pagão integrante da corte do rei egípcio Ptolomeu Filadelfo (285-246 a.C.). Nessa carta, “Aristeas” descreve como o rei decidira incluir uma cópia das Escrituras judaicas em sua biblioteca em expansão, de modo que conseguira com o sumo sacerdote judaico em Israel o envio ao Egito de acadêmicos para traduzir os textos sagrados do idioma hebraico original para o grego. Setenta e dois acadêmicos foram enviados, e, por uma milagrosa intervenção divina, eles conseguiram produzir, individualmente, a mesma redação exata para suas traduções das Escrituras. Como a Carta de Aristeas foi supostamente escrita por um não judeu oferecendo um relato mais ou menos “desinteressado” de como a Bíblia hebraica fora traduzida para o grego, tem toda a aparência de estar descrevendo os fatos “como de fato eram”. Mas, na realidade, a carta é uma falsificação, produzida por um judeu de Alexandria no século II a.C. Ela foi escrita, em parte, com o objetivo de mostrar a inspiração divina dos textos sagrados judaicos, mesmo em sua tradução para o grego. 

Como já foi inferido em exemplos anteriores, algumas vezes falsificações eram criadas com o objetivo expresso de deixar um inimigo pessoal em apuros (como no caso de Dionísio, o Renegado) ou colocar um adversário em problemas sérios (como a pessoa que falsificou uma carta ao rei Herodes). Na verdade, essa é uma das motivações mais confirmadas para criar falsificações no mundo antigo. O poeta romano Marcial, autor de um grande número de poemas inteligentes e muito engraçados, queixa-se, em muitas situações, de que outros falsificaram poemas em seu nome, que eram ou muito ruins, ou de péssimo gosto, justamente para criar uma imagem ruim sua.23 

Ainda mais injurioso é um episódio relatado pelo historiador da filosofia, Diógenes Laércio, indicando que um inimigo do famoso filósofo Epicuro, um rival chamado Diótimo, forjou cinquenta cartas obscenas em nome de Epicuro e as colocou em circulação. Epicuro já tinha problemas por má reputação (imerecida) como alguém viciado no prazer. Essas falsificações só alimentaram o fogo.24 

Ou pensem no caso de Anaxímenes, como nos conta um geógrafo grego do século II d.C., Pausânias. Anaxímenes era um sujeito inteligente, mas desagradável, que tinha uma rivalidade com um famoso orador chamado Teopompo. Para atingir seu inimigo, alega Pausânias, Anaxímenes escreveu um tratado sobre o estilo de redação de Teopompo, chamando a si mesmo de Teopompo. Nesse tratado, ele era agressivo para com os cidadãos das três principais cidades gregas: Atenas, Esparta e Tebas. Assim que o tratado começou a circular nessas cidades, Teopompo se tornou persona non grata, embora não tivesse nada a ver com aquilo.25 

Outros falsificadores produziram trabalhos com objetivos mais nobres, como dar esperança aos seus leitores. Uma das formas mais comuns de falsificação de escritos judaicos, na época do começo do cristianismo, era o gênero literário conhecido como apocalipse. Um apocalipse (do grego, que significa “revelação”, “descoberta”) é um texto que revela a verdade do reino celestial aos mortais para ajudá-los a compreender o que acontece aqui na Terra. Algumas vezes essa verdade é revelada por meio de visões bizarras e simbólicas que o autor supostamente tem e são explicadas por uma espécie de intérprete angelical. Um exemplo é o livro de Daniel, da Bíblia hebraica. Em outros casos, o autor teria sido levado ao céu para ver as grandes verdades do reino divino que dão sentido aos acontecimentos horrendos que acontecem aqui na Terra. Um exemplo cristão é o livro do Apocalipse no Novo Testamento. 

