6) Capítulo Seis - Falsificações em conflitos com falsos mestres

Capítulo Seis - Falsificações em conflitos com falsos mestres    

Sempre gostei de um bom debate racional sobre questões polêmicas. No ensino médio, eu participava da equipe de debates e adorava. Meus colegas de debates e eu éramos bons já aos 16 anos, capazes de assumir qualquer dos lados de uma discussão e defendê-lo, depois trocar de posição e argumentar o contrário no debate seguinte. Ainda hoje participo de debates públicos nos Estados Unidos, quase sempre com acadêmicos cristãos evangélicos, sobre temas importantes, em especial para cristãos evangélicos. “Podem os historiadores provar que Jesus foi erguido dos mortos?” (Sempre argumento que não, ninguém pode provar isso.) “Os relatos de Jesus no Evangelho são confiáveis?” (Não, não inteiramente.) “A Bíblia oferece uma resposta adequada para por que há sofrimento?” (Não, na verdade não.) E assim por diante. 

Também acho que os debates podem ser pedagogicamente úteis na sala de aula; ajudam os estudantes a aprender a construir argumentos, avaliar evidências e identificar a força de uma posição que pessoalmente rejeitam. Por esse motivo, faço meus alunos debaterem temas polêmicos em meu curso sobre o Novo Testamento. “Paulo e Jesus representam religiões fundamentalmente diferentes?” “As visões do apóstolo Paulo sobre as mulheres eram opressivas?” “O Novo Testamento condena as práticas modernas da homossexualidade?” 

Ao estabelecer esses debates, algumas vezes, descubro antecipadamente qual lado os alunos querem assumir (afirmativo ou negativo) e dou a eles o lado oposto, obrigando-os a argumentar em defesa de uma posição que rejeitam. É um grande exercício. Os políticos deveriam tentar algumas vezes, para descobrir que seus adversários podem, afinal, ter algo importante e convincente a dizer. 

Em meus muitos anos de debates formais e muito mais anos de discussão informal, me dei conta de algo muito significativo. Tendemos a ter as discussões mais acaloradas sobre temas que nos interessam e que são os mais próximos às pessoas. Raramente somos intensos e preocupados com algo que não tem importância para nós. E nossas discussões mais acaloradas são quase sempre com amigos e entes queridos, em vez de com estranhos.

DEBATES ENTRE OS PRIMEIROS CRISTÃOS 

O mesmo era verdade com as discussões travadas pelos primeiros cristãos. Como vimos no capítulo anterior, os cristãos estavam em conflito com judeus e pagãos sobre a validade de sua religião. Esses debates algumas vezes foram acalorados. Afinal, eram questões que importavam profundamente aos cristãos. Mas os debates mais acirrados dos primeiros cristãos eram com outros cristãos, sobre as coisas certas nas quais crer e as formas certas de viver. Esses debates internos entre cristãos eram com frequência cheios de agressões e ódio. Os cristãos chamavam-se de nomes horríveis, diziam coisas feias uns sobre os outros e faziam de tudo para que seus adversários cristãos parecessem censuráveis e idiotas, em muitos casos negando que tivessem o direito de se dizer cristãos. Qualquer um visto como um falso mestre era submetido a ataques verbais; comparativamente, elementos alheios à fé — pagãos e judeus — eram tratados com luvas de pelica.

As discussões cristãs com os falsos mestres entre eles aconteciam muito, desde o começo dos registros. Nosso autor cristão mais antigo é Paulo, e, em quase todas as suas cartas, fica claro que ele tinha adversários de todos os lados. Muitos leitores cristãos, ao longo dos anos, deixaram de ver o significado dos constantes ataques de Paulo aos falsos mestres. Uma coisa que esses ataques mostram, sem sombra de dúvida, é que aonde quer que Paulo fosse, mesmo em suas próprias igrejas, ele e seus pontos de vista estavam sob ataque constante de cristãos que pensavam e acreditavam de modo diferente. É fácil deixar de notar esse fato histórico bastante óbvio, porque os escritos dos adversários de Paulo não sobreviveram à ação do tempo, enquanto os dele se tornaram parte do Novo Testamento. Mas, se pudéssemos nos transportar de volta aos anos 50 d.C., descobriríamos que aonde quer que Paulo fosse, enfrentava mestres cristãos que achavam que ele pregava um falso evangelho. Isso era verdade mesmo nas igrejas que ele mesmo fundara. E esses adversários não eram os mesmos em todos os lugares; locais diferentes produziam adversários diferentes, com pontos de vista diferentes. 

Apenas como exemplos-chave, nas igrejas da Galácia, os adversários cristãos de Paulo alegavam que ele pervertera a verdadeira mensagem do evangelho de Jesus e seus apóstolos ao afirmar que os gentios não tinham de ser circuncidados e se tornar judeus para seguir Jesus. Absurdo, replicavam seus oponentes. Jesus era judeu, seus seguidores eram judeus, ele ensinara a lei judaica, ele era o messias judeu enviado pelo Deus judeu para o povo judeu — claro que seguir Jesus significava ser judeu. Esse ponto de vista desapareceu nos debates que se seguiram, mas sem dúvida tinha muitos e ávidos defensores na época. 

Na igreja de Corinto, os adversários de Paulo diziam que ele era um orador fraco e patético, sem evidências de ter sido fortalecido por Deus. Eles, por outro lado, tinham dons divinos superiores, demonstrando a superioridade de sua mensagem de que os verdadeiros crentes já tinham sido elevados com Cristo para experimentar o poder e o júbilo da existência celestial aqui e agora.

Na cidade de Roma, Paulo era atacado por líderes cristãos que alegavam não ser ele um verdadeiro apóstolo. Esses cristãos censuravam Paulo por pensarem que os gentios eram superiores aos judeus na Igreja e por defenderem um evangelho que levara a um estilo de vida imoral. 

E assim continua — em toda parte, Paulo tinha adversários. Não devemos descartar esses oponentes como grupos minoritários marginais sem importância. Eles estavam em toda parte, e Paulo os considerava perigosos. Seus pontos de vista acabaram vitoriosos, mas em sua própria época as diferenças de opinião eram disseminadas e muito ameaçadoras. E Paulo não era o único apóstolo sob fogo. Em toda comunidade cristã inicial, os crentes atacavam outros crentes por suas falsas crenças. 

Isso era um problema para uma religião que alegava defender “a verdade”. Se os seguidores de Jesus representavam a única verdade unificada de Deus, como a Igreja cristã não era única e unificada? Na verdade, ela era tudo menos isso, não apenas nos dias de Paulo, mas por todos os quatro primeiros séculos. Apenas nos séculos II e III, por exemplo, sabemos de mestres cristãos poderosos e influentes como Marcião, que sustentavam não haver só um Deus, mas dois. Alguns gnósticos diziam haver trinta seres divinos, ou 365. Esses cristãos alegavam estar certos, e todos os outros errados. Se um desses outros grupos houvesse vencido os debates, o mundo seria um lugar muito diferente hoje. 

Nos séculos II e III, alguns cristãos diziam que Jesus era o homem mais justo que já vivera e que tinha sido escolhido por Deus como seu messias. Mas que não era divino. Um ser humano não pode ser divino. Outros cristãos, de novo como Marcião, defendiam que Cristo era divino, e nada humano. E havia cristãos, incluindo os gnósticos que já mencionamos, que sustentavam que Jesus Cristo era dois seres: um homem, Jesus, e um divino, Cristo, que entrou em Jesus para dar a ele poder para seu ministério e depois o deixou antes de sua morte, já que o Cristo não pode sofrer. E certos cristãos diziam que Jesus era o próprio Deus Pai vindo à Terra. 

Ao mesmo tempo, havia cristãos que negavam que Deus houvesse criado o mundo. Ou escolhido Israel como seu povo. Ou escrito as Escrituras judaicas. Alguns cristãos advogavam que as Escrituras judaicas eram sagradas, mas não deviam ser interpretadas literalmente. E certos cristãos diziam que tinham de ser interpretadas e seguidas literalmente, como alguns fazem ainda hoje. 

Os primeiros cristãos eram bem diversos. Mas todos esses grupos cristãos alegavam não apenas estar certos, como diziam ser os únicos certos — seu ponto de vista, e apenas seu ponto de vista, representava a única verdade divina. Como corolário, todos alegavam que sua visão da verdade era a visão ensinada pelo próprio Jesus e, por intermédio dele, aos apóstolos. E todos esses grupos tinham livros para provar isso, livros supostamente escritos por apóstolos que sustentavam seus pontos de vista. 

Talvez os cristãos hoje se perguntem por que esses vários grupos não liam seus Novos Testamentos para ver que seus pontos de vista estavam errados. A resposta é que não havia Novo Testamento. O Novo Testamento foi fruto desses conflitos, quando um dos grupos cristãos venceu a discussão e decidiu quais livros seriam incluídos nas Escrituras. Outros livros representando outros pontos de vista e também atribuídos aos apóstolos de Jesus foram não só deixados de fora das Escrituras, mas destruídos e esquecidos. Consequentemente, quando hoje pensamos nos primórdios do cristianismo, tendemos a pensar somente do modo como chegou a nós nos escritos do grupo vencedor. Lentamente, nos tempos modernos, vieram à luz livros antigos que sustentam visões alternativas, encontrados em escavações arqueológicas ou por puro acaso, por exemplo, nas areias do Egito. 

O que os mestres cristãos podiam fazer quando convencidos de que sua particular compreensão de Jesus e da fé era verdadeira, mas não sem qualquer escrito apostólico para sustentá-la? Uma coisa que algumas vezes fizeram — ou, provavelmente, com frequência fizeram — foi inventar escritos apostólicos. Nada gerou mais falsificações literárias em nome dos apóstolos do que os conflitos internos entre grupos cristãos adversários. Essas falsificações estabeleciam autoridade apostólica para as visões de um grupo e atacavam os pontos de vista de outros. Muitas das falsificações que já estudamos fazem isso, e há outras que ainda serão consideradas aqui. 

