5) Capítulo Cinco - Falsificações em conflitos com judeus e pagãos

 Capítulo Cinco - Falsificações em conflitos com judeus e pagãos 

O Novo Testamento conta que Jesus teria dito: “Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas espada.” (Mt 10,34) Nunca foram ditas palavras mais verdadeiras. Muitos cristãos na era moderna pensam em sua religião como sendo amante da paz, como frequentemente tem sido e deve ser. Mas qualquer um com alguma noção de história também sabe quão violentos os cristãos foram ao longo das eras, patrocinando opressão, injustiça, guerras, cruzadas, pogroms, inquisições, holocaustos — tudo em nome da fé. Talvez todos os cristãos por trás dos odiosos atos da história estivessem agindo de má-fé; talvez estivessem violando os verdadeiros princípios da sua própria religião; talvez não estivessem em contato com os ensinamentos de amor à paz do Bom Pastor das ovelhas. E ninguém pode negar o impressionante bem que foi feito em nome de Cristo, os inúmeros atos de amor desprendido, os perturbadores sacrifícios feitos para ajudar os necessitados. Ainda assim, poucas religiões na história da raça humana demonstraram maior tendência ao conflito que a religião baseada nos ensinamento de Jesus, que, coerente com sua palavra, de fato trouxe a espada. 

Alguns dos primeiros cristãos se deram conta de que a religião seria baseada em conflito. O autor do livro dos Efésios do Novo Testamento, supostamente Paulo, diz a seus leitores: “Revesti-vos a armadura de Deus.” (6,10-20) Seu combate não era contra a carne mortal, mas “contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares”. Contra esses inimigos cósmicos, os cristãos deveriam vestir a couraça da justiça, o escudo da fé, o capacete da salvação e “a espada do Espírito, isto é, a Palavra de Deus”. Portanto, essa não era uma batalha contra inimigos humanos, mas contra os poderes espirituais formados contra Deus. Mas, ainda assim, uma batalha. 

É    impressionante que, em suas instruções sobre a “armadura” cristã, o autor de Efésios também diga a seus leitores: “Ficai alerta, à cintura cingidos com a verdade.” (6,14) Verdade era importante para esse autor. No começo, ele se refere ao evangelho como “a Palavra da verdade” (1,13). Depois aponta “a verdade em Jesus” e diz aos leitores: “Fale cada um a seu próximo a verdade.” (4,24-25) Também alega que o “fruto da luz” consiste em “verdade” (5,9). Irônico, então, que o autor tenha enganado seus leitores sobre sua própria identidade. O livro foi escrito pseudonimamente em nome de Paulo por alguém que sabia muito bem não ser Paulo. Alegando ser uma impecável autoridade cristã, esse defensor da verdade produziu uma pseudoepígrafe, uma “escrita falsamente atribuída”. Pelo menos é como os críticos antigos a teriam chamado se soubessem que o autor não era Paulo. Então, alguns cristãos foram para a batalha armados não com verdade, mas com embuste. Possivelmente, o autor se sentiu justificado de mentir sobre sua identidade. Afinal, havia muito em jogo.

Os cristãos entraram em conflito não apenas com forças espirituais, mas também com forças humanas. Ou talvez, mais precisamente do ponto de vista do autor, as forças espirituais alinhadas contra os cristãos se manifestaram na esfera humana, e foi nesse plano que as batalhas foram travadas de verdade. Como os historiadores dos primórdios do cristianismo sabem há muito tempo, os cristãos dos primeiros séculos da Igreja estavam em conflito constante e se sentiam atacados por todos os lados. Tinham problemas com os judeus, que consideravam suas visões uma perversão aberrante e arrivista das tradições ancestrais de Israel. Tinham problemas com povos e governos pagãos, que os consideravam uma religião secreta e não autorizada que representava um perigo para o Estado. E tinham problemas veementes e virulentos uns com os outros, já que diferentes mestres e grupos cristãos argumentavam que somente eles representavam a verdade, e que os outros mestres e grupos cristãos não entendiam as verdades que Cristo proclamara durante seu tempo na Terra. 

Em todas essas batalhas, a “armadura de Deus” incluía as armas do embuste. A falsificação foi usada por um ou outro autor cristão para desviar os ataques de judeus e pagãos e atacar os pontos de vista de outros cristãos que tinham compreensões alternativas e aberrantes da fé. Neste capítulo, considero os conflitos com os de fora, os judeus e pagãos opostos à fé cristã. No capítulo seguinte, abordarei os conflitos internos que assolaram a Igreja cristã desde o início. 