Esses livros têm como objetivo inspirar esperança em seus leitores. Embora as coisas pareçam totalmente fora de controle aqui na Terra, embora haja muita dor, infelicidade e sofrimento, embora guerras, fomes, epidemias e catástrofes naturais estejam esmagando a raça humana, embora as coisas pareçam inteiramente fora das mãos de Deus, a despeito de tudo isso, tudo se passa de acordo com o plano. Deus logo consertará tudo o que está errado. Se as pessoas suportarem um pouco mais, sua confiança em Deus dará frutos, e Ele interferirá no curso dos acontecimentos aqui na Terra para restaurar a paz, a justiça e a alegria eternas. 

Apocalipses são quase sempre escritos sob pseudônimo com o nome de algum personagem religioso renomado do passado.26 Nos círculos cristãos, temos apocalipses em nome de Pedro, Paulo e do profeta Isaías. Em círculos judaicos, apocalipses em nome de Daniel, Enoque, Abraão e mesmo Adão! Os estudiosos costumam alegar que esses livros não podem ser considerados falsificações porque escrevê-los com pseudônimos fazia parte do trabalho; o gênero literário, de certa forma, exigia que fossem escritos por alguém que “conhecesse” essas coisas, ou seja, alguém em alta conta junto a Deus. Mas considero essa visão simplista demais. A realidade é que os antigos de fato acreditavam que eram escritos pelas pessoas que alegavam estar escrevendo, como vemos repetidamente nos antigos testemunhos.27 Os autores desses livros também sabiam disso. Eles assumiam nomes falsos justamente porque seus escritos se mostravam mais eficazes dessa forma.

Isso se relaciona com a mais importante motivação isolada para os autores alegarem ser outra pessoa na Antiguidade: conseguir público para seus pontos de vista. Se você era um desconhecido, mas tinha algo de fato importante a dizer e queria que as pessoas o escutassem — não para que o louvassem, mas para que pudessem conhecer a verdade —, uma forma de fazer isso acontecer era fingir ser outra pessoa, um autor conhecido, um personagem famoso, uma autoridade. 

Assim, por exemplo, se você queria escrever um tratado filosófico abordando alguns dos mais complexos problemas éticos que o mundo enfrentava, mas não era um filósofo famoso, poderia escrever o tratado e alegar ser Platão ou Aristóteles, assinando em seus nomes. Se pretendia produzir um apocalipse explicando que Deus logo iria intervir para derrotar as forças do mal neste mundo, e queria que as pessoas percebessem que era uma mensagem que precisava ser ouvida e repetida, não assinaria com seu próprio nome (o Apocalipse de Joe), mas com o nome de um personagem religioso famoso (o Apocalipse de Daniel). Se queria um evangelho dos mais importantes ensinamentos de Jesus, mas na verdade vivia cem anos depois de Jesus e não tivera qualquer acesso direto ao que Ele dissera, escreveria os ensinamentos que considerava mais interessantes e alegaria ser alguém que realmente ouvira Jesus falar, chamando seu livro de Evangelho de Tomé ou Evangelho de Filipe. 

Essa motivação existia em círculos cristãos e não cristãos. Sabemos disso porque autores antigos nos dizem. Por exemplo: um comentarista dos escritos de Aristóteles, um estudioso pagão chamado David, indicou: “Se alguém é carente de influência e desconhecido, mas quer que seu escrito seja lido, escreve em nome de alguém que veio antes dele e era influente, de modo que, por intermédio de sua influência, ele pode ter seu trabalho aceito.”28 

Foi o caso da única situação que temos de um falsificador cristão que foi apanhado e depois explicou por escrito o que havia feito. No século V do calendário cristão, viveu em Marselha um líder da igreja chamado Salviano. Como muitos outros em sua época, Salviano decidiu, com sua esposa, expressar sua devoção a Deus renunciando ao mundo e adotando um estilo de vida ascético. Salviano se sentia ultrajado com o mundanismo da Igreja e com membros desta que se preocupavam mais com conforto e riqueza pessoais do que com as exigências do evangelho. Ele então escreveu uma carta chamada Timóteo à Igreja. Escrita com autoridade, a carta parecia a seus leitores ter sido de fato escrita por Timóteo, o famoso companheiro do apóstolo Paulo quatrocentos anos antes. Mas, de algum modo, o bispo de Salviano suspeitou que ele a havia escrito. Ele confrontou Salviano, e este admitiu o que fizera. 