FALSIFICAÇÕES DIRIGIDAS CONTRA ADVERSÁRIOS DESCONHECIDOS

Ao ler antigos ataques cristãos a falsos mestres, com frequência é difícil saber em que os adversários acreditavam. Isso porque, na maioria dos casos, não temos os escritos dos próprios adversários, então precisamos reconstruir seus pontos de vista com base no que seus inimigos disseram deles. Isso em geral não oferece muito como ponto de partida. Tente imaginar reconstruir os pontos de vista de um candidato (real) à presidência baseando-se no que o outro candidato diz para atacá-lo. Esse tipo de reconstrução é muito mais fácil de fazer hoje, quando temos meios de comunicação em massa e muita reportagem sobre os dois lados de qualquer questão, de modo que é    mais difícil mentir descaradamente sobre os pontos de vista da outra pessoa. Os políticos hoje precisam ser relativamente cautelosos. No mundo antigo, não havia quase nada que impedisse distorção e falsidade explícita. Como alguém saberia sem matérias de jornais ou revistas apresentando os verdadeiros pontos de vista dos adversários? 

Em certos casos, os argumentos contra os adversários são apresentados a leitores que têm tais adversários entre eles, de modo que tanto escritor quanto leitores sabem perfeitamente bem quais são os pontos de vista desses adversários. Consequentemente, o escritor não sente necessidade de explicitá-los. Tudo certo no caso de leitores antigos que sabem do que o autor está falando. Mas, para aqueles de nós que vivem dois mil anos depois, pode ser muito frustrante. Só temos indícios do cunho dos falsos ensinamentos e precisamos nos esforçar para construir algo com base no pouco que nos é dito. 

Já em outros casos, um autor pode atacar pontos de vista falsos que ele mesmo concebeu apenas para despistar seus próprios pensamentos. Esse é o caso de escritos falsificados em que o autor finge viver numa época anterior. Os falsos ensinamentos atacados não são necessariamente pontos de vista defendidos por alguém. São apenas um ponto de vista alternativo que o autor vilipendia para estabelecer a “verdade” de seu ponto de vista.

Temos de enfrentar todos esses casos ao lidar com os escritos falsificados dos primórdios do cristianismo, incluindo os do Novo Testamento. Vários escritos atacam falsos ensinamentos, mas é quase impossível dizer no que os adversários acreditavam, se é que eles realmente existiram. 

Colossenses 

Esse é o caso da epístola aos Colossenses, escrita em nome de Paulo, mas muito provavelmente pseudônima, como vimos no capítulo 3. O autor, quem quer que fosse, conclama seus leitores a não ser desorientados por um falso ensinamento: “Estai de sobreaviso, para que niguém vos engane com filosofias e vãos sofismas baseados nas tradições humanas, nos rudimentos do mundo, em vez de se apoiar em Cristo.” (2,8) Ele prossegue apontando a seus leitores no que devem e não devem acreditar e quais práticas religiosas devem e não devem adotar. Mas contra quem ele está falando? 

Esse é um caso clássico em que os acadêmicos não têm quase nenhum modo de saber. Não que isso tenha impedido alguém de tentar. Um estudioso escrevendo em 1973 destacou que havia 44 diferentes opiniões acadêmicas sobre o que os falsos mestres sob ataque defendiam.153 Em um período de cinco anos, no começo da década de 1990, foram escritos por especialistas quatro grandes livros sobre o tema; cada um apresentava um ponto de vista diferente.154 Meu ponto de vista é que nunca saberemos com certeza. 

O que podemos dizer é que o autor apresenta esses falsos mestres, existissem eles ou não, como conclamando seus leitores cristãos a venerar anjos, baseando seus pontos de vista em visões divinas que tiveram. Eles também em tese conclamaram seus seguidores a levar um estilo de vida ascético, evitando certas comidas e bebidas, e provavelmente celebrando os sabás e as festas judaicas (2,16-18.21-23). O autor, alegando ser Paulo, opõe-se a tudo isso. Ele acredita que somente Cristo deve ser venerado, pois em Cristo (não em anjos) pode ser encontrada a completa encarnação do divino. Ademais, aqueles que estão “em Cristo” já experimentaram os benefícios da ressurreição; eles não têm necessidade de se dedicar a práticas ascéticas. 

Por que um autor alegaria ser Paulo para poder atacar esses adversários desconhecidos? Evidentemente porque fazer isso permitia ao autor difamar pessoas de quem ele discordava enquanto afirmava seu ponto de vista, embora, na verdade, seu ponto de vista seja diferente daquele de Paulo, como vimos no capítulo 3. 

Judas

Consideramos, a seguir, o livro de Judas do Novo Testamento. Esse pequeno livro é ainda mais dirigido contra falsos mestres na comunidade cristã. Após saudar seus leitores, o autor explica os motivos de sua carta: 

Caríssimos, [...] senti a necessidade [de escrever] para exortar-vos a pelejar pela fé, confiada de uma vez para sempre aos santos. Pois certos homens ímpios se introduziram furtivamente entre nós, os quais desde muito tempo estão destinados para este julgamento; eles transformam em dissolução a graça de nosso Deus e negam Jesus Cristo, nosso único Mestre e Senhor. (vv. 3-4) 

Aqui os oponentes são descritos em termos bastante desagradáveis, mas os termos ficam ainda piores à medida que a carta avança. Um ponto importante a ser destacado é que, embora esses adversários tenham ingressado na comunidade cristã como membros, eles negam Cristo. Isso não deve ser entendido no sentido de que negam ser cristãos. Muito pelo contrário, eles são retratados como mestres cristãos. Ao dizer que negam Cristo, o autor está alegando que não são de fato cristãos, pois o que ensinam é falso. Não é tão difícil imaginar que eles diriam o mesmo dele. Mas esse escrito se tornou Escritura. Seus escritos, se um dia existiram, perderam-se para sempre. 

De qualquer forma, ao longo de todo o livro, o autor não tem nada de bom a dizer sobre os adversários. Eles conspurcam a carne (seja lá o que isso signifique), rejeitam a autoridade e injuriam os santos anjos. São animais irracionais, regalam-se, são “nuvens sem água” e “árvores de fim de outono, sem fruto, duas vezes mortas, desarraigadas”. Eles são ímpios e fazem coisas ímpias, são “murmuradores descontentes, homens que vivem segundo as suas paixões, cuja boca profere palavras soberbas” (vv. 8-16). 

Mais uma vez, é difícil dizer se o autor está atacando um grupo histórico real. Ele sem dúvida está cheio de fel contra seus inimigos, mas é impossível montar um quadro coerente do que essas pessoas ensinaram com base no xingamento acelerado ao qual o autor se dedica. Possivelmente os leitores originais do livro sabiam a quem ele se referia e o que ensinavam. Ou talvez o autor esteja somente usando um grupo de inimigos imaginários para criar um pretexto para seu próprio ensinamento sobre a verdadeira natureza da fé cristã, que era “confiada de uma vez para sempre aos santos” (v. 3). Seja como for, em sua tentativa de atacar a falsidade, o próprio autor aparentemente cometeu logro. Ele alega ser Judas (v.1), e com essa alegação parece dizer que é o irmão de Jesus. 

Cinco pessoas são chamadas Judas no Novo Testamento. A mais infame delas é Judas Iscariotes. Outra é Judas, o filho de Maria e José, o carpinteiro, um dos quatro irmãos de Jesus mencionados em Marcos 6,3. O autor dessa breve epístola provavelmente alega ser esse Judas em particular, porque se identifica como “Judas, servo de Jesus Cristo e irmão de Tiago”. Como a maioria das pessoas da Antiguidade não tinha sobrenomes, um autor com um nome comum em geral se identificava (para que se soubesse qual Judas ele era) mencionando um parente conhecido, quase sempre seu pai. Mas aqui o autor menciona não seu pai, mas seu irmão, Tiago. Isso tem de significar que Tiago é o membro mais conhecido da família.

E qual Tiago era conhecido nos primórdios da Igreja? O mais famoso Tiago era o líder da primeira igreja, a igreja de Jerusalém. Esse Tiago era o irmão de Jesus, mencionado ao longo de todo o Novo Testamento, como pelo apóstolo Paulo em várias oportunidades (ver Gl 1,19). Se esse Judas se identifica como irmão daquele Tiago, ele, por implicação, é o irmão de Jesus. 

Contudo, é quase certo que o Judas histórico não tenha escrito esse livro. Seu autor vive em um período posterior da história da Igreja, quando as igrejas já estavam estabelecidas e quando falsos mestres haviam se infiltrado nelas e precisavam ser expurgados. O autor fala: “Lembrai-vos das palavras que vos foram preditas pelos apóstolos” (v. 17), como se eles, os apóstolos, tivessem vivido muito tempo antes. Em contraste com eles, o autor vive no “fim dos tempos” que eles previram (v. 18). Isso é alguém vivendo depois da era apostólica. 

Há outra razão para estar relativamente certo de que Judas não escreveu o livro (citada antes, no capítulo 2). Como o camponês galileu de classe baixa Pedro, o camponês galileu de classe baixa Judas provavelmente não sabia escrever. Muito menos escrever em grego. Menos ainda redigir uma carta em grego eloquente evidenciando conhecimento detalhado de antigos textos judaicos. Esse é um autor que alega ser Judas para fazer os cristãos lerem seu livro e se opor a falsos mestres com uma visão diferente da fé. 

FALSIFICAÇÕES EM OPOSIÇÃO A PAULO 

   Paulo foi um para-raios de controvérsia não só em vida, mas também depois. Alguns cristãos o viam como a maior autoridade dos primórdios da Igreja, cuja visão de Cristo na estrada para Damasco o autorizara a proclamar o verdadeiro entendimento do evangelho. Outros o viam como um estranho ao grupo apostólico, um intrometido que transformou a mensagem original de Jesus e seus apóstolos em uma religião diferente muito distante da verdade. 

Já vimos que defensores de Paulo falsificaram epístolas em seu nome. Esses autores pseudônimos sentiram que a autoridade de Paulo podia se mostrar convincente no contexto das várias controvérsias e lutas que a comunidade cristã enfrentava. Temos um leque de escritos paulinos que ele, na verdade, não escreveu: Efésios, Colossenses, 2 Tessalonicenses, 1 Timóteo, 2 Timóteo, Tito, 3 Coríntios, cartas a Sêneca, e sem dúvida muitas outras cartas dos primórdios da Igreja que não foram preservadas. 

Todavia, os detratores de Paulo também produziram falsificações. Nesses casos, os escritos pseudônimos contestavam os ensinamentos de Paulo, ou pelo menos ensinamentos que se acreditava serem de Paulo, representassem eles ou não as visões do Paulo histórico. Essas falsificações não eram escritas em nome de Paulo, mas no de outras autoridades de grande reputação, que direta ou indiretamente difamavam o chamado apóstolo dos gentios.