A REAÇÃO JUDAICA ÀS ALEGAÇÕES CRISTÃS 

Muitos cristãos evangélicos conservadores hoje não conseguem entender por que os judeus não aceitam a alegação de que Jesus é o messias. Para esses cristãos, tudo parece bastante óbvio. O Antigo Testamento previu como seria o messias. Jesus fez e experimentou as coisas previstas. Então, claro, ele é o messias. O Antigo Testamento disse que ele nasceria de uma virgem (Is 7,14) em Belém (Mq 5,2); que teria de fugir para o Egito quando criança e depois sair de lá (Os 11,1), e que seria criado em Nazaré, para que fosse chamado de nazareno (Is 11,1). Previu que faria seu ministério na Galileia (Is 9,1-2) e seria um grande curandeiro (53,4). Previu sua entrada triunfal em Jerusalém aclamado pela multidão (Is 62,11; Zc 9,9), a limpeza do Templo (Jr 7,11) e sua rejeição pelos líderes judeus (Sl 118,22-23). Mais importante, previu sua crucificação pelos pecados dos outros e sua ressurreição gloriosa dos mortos (Sl 22; 110; Is 53).

Jesus fez tudo o que foi previsto. Por que os judeus não veem isso? Está nas suas próprias Escrituras! Eles não sabem ler? São cegos? São idiotas? 

A verdade, claro, é que, ao longo da história, os judeus não foram mais analfabetos, cegos ou idiotas que os cristãos. A típica resposta dos judeus às alegações cristãs de que Jesus cumpriu profecias é que as passagens das Escrituras que os cristãos citam não falam de um futuro messias ou não fazem nenhuma previsão. E, é preciso admitir, apenas acompanhando esse debate de fora, parece que os leitores judeus têm alguma razão. Nas passagens que supostamente preveem a morte e a ressurreição de Jesus, por exemplo, o termo “messias” de fato nunca aparece. Muitos cristãos ficam surpresos com essa alegação, mas basta ler Isaías 53 e comprovar. 

A maioria dos judeus antigos rejeitava o messianismo de Jesus pela simples razão de que Jesus não era de modo algum o que a maioria dos judeus esperava de um messias. Muitos judeus do mundo antigo não estavam ansiosos em seus assentos esperando um messias, não mais que a maioria dos judeus está hoje. Mas havia grupos de judeus muito religiosos, na época de Jesus, que achavam que Deus enviaria uma figura messiânica para livrá-los de seus problemas muito graves. Todos esses grupos baseavam suas expectativas na Bíblia hebraica, claro; mas havia diferentes expectativas de como seria esse salvador messiânico.125 

O termo “messias” vem da palavra hebraica que significa “o ungido”. Originalmente, na Bíblia hebraica, era usada em referência ao rei de Israel, uma figura como o rei Saulo, o rei Davi ou o rei Salomão. O rei era literalmente “ungido” com óleo em sua cabeça durante a cerimônia de posse, para mostrar que o favor especial de Deus estava sobre ele de uma forma única (ver, por exemplo, Sl 2). Após algum tempo, quando não havia mais reis em Israel, alguns judeus achavam que Deus mandaria um futuro rei, um ungido como o grande rei Davi de antigamente que, assim como ele, lideraria os Exércitos de Israel contra seus inimigos e restabeleceria Israel de novo como um Estado soberano na Terra. Esse futuro rei, portanto, foi o messias, um ser humano que era um guerreiro poderoso e um grande governante do povo de Deus. 

Outros judeus de postura mais celestial achavam que esse futuro salvador seria uma figura sobrenatural enviada do céu, uma espécie de julgador celestial da Terra que enfrentaria o inimigo com uma força esmagadora antes de estabelecer aqui um reino a ser governado por um escolhido de Deus. E havia judeus preocupados principalmente com o que poderíamos chamar de “religião” de Israel, em oposição a sua situação política. Esses judeus achavam que o futuro governante do povo seria um poderoso sacerdote que fortaleceria o povo de Israel ensinando a ele a correta interpretação da lei judaica. Ele governaria o povo de Deus cobrando a observância do que Deus exigira nas Escrituras. 