Contudo, Salviano era um sujeito que gostava de se defender, então escreveu uma explicação de por que produzira uma epístola pseudônima. Como indivíduos na defensiva costumam fazer, Salviano deu muitas desculpas. O nome Timóteo, por exemplo, significa literalmente “honrado por Deus”, portanto, disse ele, usara esse nome para mostrar que escrevera honrando a Deus. Mas sua principal defesa foi a de que era um ninguém, e se ele mesmo escrevesse uma epístola às igrejas, ninguém prestaria atenção. Ou, como colocou em sua defesa por escrito, o autor havia “sabiamente escolhido um pseudônimo para seu livro pela razão óbvia de que não desejava que a obscuridade de sua própria pessoa prejudicasse a influência desse livro, em outras circunstâncias, valioso”.29

Por outro lado, escrevendo sob o nome de Timóteo, ele esperava conseguir leitores. Seus pontos de vista são para ele suficientemente importantes para que adotasse um nome falso. Não há nada na história que sugira que o bispo de Salviano aceitara essa desculpa com serenidade (a história nos é contada por Salviano, não por seu bispo). Pelo contrário, se o bispo era como todos os outros leitores do mundo antigo, que comentam tais coisas, não ficou nada satisfeito por Salviano ter mentido sobre sua identidade. 

AS TÉCNICAS DOS FALSIFICADORES 

Nunca nos foi dito como o bispo de Salviano se deu conta de que a carta alegadamente de Timóteo havia, na verdade, sido escrita por seu presbítero. Mas provavelmente não é muito difícil imaginar. A carta abordava as preocupações que o próprio Salviano tivera e, sem dúvida, partilhara repetidamente com outros membros e líderes da Igreja. Como era uma pessoa alfabetizada, poderia muito bem ter escrito outros tratados sobre esse tema ou outros relacionados. Se seu bispo tinha conhecimento das preocupações de Salviano e lera seus outros escritos, estando familiarizado com seu estilo de redação, teria somado dois e dois e notado que aquela epístola, que surgira de repente do nada, era uma produção moderna escrita sob pseudônimo.

 Muito poucos falsificadores no mundo antigo eram apanhados com a mão na massa.30 Os motivos parecem bastante óbvios. Para começar, os estudiosos antigos que se dedicavam a identificar falsificações não tinham os sofisticados métodos de análise de que dispomos hoje, com computadores, bases de dados, análises intrincadas de estilos literários e assim por diante. Um estudioso antigo com frequência podia dizer que um texto literário não era do mesmo autor de outro texto (por exemplo, que o livro do Apocalipse não foi escrito pelo mesmo autor do quarto evangelho). Mas é muito mais fácil dizer quem não escreveu um livro (Paulo não escrevia em hebraico) do que quem o escreveu (Efésios, se não por Paulo, foi escrito por quem?). 

Ainda mais importante, os falsificadores tomavam cuidado para não serem apanhados. E tinham sucesso na maioria das vezes. Em uma das fascinantes discussões modernas sobre falsificação, Anthony Grafton, da Universidade de Princeton, mostra que, ao longo dos séculos, a arte da falsificação se tornou cada vez mais refinada à medida que a arte de identificar falsificações melhorava seus métodos. Quão melhores os estudiosos se tornavam em reconhecer uma falsificação, melhor os falsificadores ficavam em evitar a detecção. Isso levou os estudiosos a refinar seus métodos, o que, por sua vez, estimulou os falsificadores a melhorar sua técnica.31 

Os falsificadores antigos costumavam usar vários métodos para escapar da detecção. Primeiro, e obviamente, qualquer um falsificando um documento em nome de um autor bem conhecido dava o melhor de si para imitar o estilo literário e o vocabulário do autor. Todos têm um estilo de redação próprio, e a princípio todo estilo pode ser imitado. Imitadores menos habilidosos apenas reconheciam palavras incomuns em geral usadas por um autor e as utilizavam muito (algumas vezes, muito mais do que o autor que estava sendo imitado). Outros tentavam imitar as formas específicas pelas quais o autor aplicava a gramática: tamanho da sentença, uso de particípios, utilização de fragmentos de sentenças e assim por diante. No caso de autores muito educados, essa questão de imitar o estilo de redação era quase uma segunda natureza; na educação superior da formação “retórica” que a elite recebia, um exercício regular era escrever um relato ou discurso no estilo de um autor ou orador famoso. As pessoas mais educadas do império eram ensinadas a fazer isso normalmente.32 A maioria dessas pessoas, claro, não estava envolvida no negócio de falsificações. 