A epístola não canônica de Pedro 

No capítulo 2, já analisamos uma delas, a Epístola de Pedro, que aparece como uma espécie de introdução aos Escritos pseudoclementinos. Essa epístola pressupõe o que era suposto na Igreja antiga e ainda é hoje por muitos estudiosos e leigos: Pedro e Paulo não concordavam sobre a verdadeira mensagem do evangelho. 

O próprio Paulo histórico indica em seus escritos autênticos que algumas vezes ele e Pedro estavam em oposição. Isso fica claro principalmente na epístola de Paulo aos gálatas, em que ele indica que Pedro escolheu não partilhar refeições com cristãos gentios (antes pagãos — em Antioquia quando cristãos judeus chegaram à cidade (ver 2,11-14). Presumivelmente, Pedro pensou que esses visitantes ficariam ofendidos com sua decisão de não comer kosher. O afastamento de Pedro dos gentios (para comer kosher) pode ter sido apenas uma tentativa de não criar indisposição entre crentes judeus que consideravam importante que os judeus mantivessem sua identidade judaica mesmo após se tornarem seguidores de Jesus. Para Paulo, por outro lado, o afastamento de Pedro era uma afronta ao evangelho. No seu ponto de vista, esse evangelho proclamava que judeus e gentios eram iguais perante Deus em Cristo e que não havia necessidade de os seguidores de Jesus seguirem a lei, incluindo as leis de comida kosher. 

Paulo confrontou Pedro publicamente e o chamou de hipócrita por comer com os gentios quando não havia irmãos judeus presentes, mas se recusar a fazê-lo quando eles chegavam. É uma pena que não saibamos como Pedro retrucou ou quem, na opinião geral, venceu a discussão. Conhecemos apenas o lado de Paulo, como conta na epístola aos gálatas. Mas fica claro que ele e Pedro algumas vezes estavam em lados opostos, e não fica claro se eles um dia chegaram a um acordo sobre a questão. 

Como vimos, essa tensão entre Pedro e Paulo sobre seguir a lei está em questão na Epístola não canônica de Pedro, na qual o autor, alegando ser Pedro, mas na verdade escrevendo muito após sua morte, ataca uma pessoa a quem chama de seu “inimigo”. Esse inimigo pregara um “evangelho sem lei aos gentios”, ou seja, um evangelho que diz que a pessoa se torna justa perante Deus independentemente da lei. Esse inimigo pessoal de Pedro alegou falsamente que ele, Pedro, concorda com essa falsa compreensão da fé. “Pedro”, porém, não concorda com isso, e ataca seu inimigo por alegar que sim. 

Esse é um ataque pouco velado a Paulo, escrito por um cristão judeu que considerava adequado, e mesmo necessário, que os judeus crentes em Jesus continuassem observando a lei judaica. Não fazer isso significava violar a verdadeira religião. Para esse autor, Paulo não é uma autoridade apostólica. É um falso pregador. 

Os Escritos pseudoclementinos 

Um ensinamento semelhante é encontrado nos próprios Escritos pseudoclementinos.

   Como já foi explicado, esse é um conjunto de longas narrativas supostamente escritas por Clemente, o quarto bispo de Roma (isto é, o papa), nas quais descreve suas viagens, seu encontro com o apóstolo Pedro e sua conversão a seguidor de Jesus. A maioria dos livros narra suas aventuras posteriores participando das viagens missionárias de Pedro. Esses textos relatam em particular como Pedro se envolveu em conflitos e disputas de milagres com Simão, o Mágico, que alegava ser o verdadeiro representante de Deus, mas que, segundo Pedro, era um falso mestre. Em algumas passagens desses livros, fica claro que Simão é entendido como sendo outra pessoa — o inimigo real de Pedro, o apóstolo Paulo. 

Em nenhum lugar isso é mais claro do que em várias passagens dos Escritos pseudoclementinos conhecidas como as “Homilias”.156 Em uma passagem, Pedro fala sobre o modo de Deus lidar com o mundo desde os primórdios. Pedro destaca que com frequência aparecem duplas de pessoas na história sagrada. A primeira a aparecer sempre é a inferior das duas. Então, por exemplo, os primeiros filhos de Adão e Eva foram o ímpio Caim (primeiro) e o justo Abel (segundo). Também o pai dos judeus, Abraão, teve dois filhos: o primogênito, Ismael, que não herdaria as promessas, e depois Isaac, que as herdaria. Isaac teve dois filhos, Esaú, o profano, e Jacó, o devoto. E assim por diante ao longo da história. 

Esse padrão se aplica ao campo da missão cristã, argumenta “Pedro”. O primeiro missionário aos gentios foi “Simão” (isto é, Paulo); ele era necessariamente inferior. O segundo, o superior, era o próprio Pedro, que alega: “Eu vim após ele [Simão/Paulo] e vim sobre ele como a luz sobre a escuridão, o conhecimento sobre a ignorância, a cura sobre a doença.” (2,17) Não exatamente um retrato simpático de Paulo! Pedro seguiu o caminho missionário de Paulo, consertando tudo que Paulo havia feito errado. 

Uma segunda passagem é ainda mais crítica. Como bem se sabe, costuma-se dizer que Paulo fora convocado a ser um apóstolo por Cristo na visão que teve na estrada de Damasco (ver Atos 9). Paulo não era um dos seguidores originais de Jesus. Ao contrário, começara como perseguidor da Igreja cristã. Mas Cristo apareceu a ele e o converteu, ordenando que se tornasse seu missionário junto aos gentios. O próprio Paulo, o Paulo histórico, levou muito a sério essa convocação e, em livros como Gálatas, alegou que, como recebera sua mensagem do evangelho diretamente de Jesus, não devia nada a ninguém. Qualquer um que pregasse uma mensagem contrária à sua defendia a falsidade em vez da verdade (Gl 1,6-9). Ele, Paulo, recebera a verdade do próprio Cristo. E, entre outras coisas, a verdade era que os gentios não deveriam seguir a lei judaica para ter a salvação em Cristo (Gl 2,15-16). 

O autor dos Pseudoclementinos discorda e retrata o próprio Pedro debochando de Paulo por sua alegação de ter acesso direto aos ensinamentos de Jesus com base em uma única visão breve. Na “Homilia 17”, Pedro diz a Simão (isto é, Paulo):

Você alegou que [...] conhecia as doutrinas de Jesus mais satisfatoriamente do que eu porque ouviu Suas palavras em uma aparição. [...] Mas aquele que confia em aparição ou visão e sonho é inseguro. Pois não conhece em quem está confiando. Pois é possível que ele seja um demônio malvado ou um espírito enganador fingindo em seus discursos ser quem não é. 

As visões não são confiáveis porque você não tem como saber o que está vendo. Então, se a autoridade de Paulo é baseada exclusivamente em uma visão, não é autoridade alguma. 

Pedro continua com um argumento que parece difícil de refutar: 

Alguém pode ser considerado pronto para instrução por intermédio de aparições? E se você diz “é possível”, eu então pergunto: “Por que nosso mestre se submeteu e discursou um ano inteiro àqueles que estavam despertos?” E como podemos acreditar em sua palavra quando nos diz que Ele apareceu a você? E como Ele apareceu a você quando você sustenta opiniões contrárias aos ensinamentos Dele? Mas se você foi visto e ensinado por Ele, e se tornou Seu apóstolo por uma única hora, proclame Suas afirmações, interprete Suas falas, ame Seus apóstolos, não discuta comigo, que O acompanhei. Pois em oposição direta a mim, que sou uma rocha sólida, a base da Igreja, você agora se ergue. 

Paulo pode ter tido uma breve visão de Jesus, mas Pedro esteve com ele por meses — um ano! — não adormecido e sonhando, mas desperto, escutando todas as suas palavras. E o próprio Jesus declarou que era Pedro, não Paulo, a “rocha” sobre a qual a Igreja seria construída. Paulo é um intrometido posterior, cuja autoridade parte unicamente de bases duvidosas. São os ensinamentos de Pedro que devem ser seguidos, não os de Paulo. 

Se essa é ou não a visão do Pedro histórico, é algo que nunca saberemos. Mas sem dúvida é a visão de Pedro apresentada nos escritos falsificados conhecidos como Pseudoclementinos. 

Tiago 

No próprio Novo Testamento, encontramos um livro que parece atacar os ensinamentos de Paulo, ou pelo menos uma posterior interpretação equivocada de seus ensinamentos. É uma carta cuja autoria é atribuída a alguém chamado Tiago. Nos primórdios da Igreja, supunha-se que esse Tiago era o irmão de Jesus. 

Tiago foi conhecido por toda a história dos primórdios da Igreja por ser muito comprometido com suas raízes e sua herança judaica, mesmo como seguidor de Jesus.157 Segundo o Novo Testamento, ele não foi discípulo de Jesus em vida (ver João 7,5), mas foi um dos primeiros a ver Jesus ressuscitado após a morte (1Co 15,7), e presumivelmente por causa disso passou a acreditar nele. Sem dúvida, foi essa ligação de parentesco que o elevou a uma posição de autoridade na Igreja. 

O apóstolo Paulo, que conhecia Tiago pessoalmente (Gl 1,19), indica que ele era comprometido com a lei judaica e parece ter insistido para que os outros seguidores de Jesus, judeus, também o fossem (2,12). Era conhecido por sua grande devoção; uma fonte antiga indica que rezava com tanta frequência e por tanto tempo que seus joelhos se tornaram tão calosos quanto os de um camelo. Os melhores registros históricos indicam que morreu por volta de 62 d.C., após comandar a igreja de Jerusalém por trinta anos.

Tiago era um nome muito comum entre os judeus na Palestina do século I, e também entre cristãos. Há no Novo Testamento várias pessoas chamadas Tiago. Mateus 10,3-4 indica que dois dos 12 discípulos de Jesus tinham esse nome. Para diferenciar os dois, em geral eles recebiam identificações adicionais, como “Tiago, filho de Zebedeu” ou “Tiago, filho de Alfeu”. Contudo, o autor do livro de Tiago não se identifica mais, sugerindo esperar que seus leitores soubessem qual Tiago era. Portanto, parece haver pouca dúvida de que ele alega ser o mais famoso Tiago de todos, o irmão de Jesus. Esse ponto de vista é corroborado pelo fato de que escreve sua carta às “Doze tribos da diáspora”, uma referência às 12 tribos de Israel que estão espalhadas por todo o mundo romano. Tiago, o principal cristão judeu, está escrevendo aos cristãos judeus dispersos. 