O fato de que um falsificador tentava imitar o estilo do autor pode dificultar a identificação de falsificações. Mas a realidade é que algumas pessoas eram mais habilidosas nisso do que outras. Assim como a maioria das pessoas hoje não seria capaz de falsificar um Rembrandt mesmo se sua vida dependesse disso, a maioria das pessoas não consegue “soar” como Aristóteles, Plutarco ou Paulo. 

Um segundo truque dos falsificadores era incluir verossimilhanças em seus escritos. O termo “verossimilhança” se refere a uma declaração, um comentário ou observação de passagem que faz um texto parecer “muito similar” ao que você esperaria que o suposto autor tivesse dito. Falsificadores faziam comentários pessoais sobre os destinatários de uma carta, mesmo que, na verdade, não a estivessem enviando a ninguém. Por que dizer que estará rezando pelos destinatários da carta em seu tempo de perseguição se na verdade não a está enviando a pessoas que são perseguidas? Porque, se você diz isso, com certeza soa como se a estivesse enviando para aqueles que são perseguidos! Por que pedir um favor pessoal a alguém para quem escreve se, na verdade, não está escrevendo a essa pessoa? (“Ei, Tiago, não se esqueça de mandar minhas recomendações à sua mãe, e lembre-se de trazer aquele livro que deixei em sua casa.”) Porque não há forma melhor de fazer parecer que a carta é autêntica. Por que inventar nomes de destinatários, seu relacionamento anterior com esses destinatários, experiências que partilharam e das quais se recordam e assim por diante? Tudo isso acrescenta credibilidade a seu texto, fazendo parecer que de fato está escrevendo a essa pessoa, naquele momento e situação, mesmo que esteja escrevendo quatrocentos anos depois a ninguém em particular. 

Já vimos um tipo de verossimilhança em nossa discussão anterior. Tanto em 2 Tessalonicenses, do século I, quanto em Constituições Apostólicas, trezentos anos depois, o autor pseudônimo diz a seus leitores para não ler escritos pseudônimos. Ou, sendo mais preciso, o falsificador alerta seus leitores para não ler falsificações. Por quê? Em parte porque isso deixa os leitores menos propensos a suspeitar de que o livro que têm seja ele mesmo uma falsificação. Ou seja, é um tipo de verossimilhança. 

Uma última técnica usada por alguns falsificadores envolve uma “narrativa da descoberta”. Se surge esta semana um livro supostamente escrito há duzentos anos, a pergunta que se faz é onde ele esteve todo esse tempo. Falsificadores às vezes começam ou terminam seus textos descrevendo o que levou ao desaparecimento e à descoberta do livro. Um autor pode, por exemplo, começar um livro explicando que teve um sonho, e que nesse sonho lhe foi dito para cavar um buraco fundo no lado sul de um carvalho no campo do outro lado do riacho em sua fazenda. Quando ele cavou o buraco, encontrou uma antiga caixa de madeira. Dentro da caixa, havia um manuscrito em más condições. Ele copiou esse manuscrito à mão, e ei-lo, uma revelação dada diretamente por Cristo ao apóstolo Tiago e escondida do mundo até agora. 

O livro então alega ter sido escrito por Tiago, como “copiado” pelo descobridor do manuscrito. O livro não é muito conhecido por ter passado todos esses anos escondido. Mas agora veio à luz, e aqui está. Com a exceção de que, na verdade, não está aqui. O que está aqui é um livro escrito não por Tiago, mas por um falsificador alegando ser Tiago e que convenientemente incluiu uma explicação para o motivo de ninguém nunca antes ter ouvido falar nesse livro. 

ANTIGAS VISÕES DA FALSIFICAÇÃO 

   Já indiquei que os estudiosos algumas vezes relutam em usar o termo “falsificação” para escritos pseudoepigráficos nos quais um autor alega ser outra pessoa. Adiante, abordarei mais detidamente o que alguns estudiosos alegaram acerca desse fenômeno, para evitar que se pense nesses livros como falsificações. Será no capítulo 4, após termos dois capítulos com dados que nos ajudarão a avaliar essas alegações. Na verdade, muitos estudiosos do Novo Testamento que dão declarações sobre falsificação (“Não pretendia enganar.” “Ninguém via isso como uma mentira.” “Não foi depreciativo.”) não leram o que as fontes antigas dizem sobre isso. Ao longo de todo este livro ficará bastante claro, com base nos próprios escritos antigos, que, embora a falsificação fosse amplamente praticada, também era amplamente condenada e tratada como uma forma de mentira. Para começarmos aqui, quero dar apenas alguns exemplos, que poderiam ser multiplicados com facilidade, de como os antigos pensavam e falavam sobre a prática da falsificação. 

A primeira coisa a notar é que praticamente em todos os casos em que um autor antigo menciona falsificação, ele a condena. Há algumas poucas exceções, que discutirei com detalhes no capítulo 4. Mas essas exceções são de fato excepcionais, pelos motivos que veremos. De longe, o discurso dominante no mundo antigo era contra a falsificação, considerada uma prática enganosa e ilícita. Isso não significa que as pessoas não se dedicassem à prática — o adultério costuma ser visto hoje como uma prática enganosa e ilícita, mas isso não detém muitas pessoas. A despeito das condenações, a prática da falsificação floresceu na Antiguidade. 

Uma das mais famosas histórias de falsificação envolve o médico romano do século II, Galeno, que já mencionei. Em um dos seus textos preservados, Galeno oferece um relato autobiográfico, no qual fala sobre identificar uma falsificação. Em seu relato, ele estava certo dia caminhando por uma rua de Roma e passou diante da loja de um livreiro. Havia na vitrine dois homens discutindo sobre um livro supostamente escrito por Galeno! Um homem afirmava acaloradamente que Galeno de fato escrevera o livro; o outro insistia em que o estilo literário estava todo errado, que Galeno não poderia tê-lo escrito. Esse episódio aqueceu o coração de Galeno, já que de fato não escrevera o livro. Ele então foi para casa e escreveu um livro, que ainda temos hoje. Algumas vezes é chamado Como reconhecer livros escritos por Galeno. 

Será que Galeno achava uma prática aceitável alguém mais escrever em seu nome? Claro que não. Nem ninguém que descobria falsificações em seu nome. Já mencionei o poeta Marcial, que ficou furioso por outros poetas tentarem empurrar seus próprios trabalhos (que ele considerava enormemente inferiores) como sendo seus. Entre os cristãos, temos queixas ultrajadas sobre falsificações de escritos de Orígenes, Jerônimo e Agostinho. A falsificação era tão condenada na Antiguidade que até falsificadores condenavam a falsificação — como vimos no caso de 2 Tessalonicenses e nas Constituições Apostólicas. 

Alguns estudiosos argumentaram energicamente, mas sem muitas evidências, que era uma prática comum e aceita em escolas de filosofia escrever um tratado filosófico e assiná-lo com o nome do mestre (Platão, Pitágoras etc.) em vez de com o seu próprio, e que ninguém via a prática com maus olhos. Como constataremos no capítulo 4, na verdade, há poucas evidências de que isso acontecesse. Peça a um estudioso atual que alega ser isso uma prática disseminada na Antiguidade que cite uma fonte antiga. Em quase todos os casos, você terá um acadêmico mudo.33 

Que a falsificação era amplamente condenada na Antiguidade pode ser visto por alguns dos termos usados para descrever a prática, a maioria dos quais é pelo menos tão negativa quanto a palavra moderna “falsificação”. Em grego, as palavras mais comuns para descrever textos literários cujos autores alegavam falsamente ser um personagem conhecido são pseudos, que significa “uma falsidade” ou “uma mentira”, e nothos, significando “filho ilegítimo”, com conotações similares à palavra moderna “bastardo”.34 