O livro contém uma série de alertas éticos conclamando os leitores a viver de forma adequada aos seguidores de Jesus. Eles devem ter fé e não dúvida; suportar julgamentos, ser lentos na raiva, vigiar as línguas, controlar seus desejos e não demonstrar parcialidade, ser invejosos ou ambiciosos, buscar a riqueza ou demonstrar favoritismo para com os ricos e assim por diante. Muitas dessas censuras parecem refletir os ensinamentos do próprio Jesus, por exemplo, do Sermão da Montanha (Mt 5-7). 

Mas o autor está preocupado com uma questão, que reflete uma disputa com outros cristãos. Alguns cristãos estão dizendo que para ser justo perante Deus só é necessário ter fé; para eles, fazer “boas obras” é irrelevante para a salvação, desde que se creia. Tiago acha isso errado: quem crê e não pratica boas ações não tem fé:

De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso esta fé poderá salvá-lo? Se a um irmão ou a uma irmã faltarem roupas e o alimento cotidiano, e algum de vós lhes disser “Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos”, mas não lhes der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma. (Tg 2,14-17) 

O autor prossegue, argumentando que ter fé sem obras não leva à salvação e, na verdade, é sem valor. Isso é demonstrado acima de tudo pelo exemplo de Abraão, pai dos judeus, que foi salvo pelo que fez, não apenas por aquilo em que acreditava: 

Mas alguém dirá: “Tu tens fé, e eu tenho obras.” Mostra-me a tua fé sem obras e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Crês que há um só Deus. Fazes bem. Também os demônios creem e tremem. Queres ver, ó homem vão, como a fé sem obras é estéril? Abraão, nosso pai, não foi justificado pelas obras, oferecendo o seu filho Isaac sobre o altar? Vês como a fé cooperava com as suas obras e era completada por elas. Assim se cumpriu a Escritura, que diz: “Abraão creu em Deus e isto lhe foi tido em conta de justiça, e foi chamado amigo de Deus”. Vedes como o homem é justificado pelas obras e não apenas pela fé? (2,18-24) 

Portanto, eis aqui uma invectiva penetrante contra qualquer um que sustente que somente a fé pode tornar a pessoa justa perante Deus (nas palavras de Tiago, que pode “justificar” a pessoa). Sua evidência é Abraão, e a Escritura que ele cita em apoio é Gênesis 15,6: “Abraão creu em Iahweh e isto lhe foi tido em conta de justiça.”

Uma das razões pelas quais essa passagem é significativa é que parece quase uma paródia de algo que o próprio Paulo havia escrito antes, em sua epístola aos gálatas, quando tentava convencer seus leitores gentios de que não tinham de seguir os preceitos da lei para estarem justificados (ser justos para com Deus), mas que apenas a fé em Cristo era o necessário. O mais chocante é que Paulo tenta provar sua tese se referindo especificamente a Abraão e citando Gênesis 15,6. Eis o que Paulo escreve: 

Sabemos, contudo, que ninguém se justifica pela prática da lei, mas apenas pela fé em Jesus Cristo. Também nós cremos em Jesus Cristo, e tiramos assim a nossa justificação da fé em Cristo, e não pela prática da lei. Pois, pela prática da lei, nenhum homem será justificado. [...] Foi este o caso de Abraão: ele creu em Deus e isto lhe foi levado em conta da justiça. Sabei, pois: só os que têm fé é que são os filhos de Abraão. (Gl 2,16; 3,6-7) 

Durante séculos, os estudiosos do Novo Testamento sustentaram que o livro de Tiago responde ao ensinamento de Gálatas. Paulo ensinou que era a fé em Cristo que colocava as pessoas na relação certa com Deus, independentemente de elas fazerem ou não as obras da lei. Tiago afirmou que as obras eram necessárias, que apenas a fé não produzia justificação. Os dois autores usam a mesma linguagem (“justificar”, “fé”, “obras”), apelam para a mesma figura do Antigo Testamento, Abraão, e ambos citam o mesmo versículo, Gênesis 15,6. Desde Martinho Lutero, no começo da Reforma, alguns intérpretes afirmam que Tiago está contradizendo Paulo. A conclusão de Lutero foi que Tiago havia entendido errado. 

Contudo, estudiosos mais recentes questionaram essa leitura de Tiago. Em grande parte porque, embora a carta use os mesmos termos que Paulo, Tiago quer dizer algo diferente com esses termos. Quando Paulo usa o termo “fé”, como vimos em um contexto anterior, ele quer dizer algo relacional; fé em Cristo significa confiar que a morte e a ressurreição de Cristo podem recolocar a pessoa como justa perante Deus. Isso, para Paulo, se dá “a despeito das obras da lei”, no sentido de que a pessoa não precisa realizar as obras prescritas pela lei judaica para confiar em Cristo. A pessoa não precisa celebrar o sabá, seguir leis de comida kosher, ser circuncidado, no caso dos homens, e assim por diante. 

Tiago, porém, quer dizer algo diferente com “” e “obras”. Para ele, a fé não tem o significado relacional de “confiar em alguém”. Ela se refere a uma concordância intelectual com uma proposição: “Também os demônios creem [que há um só Deus], e tremem.” (2,19) Em outras palavras, mesmo os demônios sabem que só há um verdadeiro Deus, mas isso não faz bem algum a eles. Isso não significa que os demônios confiem em Deus; eles apenas têm o conhecimento intelectual de sua existência. A fé — concordância intelectual com as proposições da religião cristã— não salva ninguém, de acordo com Tiago. Mas Paulo discordaria disso? Provavelmente não. Ainda mais marcante, quando Tiago fala de “obras”, ele não se refere a ações exigidas pela lei judaica: celebrar o sabá, exigências de comida kosher e assim por diante. Ele fala sobre boas ações:

 

alimentar quem tem fome, vestir quem está nu (os dois exemplos que ele dá) e assim por diante. Para Tiago, uma concordância intelectual com o cristianismo que não se manifesta em como a pessoa vive não tem utilidade. Isso não salva uma alma. 

E assim, o livro de Tiago pode parecer contradizer Paulo, mas não o contradiz. O que entender disso? Na verdade, não é tão difícil ver o que aconteceu historicamente. No capítulo 3, vimos que houve autores posteriores, como o de Efésios, que alegaram ser Paulo, mas transformaram seu ensinamento de que as obras da lei judaica não levavam à salvação em um ensinamento de que “boas obras” não podiam salvar (ver Ef 2,8-9; ver também Tt 3,5). Para um autor como o escritor pseudônimo de Efésios, fazer boas ações não contribui para tornar uma pessoa justa com Deus. Tiago, portanto, está reagindo não ao que Paulo disse, mas ao que cristãos posteriores equivocadamente entenderam do que Paulo dissera. 

Esses cristãos paulinos posteriores interpretaram o argumento de Paulo de que era a fé que justificava, não as obras, como se não importasse o que se fazia ou como se vivia. Importava somente no que acreditava. O ensinamento de Paulo sobre “obras da lei” foi tomado como um princípio geral sobre “boas ações”. E o ensinamento de Paulo sobre “confiar em Cristo” foi transformado em um ensinamento sobre “no que acreditar”. Portanto, para esses cristãos posteriores, o que importava era sua crença, não sua vida. Eles acharam que esse ensinamento era de Paulo, então também apelaram a Abraão, o pai de todos os crentes, e a Gênesis 15,6, que indicava que Abraão tinha sido justificado por sua fé, não por suas obras. Tiago reagiu a isso argumentando o oposto: não se pode ter fé verdadeira sem isso se refletir em como se leva a vida. “Se não tiver obras, [a fé] é morta em si mesma.” 

Essa, portanto, foi outra controvérsia sobre os ensinamentos de Paulo, sobre o modo como passaram a ser reinterpretados em suas igrejas depois de sua época. Tiago não cita Paulo explicitamente, mas é perfeitamente claro que são os ensinamentos dele que Tiago tem em mente, pelo menos do modo como estavam sendo interpretados em sua época. Mas ele era de fato Tiago ou alguém mais alegando ser Tiago? 

Há excelentes motivos para pensar que essa carta não foi escrita pelo irmão de Jesus, mas falsificada em seu nome. Para começar, o ensinamento ao qual ela se opõe necessariamente surgiu após os escritos de Paulo. Isso quer dizer que é um desdobramento posterior do raciocínio paulino em uma comunidade paulina posterior. O ensinamento é similar ao encontrado em Efésios, escrito após a vida de Paulo em seu nome. Mas vai ainda mais longe que Efésios, já que o autor de Efésios nunca teria dito que não importava como se vivia desde que se tivesse fé. Aquele que escreve o livro de Tiago pressupõe uma situação ainda posterior nas igrejas de Paulo. Mas como o Tiago histórico foi provavelmente martirizado em 62 d.C., duas décadas mais ou menos antes de Efésios ser escrito, o livro não poderia ter sido escrito por ele. 

Ademais, a única coisa que sabemos bem sobre Tiago de Jerusalém é que ele estava preocupado com que os seguidores judeus de Jesus continuassem a cumprir as exigências da lei judaica. Mas essa preocupação é notável e perceptivelmente ausente dessa carta. Esse autor que alega ser Tiago está preocupado com pessoas fazendo “boas ações”; não está nem um pouco preocupado com comer kosher, celebrar o sabá e as festas judaicas ou circuncisão. Suas preocupações não são as do Tiago de Jerusalém. 

No entanto, o argumento determinante é um que já vimos em relação a Pedro e Judas. Esse autor escreveu uma composição muito fluente e retoricamente eficaz em grego. Ele tem conhecimento íntimo da versão grega do Antigo Testamento. O Tiago histórico, por outro lado, era um camponês de língua aramaica da Galileia que quase certamente nunca aprendeu a ler. Ou, se aprendeu, foi a ler hebraico. Se um dia aprendeu grego, foi como segunda língua, para falá-la, sem dúvida, de forma deficiente. Ele nunca teria ido à escola. Nunca teria se tornado fluente em grego. Nunca teria aprendido a escrever, mesmo em sua língua materna, muito menos em uma segunda língua. Nunca teria estudado o Antigo Testamento em grego. Nunca teria feito aulas de redação em grego, nunca teria dominado a retórica grega. 