Em relação à primeira palavra, alguns estudiosos insistiram em que pseudos não necessariamente tem a conotação negativa de uma mentira explícita, já que algumas vezes é usada apenas para indicar informação incorreta, uma falsidade — o que com certeza ocorre em determinados contextos. Mas a palavra não teria essa conotação negativa apenas nos casos em que aqueles que proferem a falsidade não se dão conta de que o que dizem é um erro. Já quando uma pessoa fala algo que é falso sabendo ser falso, pseudos sempre significa o mesmo que “mentira” significa para nós: uma falsidade intencional com o objetivo de levar ouvintes ou leitores a pensar que é certo. Não pode haver dúvida de qual conotação se aplica a antigas falsificações. A pessoa que escreveu o Evangelho de Pedro alegando ser o discípulo de Jesus Simão Pedro, cerca de sessenta anos após a morte de Pedro, percebeu que, na verdade, não era Simão Pedro? A não ser que fosse um lunático, claro que sim. Ele intencionalmente alegou ser alguém que não era. Em grego, isso seria chamado de pseudos; aqui chamaríamos de mentira. 

O outro termo, nothos, pode soar um tanto confuso. Ele costuma ser traduzido por “espúrio”, que pode ser bastante preciso, mas não tem as mesmas conotações da palavra grega, que normalmente se refere a um filho bastardo. A lógica do termo no contexto da falsificação é clara. Se um filho nascido fora dos laços do casamento é criado por sua mãe e seu marido (que não é o pai da criança), a criança não “pertence”, por sangue, a seu suposto pai; não há relação entre eles. Ademais, na Antiguidade, a criança não tinha direitos legais. Da mesma forma, um texto literário. Se ele leva o nome de um autor que, na verdade, não o produziu, não tem relação nem é legalmente ligado àquela pessoa, derivando de outro. Então é chamado de nothos, um filho ilegítimo, um texto que não pertence ao autor alegado. 

Os dois termos são negativos, não neutros, e mostram o que os antigos pensavam da prática da falsificação. Um autor que produz um escrito no nome de outro produziu um “escrito falso”, “uma mentira”, “um filho ilegítimo”, ou um “bastardo”. Termos semelhantes são usados por autores latinos para o ato de falsificação, como palavras significando “mentir”, “fraudar”, “inventar”, “adulterar”, “falsificar”. 

Ao contrário do que alguns estudiosos alegaram (mais uma vez, ver capítulo 4), os falsificadores do mundo antigo em geral queriam enganar seus leitores alegando ser pessoas com autoridade e posição. Isso foi há muito reconhecido pelos verdadeiros especialistas em falsificações antigas.35 E um instante de reflexão mostra por que tem de ser assim. Pense nas motivações para falsificação já mencionadas. Falsificadores que queriam descobrir se podiam passar incólumes, se podiam enganar os outros, dificilmente teriam tentado deixar isso transparente e óbvio; teriam querido enganar as pessoas. Se pretendiam ganhar dinheiro produzindo um “original” de, digamos, um diálogo de Platão, não iriam muito longe se todos soubessem quem de fato eram. Se queriam justificar uma instituição política ou uma prática religiosa citando os pontos de vista de uma autoridade ou queriam ter seus próprios pontos de vista aceitos como oficiais, mesmo sendo eles mesmos totalmente desconhecidos, não faria sentido alegar ser outra pessoa sabendo muito bem que ninguém acreditaria em você. 

Que a falsificação não era uma ficção transparente fica evidente também pelas coisas negativas que as pessoas diziam sobre ela nas fontes antigas — a prática, como argumentei, é condenada em quase todos os momentos em que é discutida. Ademais, as reações aos falsificadores, quando apanhados, mostram com clareza que eles pretendiam enganar, que com frequência tinham sucesso nisso e que as pessoas não gostavam nada quando descobriam a verdade. Galeno e Marcial ficaram furiosos ao descobrir outra pessoa usando seus nomes para escritos que não produziram. E algumas vezes a reação era ainda mais hostil. 

A primeira vez de que temos conhecimento de um falsificador ser descoberto se dá no século V a.C., nos escritos do famoso historiador grego Heródoto.36 Em uma passagem perturbadora e enigmática, Heródoto fala de Onomácrito de Atenas, que inventara um oráculo (isto é, uma profecia de um ser divino) e a atribuíra ao antigo bardo Museu, um personagem mítico considerado capaz de prever o futuro. Esse oráculo indicou que certo grupo de ilhas afundaria no mar. É difícil entender por que Onomácrito falsificaria o oráculo e por que as pessoas ficariam aborrecidas com isso. Mas ficaram. O governante de Atenas, Hiparco, baniu Onomácrito da cidade; ele fugiu da Grécia e terminou na Pérsia. Em outras oportunidades, acreditou-se que Onomácrito havia falsificado outros oráculos e foi amplamente atacado por isso por outros autores antigos, como Plutarco.37

Algumas vezes, a punição para falsificação era ainda mais dura. Já mencionei as cinquenta cartas obscenas que o filósofo Diótimo forjou em nome de Epicuro para manchar sua reputação. Segundo uma fonte antiga, os seguidores de Epicuro não gostaram. Um deles, um homem chamado Zeno, localizou Diótimo e o assassinou.38 Isso pode ser comparado com o relato já mencionado do historiador judeu Josefo de que alguém falsificara uma carta em nome de Alexandre, filho do rei Herodes, indicando um plano de Alexandre para assassinar o pai. Como vimos, o falsificador era o secretário do próprio rei, que, segundo Josefo, “foi finalmente condenado à morte por isso”. 

De todas as discussões sobre falsificações em fontes antigas, acho que podemos, com segurança, tirar várias grandes conclusões. A falsificação era praticada amplamente no mundo antigo, entre pagãos, judeus e cristãos. Os falsificadores, movidos por uma série de fatores, pretendiam enganar seus leitores. Autores antigos que discutem a prática a condenaram e consideraram uma forma de mentira e fraude. Falsificadores apanhados eram censurados ou punidos com ainda mais severidade. 

POSSÍVEIS JUSTIFICATIVAS PARA A FALSIFICAÇÃO

O mais completo estudo da falsificação na Antiguidade já realizado, do acadêmico clássico austríaco Wolfgang Speyer, afirma: “Toda falsificação simula um estado de coisas que não corresponde aos verdadeiros fatos do caso. Por essa razão, a falsificação pertence ao âmbito da mentira e do logro.”39 Esse ponto de vista coincide perfeitamente com aquele que tenho tentado defender neste capítulo, mas nos deixa com um problema. Quando consideramos em particular falsificações cristãs, lidamos com escritos produzidos por seguidores de Jesus, que presumivelmente seguiam os ensinamentos éticos de Jesus e as normas morais estabelecidas nas Escrituras Hebraicas. Eles com certeza sabiam que mentira e fraude eram errados. Por que fariam algo que sabiam ser errado? E certamente a questão se aplica também a pagãos e judeus, que como um todo eram tão éticos quanto os cristãos. Por que qualquer um deles iria contra seus próprios pontos de vista éticos? 

Em determinado nível, claro, a pergunta é boba. Todas as pessoas fazem coisas que sabem ser erradas. Mas me refiro a essa questão em nível mais profundo. Será que os falsificadores que perpetraram suas fraudes pensavam ter justificativa para mentir? A mentira pode ser justificada? Voltarei ao tema no capítulo 8, mas por ora devo pelo menos preparar o terreno fazendo uma pergunta mais geral. O que as pessoas na Antiguidade pensavam de mentira e fraude? 

Perguntar o que os antigos pensavam da mentira é como perguntar aos modernos — depende de a quem você pergunta. Alguns acham que mentir nunca é aceitável em circunstância alguma; outros pensam que em certas circunstâncias é a coisa ética a fazer. E há aqueles que não acham nada sobre mentir. 