Esse livro não foi escrito por um judeu analfabeto de língua aramaica. Quem o escreveu alegou ser Tiago porque isso seria melhor para atingir seu objetivo: afirmar que os seguidores de Jesus precisavam manifestar fé em suas vidas fazendo boas ações, já que sem obras a fé está morta. 

FALSIFICAÇÕES EM APOIO A PAULO 

Assim como havia falsificadores querendo enfatizar que Paulo discordava dos discípulos de Jerusalém, Pedro e Tiago, e que, portanto, Paulo interpretava equivocadamente a mensagem cristã, havia outros que ficavam ao lado de Paulo e queriam argumentar que estava em perfeita harmonia com os ensinamentos de Pedro e Tiago, e que, portanto, os três estavam do lado da verdade. Esse, pelo menos, é um dos princípios de dois dos livros que já estudamos no segundo capítulo, 1 e 2 Pedro, bem como um livro que os estudiosos odeiam classificar de falsificação, embora seja o que parece ser, o livro dos Atos do Novo Testamento. 

1 Pedro

Já vimos várias razões para pensar que quem quer que tenha escrito 1 Pedro não foi de fato Pedro. Contudo, há motivos adicionais, dois dos quais se relacionam com minha alegação aqui de que o livro foi escrito para mostrar que Pedro e Paulo eram compatíveis. A primeira tem a ver com o público da carta. A única coisa que sabemos sobre as atividades missionárias do Pedro histórico é que ele foi aos judeus tentar convertê-los à crença em Cristo. Quando Paulo se encontrou com os “apóstolos de Jerusalém” (Pedro, Tiago e João), eles concordaram que, assim como Pedro estava encarregado da missão aos judeus, Paulo iria aos gentios (Gl 2,6-9). O impressionante em 1 Pedro é ser escrito aos gentios, não aos judeus (2,10; 4,3-4). Essa é a área de Paulo, não de Pedro. Ademais, o destino geográfico da carta é o de Paulo. A carta é dirigida a cristãos que vivem em cinco regiões da Ásia Menor, um lugar onde Paulo criara igrejas. Nada liga o Pedro histórico a esses lugares. 

Essas características da carta parecem menos estranhas quando vistas no contexto geral do que a carta tenta conseguir. Ela não apenas oferece consolo aos que sofrem por sua fé; ao fazê-lo, tenta que Pedro soe como Paulo, o missionário aos gentios da Ásia Menor. Por que quereria fazer isso? Sem dúvida pelas razões que vimos: havia outros cristãos que sustentavam, mesmo nas igrejas da Ásia Menor, que Pedro e Paulo se detestavam e representavam entendimentos distintos do Evangelho. Não para o autor de 1 Pedro. Ele escreve em nome de Pedro uma carta que parece muito com uma de Paulo. 

As duas pessoas que o autor pseudônimo cita na carta, Silvano e Marcos (5,12-13), são conhecidas como companheiros de Paulo (ver, por exemplo, 1Ts 1,1; Fm 24). O uso das Escrituras na carta é muito similar ao modo como Paulo usa as Escrituras; Oseias 2,25 é citado em 2,10, por exemplo, para mostrar que os gentios são agora o povo de Deus, da forma como Paulo usa o mesmo versículo em Romanos 9,25. A exortação moral da carta parece com a de Paulo; por exemplo, o cristão deve ser “submisso às autoridades constituídas”, como em Romanos 13,1-7. E, mais importante, a teologia esposada na carta é a teologia de Paulo. Apenas como exemplos isolados, que poderiam ser multiplicados muitas vezes: é a fé que leva à salvação (1,9); o fim de todas as coisas está próximo (4,7); e a morte de Cristo traz a salvação dos pecados (2,24; 3,18). Tudo isso pode parecer com coisas que todo cristão poderia dizer. Mas, quando se examina a redação das passagens, em certos momentos há dificuldade em dizer que não saíram diretamente de Paulo: “Carregou nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro para que, mortos aos nossos pecados, vivamos para a justiça.” (2,24) “Pois também Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados — o Justo pelos injustos — para nos conduzir a Deus.” (3,18) 

Não é convincente como argumento contrário dizer que a carta também contém algumas diferenças das do próprio Paulo. Pode-se argumentar isso em relação a todas as cartas não questionadas de Paulo; cada uma delas tem coisas distintas a dizer. O ponto é que essa forjada em nome de Pedro parece se esforçar para abraçar visões, afora isso, comprovadamente atribuídas a Paulo. Temos aqui um falsificador que quer insistir que os dois grandes apóstolos da Igreja estavam de acordo em sua compreensão do evangelho, contra outros cristãos que argumentavam que eles discordavam um do outro. 

2 Pedro 

     Algo similar pode ser dito de 2 Pedro. Nesse caso, o autor vai ainda mais longe na insistência de que é   Pedro, já que não só se identifica como “Simão Pedro” em 1,1, como também destaca que esteve na presença de Jesus no monte durante a transfiguração: “Por termos visto a Sua Majestade com nossos próprios olhos [...] quando estávamos com ele no monte santo.” (1,16-19) Realmente é Pedro! E ele gosta de Paulo! De fato, ele mais do que gosta de Paulo: acha que as cartas de Paulo são Escrituras. 

Como vimos, 2 Pedro advoga que, embora muito tempo tenha se passado desde que Jesus declarou que o fim de todas as coisas se daria “logo”, tudo está acontecendo de acordo com o plano. No calendário de Deus, “logo” não significa o mesmo que no nosso, pois “um dia diante do Senhor é como mil anos, e mil anos, como um dia” (3,8). Na verdade, Deus postergou o momento do fim para dar mais tempo para que mais pessoas sejam salvas: “Reconhecei que a longa paciência de nosso Senhor vos é salutar.” Isso, alega o autor, é ensinado por “vosso caríssimo irmão Paulo”, que, como nos é dito,

vos escreveu, segundo o dom da sabedoria que lhe foi dado. É o que ele faz em todas as suas cartas, nas quais fala nestes assuntos. Nelas há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras. (3,15-16) 

Há vários pontos importantes aqui. Paulo é o “caríssimo irmão” de Pedro. Eles concordam em todos os pontos fundamentais. Outros cristãos interpretaram erradamente (“deturparam”) as cartas de Paulo. Fazem isso também com as “demais” Escrituras. Entre outras coisas, isso significa que “Pedro” considera as cartas de Paulo Escrituras. Para esse autor, portanto, se alguém interpreta as cartas de Paulo no sentido de que ele e Pedro discordam, equivocaram-se na leitura das cartas. As cartas de Paulo falam a verdade, e Pedro concorda com elas. Exceto que a pessoa que escreveu essa carta não foi Pedro, mas alguém alegando posteriormente ser Pedro. Um dos objetivos finais desse escritor pseudônimo é bem claro: queria muito que seus leitores pensassem que o apóstolo dos judeus e o apóstolo dos gentios não tinham diferença de opinião. 

Os Atos dos apóstolos

Atos dos Apóstolos é o mais antigo relato preservado que temos da disseminação do cristianismo nos anos imediatamente posteriores à morte de Jesus. É uma narrativa histórica que tenta explicar como o cristianismo se deslocou geograficamente da cidade de Jerusalém, por toda a Judeia, até Samaria, e, a seguir, outras regiões do Império Romano, enfim chegando à própria cidade de Roma. Contudo, Atos está preocupado não somente com a disseminação geográfica da religião, mas também com o que poderia ser chamado de disseminação “étnica”. O autor se interessa pela questão de como a religião judaica de Jesus e seus seguidores se tornou uma religião adotada por gentios, não por judeus. Considerando o interesse do autor pela conversão de antigos pagãos à nova fé, não surpreende que o grande herói da história seja Paulo, conhecido, nos primórdios da Igreja, como o apóstolo dos gentios por excelência. 

Mas nessa narrativa Paulo não começa como um seguidor de Jesus. Ao contrário. À medida que a florescente Igreja cristã cresce aos saltos nos primeiros meses por meio da pregação de apóstolos com autoridade como Pedro, que é o personagem principal dos 12 primeiros capítulos do livro, também desperta o ódio dos judeus que se recusam a se converter e consideram a nova religião blasfematória e perigosa. No fim, o principal adversário da nova fé é Saulo de Tarso, um judeu muito religioso autorizado a caçar e prender qualquer um que professe a fé em Cristo. 

Numa das maiores reviravoltas dos primórdios da história cristã — ou de toda a história, argumentariam alguns —, o grande perseguidor da fé se torna seu mais poderoso pregador. A caminho de perseguir cristãos na cidade de Damasco, Paulo tem uma visão de Jesus ressuscitado e passa a acreditar que a fé que ele antes combatera é verdadeira (Atos 9). Após se encontrar com aqueles que eram apóstolos antes dele — Pedro e outros —, Paulo se devota a propagar a nova fé com zelo igual ao que antes dedicara a oprimi-la. Ele viaja por todas as regiões mediterrâneas da Ásia Menor, Macedônia e Acaia (modernas Turquia e Grécia), visitando grandes áreas urbanas, pregando o evangelho, convertendo principalmente gentios e criando igrejas. 

No entanto, no começo de seu trabalho missionário, surge uma grande divergência entre os líderes da Igreja. Os gentios que passam a acreditar em Jesus não precisam se converter ao judaísmo para serem seguidores do messias judaico? Não precisam ser circuncidados e seguir a lei judaica? Alguns dos líderes da Igreja acham que a resposta é sim; outros acham que a resposta é não. Nessa história, o próprio Pedro acredita que não. Em boa medida isso se dá porque, mesmo antes das jornadas missionárias de Paulo, Deus pessoalmente revelara a Pedro, em uma visão, que os gentios deveriam ser aceitos na fé sem se tornarem judeus (Atos 10-11). Pedro é o primeiro a converter um gentio. 

E assim, quando é convocada uma conferência da Igreja para decidir a questão em Atos 15, na metade da narrativa, há alguns porta-vozes externos não identificados do ponto de vista de que os conversos gentios devem ser obrigados a seguir a lei. Mas os principais nomes de dentro — não apenas Paulo, mas também Pedro e Tiago, líder da igreja de Jerusalém — estão do lado oposto e se juntam alegando que a salvação de Cristo chegou aos gentios, que não precisam aceitar a lei judaica para ser salvos. 

Recém-autorizado por essa decisão unificada, Paulo retorna a campo e funda mais igrejas antes de ter problemas com as autoridades judaicas em uma visita a Jerusalém. A maior parte do terço final do livro de Atos lida com a prisão e os julgamentos de Paulo, enquanto ele tenta se defender afirmando que não estava fazendo nada contrário à lei judaica. Em vez disso, diz, sempre defendeu a lei ao pregar que o próprio Jesus era o messias judeu que tinha sido erguido dos mortos (embora ele ache que os gentios não precisam seguir a lei). Paulo enfim apela para apresentar seu caso perante o imperador romano, um direito seu como cidadão romano. O livro termina com sua viagem a Roma e sua prisão domiciliar, onde é mostrado pregando a todos que vão escutá-lo enquanto aguarda o julgamento. 

Como fica claro nesse resumo, um dos grandes temas de Atos é que Pedro, o herói do terço inicial do livro, e Paulo, o herói do restante, estavam alinhados em tudo. Concordavam na questão prática de se os gentios deveriam ser obrigados a seguir a lei judaica; concordavam na necessidade e na abordagem da missão de converter os gentios; concordavam em todas as questões teológicas.

Nesse sentido, o livro dos Atos se alinha com os dois outros livros do Novo Testamento que já analisamos, 1 e 2 Pedro, e contra vários livros fora do Novo Testamento, como a Epístola de Pedro e as “Homilias” pseudoclementinas. É possível também argumentar que está em contradição com o que o próprio Paulo tinha a dizer no livro de Gálatas, em que Pedro não é tratado de forma amistosa. 

Na verdade, há muitas outras diferenças entre o que o livro de Atos diz sobre Paulo e o que Paulo diz sobre si mesmo em suas cartas. Não vou entrar em todos os detalhes sangrentos, já que são discutidos de modo mais abrangente em outras obras bem acessíveis.158 Mas apenas em relação a Gálatas, gostaria de destacar que enquanto Atos deixa bem claro que Pedro percebeu, antes mesmo de Paulo, que era uma coisa boa e certa fazer refeições com gentios que não comiam kosher, em Gálatas 2 é exatamente isso o que Pedro se recusa a fazer quando “irmãos” judeus aparecem na cidade. Pode-se argumentar que Paulo estava certo, que Pedro estava sendo hipócrita. Mas não há nada em Gálatas que sugira que Pedro achasse isso ou que pensasse que Paulo estava certo em relação à questão. O Pedro histórico pode ter pensado que partilhar refeições com gentios quando havia judeus por perto era errado. Caso positivo, o Pedro histórico pensava diferente do Pedro do livro dos Atos. 

Há outras diferenças entre Atos e Gálatas ainda mais difíceis de conciliar. Vou mencionar apenas duas. Em Gálatas, Paulo tenta convencer seus leitores gentios de que seria um erro enorme se eles fossem circuncidados e começassem a obedecer à lei judaica. Ele quer insistir que sua compreensão da questão vinha de Deus, na revelação que tivera de Cristo e que o transformara em um seguidor. Ele não recebera — enfática e decididamente — essa mensagem daqueles que eram apóstolos antes dele, Pedro, Tiago e os outros. Afirma que, depois da visão de Cristo que o convertera, ele sequer fora a Jerusalém conversar com os apóstolos. Partira para a Arábia, depois de voltar a Damasco, e não fora a Jerusalém nos três anos seguintes (1,15-19). Isso torna muito interessante a história da conversão de Paulo no livro dos Atos. Ali nos é dito que Paulo fica cego com sua visão de Jesus na estrada para Damasco; ele então entra na cidade e recupera a visão. E qual é a primeira coisa que faz ao deixar a cidade: segue diretamente para Jerusalém para ver os apóstolos (Atos 9,1-26). Bem, o que aconteceu? Ele ficou longe de Jerusalém, como o próprio Paulo diz, ou foi para lá diretamente, como diz Atos? 

Ademais, quem ele vê lá? Paulo insiste, em Gálatas 1,18-19, que em sua visita de 15 dias viu apenas duas pessoas, Pedro e Tiago, o irmão de Jesus. É enfático nesse ponto, que reforça fazendo um juramento: “Isto que vos escrevo — Deus me é testemunha —, não o estou inventando.” (1,19-20) Não fica claro por que ele quer reforçar de tal forma o ponto. Será por não querer que alguém pense que sua mensagem foi transmitida a ele pelos discípulos originais de Jesus, a maioria dos quais nunca conheceu? De qualquer forma, o que fica claro é o contraste com Atos. Quando Paulo chega a Jerusalém logo após ser convertido, encontra-se com apóstolos e passa algum tempo entre eles — não apenas com Pedro e Tiago, mas, ao que parece, com todos (9,26-30).

Essas diferenças entre o que Atos diz sobre Paulo e o que Paulo diz sobre si mesmo podem ser multiplicadas muitas vezes, sobretudo se nos voltarmos para outras cartas paulinas além de Gálatas. Uma razão pela qual as diferenças importam é que Paulo quer se distanciar dos apóstolos para alegar que sua mensagem veio diretamente de Cristo, e não daqueles que eram apóstolos antes dele. O livro dos Atos, por outro lado, afirma que Paulo conferenciou com os outros apóstolos antes de começar a colocar sua mensagem em campo. Mais ainda, para Paulo, os outros apóstolos não lhe deram qualquer mensagem que Cristo já não lhe tivesse revelado. Se os outros, mesmo Pedro e Tiago, discordavam, estavam discordando não dele, mas de Deus, que se revelara a Paulo por intermédio de Cristo. Para Atos, por outro lado, não há possibilidade de Paulo e os outros discordarem. Deus transmitiu a todos igualmente a verdade do evangelho, e todos pregam o evangelho. É a mesma mensagem, a mesma teologia, as mesmas conclusões práticas: estão todos de acordo, do início ao fim. 

A outra razão pela qual as diferenças entre Paulo e Atos importam é porque Atos é atribuído a um companheiro de Paulo. Mas, dadas as numerosas discrepâncias entre as cartas de Paulo e o livro de Atos, isso parece improvável. O autor de Atos nunca se identifica. Mas a tradição da Igreja, começando cerca de um século após o livro ter sido escrito, atribui o livro a alguém chamado Lucas. E por que Lucas? 

O raciocínio é um tanto complicado. O primeiro ponto importante a destacar é que o Evangelho de Lucas e o livro dos Atos, ambos anônimos, foram escritos pelo mesmo autor. Isso é demonstrado por suas visões teológicas similares, o vocabulário e o estilo de redação partilhados, e indicações claras como os versículos de abertura dos dois livros, ambos dedicados a alguém chamado Teófilo. O segundo livro indica que é o segundo de dois livros escritos a essa pessoa. Provavelmente, o autor de Atos, portanto, é o autor de Lucas. Atos é o segundo volume de uma obra em dois tomos. 

Todavia, por que pensar que foi escrito por alguém chamado Lucas? Ainda que o Evangelho de Lucas não dê qualquer indício de seu autor, há pistas que sem dúvida devem ser intencionais no livro de Atos. Em quatro passagens de Atos, o autor para de falar na terceira pessoa sobre o que “eles” (Paulo e seus companheiros) estavam fazendo e começa a falar sobre o que “nós” estávamos fazendo (16,10-17; 20,5-16; 21,1-18; 27,1-28,16). É alguém que alega ter estado com Paulo como companheiro de viagem durante suas jornadas missionárias. Mas ele não diz quem é.159 

Contudo, ao longo dos séculos, leitores pensaram que sua identidade poderia ser inferida. Esse autor é alguém preocupado com a missão aos gentios dos primórdios da Igreja e dedicado a mostrar que os gentios não têm de se tornar judeus para ser cristãos. É sensato concluir que essa pessoa deveria ser gentia. Então, agora reduzimos um pouco as opções: o autor é supostamente um companheiro de viagem gentio de Paulo. Conhecemos alguém assim? 

Na carta aos colossenses, sabemos de três companheiros gentios de Paulo: Epafras, Demas e Lucas, o médico (Cl 4,12-14). Desses três, parece improvável que Demas seja o autor, já que nos é dito em outro ponto que Demas “abandonou” Paulo (2Tm 4,10). Epafras é conhecido como o fundador da igreja de Colossas (Cl 1,5-7), uma igreja nunca mencionada em Atos. Isso seria estranho se seu fundador fosse o autor. Assim, um candidato resta: Lucas, o médico amado. Temos a antiga suposição de que o livro de Atos foi escrito por Lucas, um companheiro de viagem de Paulo. Essa suposição é encontrada no pai da Igreja Irineu, do século II. Irineu escrevia um século depois de o livro de Atos ter sido produzido. Ainda assim, é o primeiro autor cristão preservado a fazer uma longa referência de o livro, e indica, baseado em seu conhecimento das passagens “nós”, que “Lucas era inseparável de Paulo, e foi seu colega no trabalho do evangelho, como ele mesmo claramente demonstra”.160 

A despeito dessa antiga tradição, são muitos os problemas de identificar Lucas como o autor do livro. Para começar, a ideia de que Lucas era um companheiro gentio de Paulo vem de Colossenses, um livro que parece falsificado em nome de Paulo após sua morte. Na verdade, também há um Lucas, identificado na epístola autêntica de Paulo a Filemom (v. 24), mas nada é dito sobre ser um gentio. Ele é apenas mencionado em uma relação de cinco outras pessoas. Um problema ainda maior é o fato de haver tantas discrepâncias entre o que Atos diz sobre Paulo e o que Paulo diz sobre si mesmo. 

Mencionei apenas três dessas discrepâncias. Há muitas outras.161 Elas envolvem quase todos os aspectos do Paulo histórico. A teologia e a pregação de Paulo diferem entre Atos e as epístolas; outras diferenças são a atitude de Paulo em relação aos pagãos, sua relação com a lei judaica, sua estratégia missionária e seu itinerário. Em praticamente todos os pontos nos quais é possível comparar o que os Atos dizem sobre Paulo com o que Paulo diz sobre si mesmo em suas cartas autênticas há discrepâncias. É difícil escapar da conclusão de que provavelmente Atos não foi escrito por um dos companheiros de viagem de Paulo. 