Alguns filósofos gregos antigos, notadamente Aristóteles, insistiram na importância de em geral ser verdadeiro.40 Mas a maioria dos filósofos pensava que podia haver exceções. Xenofonte, por exemplo, relata Sócrates dizendo que é uma coisa boa mentir a um filho ou amigo doente que deseja cometer suicídio caso você possa impedir a pessoa de fazê-lo.41 

Sócrates também disse que era útil a um general de campo mentir a seus soldados desalentados em batalha, dizendo que as tropas de apoio logo chegarão, para levá-los a lutar com maior valor; ou a um pai enganar um filho para tomar um remédio desagradável que fará bem a ele. Platão ensinou que algumas mentiras podem ser úteis, como aquelas que os médicos poderiam contar aos pacientes para seu próprio bem ou as que os governantes de um país poderiam contar a seu povo a fim de garantir o funcionamento saudável da sociedade. Como disse um escritor antigo, Heliodoro: “Uma mentira é boa quando beneficia aquele que a conta sem causar mal ao que a escuta.”42 

Contudo, e quanto aos cristãos? Eles não foram ensinados a sempre dizer a verdade? Com certeza foi o que o grande teólogo da Igreja do século V, Agostinho, ensinou em seus dois tratados dedicados à    “mentira”. Nunca, jamais, em qualquer circunstância, é admissível mentir. O ponto de vista de Agostinho não se baseava em uma noção simplista de que sempre era bom dizer a verdade, mas em uma compreensão teológica profunda do que significa ser verdadeiramente humano na relação com o Deus da verdade, que se tornou Ele mesmo plenamente humano.43 

No entanto, muitos outros pensadores cristãos, tanto antes quanto depois de Agostinho, pensaram diferente. Alguns, como o importante pensador cristão Clemente de Alexandria, no fim do século II, bem como seu compatriota alexandrino do começo do século III, Orígenes — provavelmente o mais importante teólogo da Igreja antes de Agostinho —, concordaram com Platão sobre a “mentira medicinal”: se a mentira de um médico for impelir um paciente a tomar seu remédio, é eticamente justificada.44 Ambos também destacaram que no Antigo Testamento o próprio Deus parece em certos momentos se valer de embustes. Quando Deus mandou Jonas proclamar à cidade de Nínive que ela seria derrubada em quarenta dias, obviamente sabia muito bem que as pessoas se arrependeriam e Ele deteria Sua mão no julgamento. Portanto, Deus nunca planejou derrubar a cidade, embora tenha sido o que mandou Seu profeta proclamar. Algumas vezes, uma declaração enganosa pode fazer muito bem. 

Há, nas Escrituras, muitos outros exemplos nos quais as mentiras dos escolhidos por Deus levam a um bom resultado. Se Abraão não tivesse mentido sobre sua esposa Sara (“é minha irmã”), teria sido morto, e a nação de Israel nunca teria passado a existir (Gênesis 12). Ou, se a prostituta Raabe não houvesse mentido sobre onde os espiões israelitas se escondiam, eles poderiam ter sido mortos e os filhos de Israel nunca teriam conseguido conquistar a terra prometida (Josué 2). São muitos os exemplos. Algumas vezes, mentir é a coisa certa a fazer. 

É    o que os falsificadores pensavam? Que mentir sobre quem eram valia a pena? Que os efeitos positivos do seu embuste superavam os negativos? Que os fins justificavam os meios? 

Temo que nunca iremos saber o que levou essas pessoas a fazer o que fizeram. Não podemos examinar seus corações e mentes para descobrir o que estavam pensando, no fundo, quando decidiram esconder sua própria identidade e alegar, de forma fraudulenta, ser outra pessoa. Seus leitores, caso soubessem, provavelmente os teriam chamado de mentirosos e condenado o que fizeram. Mas, aos seus próprios olhos, sua consciência poderia estar livre de culpa, e seus motivos poderiam ser tão puros quanto a neve que cai. Eles tinham uma verdade a transmitir e estavam felizes por mentir para poder proclamá-la.

 

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