Por que, então, o autor falaria na primeira pessoa em quatro oportunidades? Qualquer um, lendo este livro até aqui, não tem dificuldade em descobrir por quê. O autor faz uma alegação sobre si mesmo. Ele não se identifica; apenas diz ser um companheiro de viagem de Paulo e, portanto, bem-colocado para oferecer um relato “verdadeiro” da mensagem e da missão de Paulo. Mas ele provavelmente não foi um companheiro de Paulo. Por um lado, escreveu muito depois de Paulo e seus companheiros estarem mortos. Os estudiosos costumam datar Atos de 85 d.C. aproximadamente, mais de duas décadas após a morte de Paulo. Por outro lado, ele parece mal-informado demais sobre a teologia e as atividades missionárias de Paulo para ter sido alguém com informações de primeira mão. Se o autor alega ser alguém que não é, que tipo de obra escreve? Um livro escrito com uma falsa alegação de autoria é uma falsificação. Obviamente a alegação autoral nesse caso não é tão ousada quanto, digamos, em 1 Timóteo ou 3 Coríntios, cujos autores disseram ser Paulo. Mas a alegação de Atos ainda assim é clara; o autor indica que participou e foi testemunha da missão de Paulo, embora não tivesse sido. 

Não se deve objetar que se o autor quisesse que seus leitores se convencessem de que era um companheiro de Paulo teria sido muito mais explícito sobre sua identidade, ou seja, ele teria dado seu nome ou sido mais enfático em sua identificação como companheiro de viagem de Paulo. Esse tipo de objeção sobre o que um autor “teria” nunca é muito convincente. Na verdade, é um tanto divertido ver leitores modernos dizendo a autores antigos o que deveriam ter feito para ser mais convincentes. Por que o autor de Atos deveria ter feito algo diferente do que fez? Como poderia ter tido mais sucesso em enganar seus leitores? Ele foi muito bem-sucedido fazendo do modo como fez. Durante 1.800 anos, leitores aceitaram sem questionar que o autor não era outro que não Lucas, o companheiro de viagem de Paulo. Inserindo em seu relato apenas um punhado de pronomes na primeira pessoa, o autor conseguiu produzir uma falsificação que continua a enganar leitores até hoje. 

A razão para a falsificação, de qualquer modo, é clara, ou pelo menos uma das muitas razões. Esse autor quer que seus leitores pensem que ele é o companheiro de Paulo e que, portanto, teve informações em primeira mão sobre a missão de Paulo. Nesse relato, Paulo concorda com os apóstolos anteriores a ele, especialmente Pedro e Tiago, em todos os pontos de importância teológica e prática. Em seus primórdios, a Igreja estava em sólida e essencial harmonia. Pedro e Paulo não divergiam entre si, como outros autores alegavam. Eles declararam juntos que a salvação chegara para os gentios, que não precisavam ser judeus para ser cristãos. 

FALSIFICAÇÕES GNÓSTICAS E ANTIGNÓSTICAS 

Gnosticismo cristão inicial 

Os conflitos mais intensos e amargos dos séculos II e III envolveram uma série de grupos cristãos que os acadêmicos chamaram de “gnósticos”. O cristianismo gnóstico foi um fenômeno muito complexo, mas, para nossos propósitos aqui, só preciso de um panorama básico e geral.162 

Como mencionei no capítulo 3, o termo “gnóstico” vem da palavra grega gnosis, que significa “conhecimento”. Uma grande gama de antigos grupos cristãos alegava que a salvação não vinha da fé na morte e ressurreição de Jesus, mas de adquirir o conhecimento secreto, gnosis, que Cristo ensinava. Esse conhecimento era autoconhecimento, conhecimento de quem você realmente era, de onde vinha, como chegara aqui e como poderia retornar. Os gnósticos sustentavam que alguns de nós não são só seres humanos de carne e osso. Temos dentro de nós uma centelha de divindade com origem no reino celestial, mas que caiu no mundo material e ficou presa dentro de nossos corpos mortais. O objetivo das religiões gnósticas era ensinar o conhecimento secreto necessário para libertar esse elemento divino a fim de que possa retornar a seu lar celestial. Nas formas cristãs de gnosticismo (também havia formas não cristãs), é Cristo quem vem do reino celestial superior para nos transmitir tal conhecimento secreto. 

Havia um grande número de grupos gnósticos com uma perturbadora gama de diferentes ensinamentos e crenças. Muitos desses grupos descreviam a queda da centelha divina por meio de complicadas e confusas histórias mitológicas que tentavam explicar como o reino divino superior e este mundo material inferior começaram a existir. Embora os mitos dos vários grupos diferissem significativamente entre si, muitos partilhavam características similares. 

Em muitos desses mitos, o ponto de origem de tudo que existe era um ser divino espiritual; não havia nada de material nele. Esse ser divino gerou outras divindades que eram manifestações de suas várias características: silêncio, intelecto, verdade, palavra, vida, e assim por diante. Alguns desses seres divinos geraram outros, até haver um reino divino habitado. Mas um desses seres — em alguns textos é Sofia, a palavra grega para “sabedoria” — caiu do reino divino e gerou outros seres que não eram completamente divinos, já que passaram a existir fora do seu reino. Um desses outros seres achou, por ignorância, que era o Deus superior e, com a ajuda dos outros, capturou sua mãe e criou o mundo material como um lugar para aprisioná-la, dentro de corpos humanos. Esse Deus criador ignorante é o Deus do Antigo Testamento, o Deus dos judeus. 

O mundo material no qual vivemos não é um lugar bom; é um lugar de aprisionamento. O Deus dos judeus não é a divindade maior, mas inferior, ignorante e talvez até maldoso. O objetivo da salvação não é ser colocado em uma relação certa com o Deus criador, mas escapar de suas garras. A salvação não se dá quando essa criação decaída for devolvida a seu estado puro original (um retorno ao Jardim do Éden); ela se dá escapando deste mundo material. O fim dos tempos não trará uma salvação para a carne; trará uma libertação da carne. Essa salvação se dá quando as centelhas presas dentro de nossos corpos aprendem os segredos de como vieram parar aqui e o conhecimento de como podem escapar. 

Como nos sistemas gnósticos cristãos é Cristo quem vem do reino divino para transmitir esse conhecimento secreto, não poderia ser ele mesmo parte deste mundo material. Ele não era um ser de carne. Então, temos as duas formas de raciocínio docético que mencionei no capítulo 2. Alguns gnósticos sustentavam que Jesus apenas parecia ser humano (mesma visão de Marcião, que não era gnóstico). Outros alegavam que o Cristo divino entrara no homem Jesus em seu batismo e o deixara antes que morresse, já que o Cristo não podia sofrer. Em qualquer das formas de entender Cristo, ele não era um humano real, de carne e osso, sofredor e mortal que foi devolvido à carne na ressurreição. Como as outras centelhas divinas, ele escapou da carne e do mundo material que a abriga, para retornar a seu lar celestial. 

Como os gnósticos que ensinavam esses pontos de vista denegriam o mundo material e o Deus que o criara, eram vistos como uma séria ameaça por outros cristãos que sustentavam que havia somente um Deus, não todo um reino de divindades; que Deus fizera o mundo e era bom, não inferior e malvado; que criara a carne humana e iria redimi-la; e que a salvação se dava no corpo, não separada dele. Mais ainda, os adversários cristãos do gnosticismo sustentavam que o próprio Cristo era um ser humano real de carne e osso, cujo sofrimento e morte reais trouxeram a salvação e cuja ressurreição era na carne, em que ele agora vive e viverá eternamente. 

Esses pontos de vista antignósticos alternativos eram ensinados por autores cristãos de destaque como Irineu, do século II, e Tertuliano, do século III, cujos escritos foram conhecidos e lidos por muitos séculos. Os gnósticos acabaram perdendo esses debates, e suas próprias obras foram em sua maioria destruídas. Apenas nos tempos modernos foram encontrados escritos gnósticos, com destaque para a descoberta marcante, mas inteiramente fortuita, de toda uma biblioteca de textos gnósticos em 1945 perto da cidade egípcia de Nag Hammadi.163 

A chamada biblioteca de Nag Hammadi contém 46 documentos diferentes, uns poucos em duplicata. Alguns deles detalham as visões mitológicas deste ou daquele grupo gnóstico, uns são reflexões místicas sobre a natureza da realidade ou o lugar dos humanos dentro dessa realidade, outros são revelações secretas que Jesus faz a seus discípulos após sua “ressurreição”, e ainda coletâneas dos ensinamentos terrenos de Jesus. Alguns desses escritos foram produzidos em nomes dos apóstolos. Eles são, em outras palavras, falsificações gnósticas. 

Falsificações gnósticas 

Sabíamos de falsificações gnósticas muito tempo antes de termos alguma delas. O caçador de heresias do século IV, Epifânio, por exemplo, em um livro que ataca oitenta diferentes grupos de “hereges”, fala sobre um grupo gnóstico particularmente nefando que ele chama de fibionitas. Em seu ataque a esse grupo, Epifânio relata que usavam uma grande gama de escritos pseudônimos, incluindo um Evangelho de Eva, as Questões menores de Maria (Madalena), as Questões maiores de Maria, os Livros de Seth, os Apocalipses de Adão, o Nascimento de Maria e o Evangelho de Filipe.164 O Evangelho de Filipe foi descoberto em Nag Hammadi, embora seja impossível saber se é     o mesmo livro a que Epifânio se referiu. Também temos um escrito chamado Nascimento de Maria, mas não há nada de gnóstico nele, portanto também deve ser um livro diferente. Nenhum dos outros livros foi preservado.165 

Entretanto, muitas das outras falsificações gnósticas foram. Entre os escritos de Nag Hammadi que apresentam visões gnósticas em nome dos apóstolos, há um Livro secreto de João (isto é, o filho de Zebedeu), que apresenta em detalhes vívidos uma versão do mito gnóstico, e um Apocalipse de Paulo, descrevendo uma ascensão mística do apóstolo pelos céus, narrada na primeira pessoa. Há dois Apocalipses de Tiago e o já mencionado Evangelho de Filipe. E o mais famoso de todos, o Evangelho de Tomé, uma coletânea de 114 ditos de Jesus supostamente registrados por Judas Dídimo Tomé, que em algumas regiões da Igreja inicial era considerado irmão gêmeo de Jesus.166 

Em vez de discutir aqui todas as falsificações gnósticas, vou analisar apenas duas, que são interessantes por não só apresentar um ponto de vista gnóstico, mas também argumentar contra a visão que acabou se tornando “ortodoxa”, ou seja, a visão representada por autores como Irineu, Tertuliano e Epifânio, que acabou aceita como “verdade” em detrimento dos ensinamentos da “falsa gnose”. 

O APOCALIPSE COPTA DE PEDRO

Já vimos um Apocalipse de Pedro no capítulo 2. Em Nag Hammadi, foi descoberto um segundo apocalipse, uma revelação secreta, feita a Simão Pedro.167 Aquela que já examinamos enfatizava veementemente a natureza corpórea da vida após a morte, com as pessoas sendo recompensadas de forma extática ou punidas fisicamente pelo modo como levaram esta vida. O Apocalipse copta de Pedro adota um ponto de vista bastante diferente, argumentando que aqueles que acreditam na importância da carne, seja a carne do próprio Cristo, seja a vida de carne dos humanos, não entenderam de modo algum e corromperam a verdade. 

Esse livro também é escrito na primeira pessoa, supostamente pelo discípulo de Jesus, Pedro. Começa com uma discussão entre Cristo e Pedro no dia da morte de Jesus, depois do que narra aquilo que “de fato” aconteceu na crucificação. É uma das descrições mais bizarras da morte de Cristo. No diálogo de abertura, Cristo enfatiza a necessidade do devido “conhecimento” para a salvação e condena os cristãos que carecem desse conhecimento, dizendo que “eles são cegos e não têm líder” (72,12-13). Os líderes não gnósticos das igrejas cristãs que louvam Cristo o estão blasfemando e são eles mesmos cegos e surdos (73,13-14). Esse é o caso, porque eles “se aferram ao nome de um homem morto”. Ou seja, acham que é o Jesus crucificado que importa para a salvação. Mas como eles estão errados! “Eles não entendem.” (76,28-35) Esses “bispos e diáconos” são canais secos e estéreis que não fornecem a água vivificante. 

Depois do ataque de Cristo aos que valorizam a existência material e pensam que sua morte oferece a salvação, vem a narrativa da crucificação. Enquanto Pedro e Cristo conversam, Pedro vê Jesus bem abaixo da colina onde estão de pé, “ao que parece” tomado por seus inimigos e crucificado. Mas vê acima da cruz outra imagem de Cristo, esta rindo de todo o procedimento. Confuso, Pedro pergunta ao Cristo de pé a seu lado o que está vendo. Cristo responde que aquele acima da cruz é o “Jesus vivo” e o na cruz “é o substituto”, ou seja, o dublê do verdadeiro Jesus, que não pode ser crucificado porque não é um ser humano de carne e osso. O corpo sendo crucificado é “a moradia de demônios, o recipiente de pedra no qual eles vivem, o homem de Elohim” (o nome do Deus do Antigo Testamento). Aquele acima da cruz está rindo da ignorância dos que o crucificam, porque são cegos e pensam que podem matar o Cristo. Mas não podem. Ele é um espírito, para além do sofrimento. 

Essa, portanto, é uma avaliação gnóstica do mundo e do lugar de Cristo nele. A morte de Cristo não é o que importa. A salvação se dá aceitando seu verdadeiro ensinamento, que denigre o mundo material e a carne humana. Sua carne não importa, como não importa a carne de seus seguidores. Essa visão é apresentada por intermédio de uma autoridade impecável, um relato em primeira mão do próprio Pedro, ou pelo menos por um escrito falsificado em seu nome. 

O LIVRO DE TOMÉ, O ADVERSÁRIO 

Um ataque ainda mais direto à carne é encontrado em outro escrito gnóstico, conhecido como Livro de Tomé, o adversário, igualmente encontrado em Nag Hammadi.168 Também esse livro é pseudoepigráfico; seria uma revelação a Tomé, irmão gêmeo de Jesus, mas escrito por “Matias”. Os estudiosos costumam considerar que essa figura é Mateus, autor do primeiro evangelho. 

Nesse livro, Cristo faz uma revelação pouco antes de ascender ao céu. O objetivo da revelação é enfatizar a importância do autoconhecimento: “Aqueles que não se conhecem não conhecem nada, mas os que se conhecem já adquiriram conhecimento sobre a profundidade do Todo.” (138,16-18) Conhecer a si mesmo significa saber que o verdadeiro eu não é o “eu” do corpo. É o espírito, que é separado da carne. 

Cristo destaca que o corpo humano é como o de todos os animais: passa a existir por intermédio do intercurso. Ademais, sobrevive comendo outras criaturas e mudando. Mas tudo que muda acabará se dissipando e não existindo mais. Da mesma forma, os humanos: “O recipiente de sua carne desaparecerá.” (141,6-7) Portanto, aquele que espera ter salvação na carne merece pena: “Infelizes de vocês que esperam na carne e na prisão perecerão.” 

Como o corpo não será redimido, os desejos do corpo não devem ser saciados. Um dos grandes pontos do livro é que os desejos carnais aprisionam a alma no corpo, e qualquer um que sucumba ao fogo do desejo será punido no fogo depois da morte. O autor exorta seus leitores a buscar a salvação que vem fugindo do corpo: 

Vigiem e rezem para que não permaneçam na carne, para que possam deixar os grilhões da amargura desta vida. [...] Quando você deixar as dores e paixões do corpo, receberá alívio do Bondoso. Você reinará com o Rei, unido a ele e ele a você, a partir de agora e para sempre. (145,9-14) 

Contudo, essa não é uma revelação de Matias escrita para Tomé, é outra falsificação gnóstica, produzida para se opor aos ensinamentos dos outros cristãos de que a existência carnal tem importância. 

Falsificações antignósticas 

Os gnósticos não eram os únicos que usavam falsificações para promover seus pontos de vista. Os cristãos “ortodoxos” que se opunham a eles respondiam da mesma forma, publicando suas próprias falsificações. 

3 Coríntios

Vimos uma falsificação que poderia muito bem ter servido a um propósito antignóstico, 3 Coríntios. Falei sobre 3 Coríntios ser dirigido contra Marcião, que, como os gnósticos, desvalorizava a vida da carne. É difícil saber quem o autor pseudônimo tinha em mente quando afirma a carne de Cristo e a salvação da carne. Ele possivelmente ataca todos os grupos que sustentavam visões contrárias. Mas pelo menos seu próprio ponto de vista não é difícil de identificar. Sua ênfase abrangente é que Cristo veio a este mundo para “salvar toda carne com sua própria carne e erguer-nos em carne dos mortos, e ele se deu a nós como nosso exemplo”. 

Para esse autor, Jesus nascera de Maria. Isso aconteceu em cumprimento ao que os profetas do Antigo Testamento haviam declarado. Esses profetas eram porta-vozes do único Deus verdadeiro, que havia criado o mundo e era o “todo-poderoso”, não algum tipo de divindade menor, inferior. “Em seu próprio corpo, Jesus Cristo salvou toda carne”, e será na carne que seus seguidores experimentarão a salvação final na ressurreição. Aqui, portanto, em 3 Coríntios, as falsificações dos heréticos são combatidas com uma falsificação dos ortodoxos, uma carta atribuída a Paulo, mas na verdade escrita por um autor que viveu muito tempo depois. 

EPISTULA APOSTOLORUM 

Como segundo e último exemplo de uma falsificação ortodoxa, posso mencionar um livro do século II, conhecido como Epistula Apostolorum, a “Epístola dos apóstolos”.169 É uma carta supostamente escrita pelos 12 apóstolos após a Ressurreição, que os cita e é escrita em primeira pessoa, em oposição aos falsos apóstolos Simão e Cerinto. Conhecemos Simão como o arqui-herético do século II, atacado, por exemplo, nos Atos de Pedro e nos Pseudoclementinos. Aqui ele é acompanhado por outro notório herético, Cerinto. Ambos são atacados por estarem tomados por “falsidade”. Essa acusação é carregada de ironia em um escrito falsificado para fazer os leitores acreditarem que os apóstolos o escreveram. 

A carta apresenta uma revelação dada aos apóstolos por Jesus após sua Ressurreição, em grande parte da mesma forma que o Livro de Tomé, o adversário e outros escritos gnósticos oferecem os “ensinamentos secretos” de Cristo após a Ressurreição. Mas aqui a ênfase é antignóstica. Poucos documentos insistem tanto quanto este na importância da carne. É dito que Jesus teve uma crucificação e uma ressurreição física reais, como observado pelo apóstolo André, por exemplo, que viu suas pegadas no chão após ele ter sido elevado: “Um fantasma, um demônio não deixa pegadas no chão”, afirma (cap. 11). Os apóstolos insistem: “Nós o sentimos, ele realmente ascendera em carne.” 

O próprio Cristo diz: “Eu [...] tomei sua carne, na qual nasci e morri, e fui enterrado, e ascendi novamente” (cap. 19). Ele indica que “a carne de todos ascenderá com sua alma viva a seu espírito” (cap. 24). Qualquer um que ensine algo diferente (os autores do Livro de Tomé, o adversário e do Apocalipse copta de Pedro!) sofrerá punição eterna, envolvendo dor física real (cap. 29). 

É      interessante que esse livro alegue explicitamente ter sido escrito contra aqueles que “deliberadamente dizem o que não é verdade” (cap. 50). É um livro atribuído a apóstolos mortos havia um século.

CONCLUSÃO 

Uma das características mais fascinantes dos primórdios do cristianismo é que tantos diferentes mestres e grupos cristãos diziam coisas contrárias. Não só coisas diferentes. Com frequência, coisas opostas. Só há um Deus. Não, há muitos deuses. O mundo material é a criação boa de um Deus bom. Não, é fruto de um desastre cósmico no reino divino. Jesus veio em carne. Não, ele era dissociado da carne. A vida eterna se dá por meio da redenção da carne. Não, ela se dá escapando da carne. Paulo ensinou estas coisas. Não, Paulo ensinou estas outras coisas. Paulo era o verdadeiro apóstolo. Não, Paulo não entendeu a mensagem de Jesus. Pedro e Paulo concordavam em todos os pontos teológicos. Não, eles discordavam um do outro. Pedro ensinou que os cristãos não deveriam seguir a lei judaica. Não, ele ensinou que a lei judaica continuava a ser válida. E assim por diante. 

Não apenas aqueles de ambos os lados desses debates acham que estavam certos e seus oponentes, errados; eles também sustentavam com toda a sinceridade e honestidade que seus pontos de vista eram aqueles ensinados por Jesus e seus apóstolos. Mais ainda, todos eles, ao que parece, produziram livros para provar isso, livros atribuídos a apóstolos e que sustentavam seus próprios pontos de vista. Talvez o mais interessante seja o fato de a maioria desses livros apostólicos ser falsificada. Cristãos interessados em estabelecer aquilo em que era certo acreditar faziam isso contando mentiras, em uma tentativa de enganar seus leitores e levá-los a concordar com suas verdades.


 

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