Em resumo, havia uma série de expectativas de como seria uma futura figura “ungida”, um messias. A única coisa que essas concepções do futuro salvador tinham em comum era que todas esperavam que fosse uma figura grandiosa e poderosa, fortalecida por Deus para derrubar os inimigos e governar o povo de Deus com autoridade. 

Os seguidores de Jesus, por outro lado, alegavam que ele era o messias. E quem era Jesus? Um pregador pouco conhecido da atrasada Galileia que ofendera as autoridades constituídas e, como resultado, fora submetido a humilhação pública e tortura, executado em uma cruz como um criminoso qualquer. Para a maioria dos judeus, seria difícil imaginar alguém menos parecido com o esperado messias que Jesus de Nazaré. 

Todavia, era isto o que os cristãos alegavam: que Jesus era o messias. Os primeiros cristãos se convenceram disso porque acreditavam que Jesus tinha sido erguido dos mortos por Deus. Deus mostrara que Jesus não era apenas um criminoso qualquer ou um pregador impotente. Deus dera a ele o poder de derrotar o maior inimigo de todos, a própria morte. Jesus ascendera ao céu e estava sentado à direita de Deus, esperando para retornar e estabelecer seu governo sobre a Terra. Segundo essa visão cristã inicial, as expectativas judaicas do messias eram verdadeiras. O messias derrubaria os inimigos de Deus em uma demonstração de força. Mas, antes disso, ele precisava derrotar os maiores inimigos, os poderes malévolos do pecado e da morte que estavam alinhados contra Deus e seu povo. Jesus derrotou o pecado na cruz e a morte em sua ressurreição. Ele é o messias. E está retornando para terminar o trabalho. 

Para os seguidores de Jesus, portanto, as Escrituras deviam ter previsto não só os aspectos poderosos do “segundo” advento do messias, mas também os acontecimentos significativos de seu “primeiro” advento. Os cristãos vasculharam os textos das Escrituras para encontrar passagens que pudessem, adequadamente, se referir a nascimento, vida, morte e ressurreição de Jesus. Os cristãos estavam certos de que essas passagens (nascimento imaculado em Belém, entrada triunfal, morte pelos pecados dos outros e assim por diante) se referiam a Jesus, porque Ele era o messias e as Escrituras previam o messias. A maioria dos judeus, contudo, não estava convencida, porque nenhuma dessas passagens fala do messias, a Bíblia hebraica nunca afirma que o messias virá duas vezes, e a vida de Jesus decididamente não era a vida gloriosa do ungido por Deus. 

Portanto, desde o início, houve conflitos profundos e difíceis. Nos estágios iniciais, os judeus eram muito mais numerosos que os cristãos e podiam facilmente superá-los. Mas os cristãos continuavam a reagir e discutir. E discutir, discutir, discutir. Entre outras coisas, muitos judeus cristãos não conseguiam entender como judeus não cristãos podiam não entender o que eles diziam e aceitar o “fato” de que Jesus era o messias. As provas estavam todas lá, nas próprias Escrituras! À medida que as linhas de batalha se tornaram mais claras e os dois lados se consolidaram e usaram táticas mais duras, os cristãos começaram a argumentar que os judeus que rejeitaram Jesus eram tão responsáveis pela sua morte quanto as autoridades judaicas que originalmente a haviam pedido. Rejeitar Jesus era equivalente a matá-lo. 

E assim, os judeus não cristãos passaram a ser conhecidos como o povo que havia matado seu próprio messias — “Cristicidas”. É óbvio que eles não entendiam as próprias Escrituras, e haviam rejeitado seu próprio Deus. Consequentemente, Deus os rejeitara. 

Foi nesse contexto que um significativo volume de literatura foi produzido pelos dois lados, sobretudo por cristãos. Ainda temos hoje parte dessa literatura. Uma carta supostamente de Barnabé, companheiro do apóstolo Paulo, alega que os judeus sempre se equivocaram com sua própria religião interpretando a lei mosaica de forma literal em vez de alegoricamente, de modo que o Antigo Testamento não é um livro judeu, mas cristão. Há um escrito do famoso mártir cristão do século II, Justiniano, no qual ele debate com um rabino judeu e aponta os erros de sua interpretação das próprias Escrituras. Um sermão de Melito, um bispo cristão do século II, alega que os judeus não só rejeitaram seu messias, como, ao matá-lo, são culpados de deicídio: mataram o próprio Deus. E assim por diante. 

Entre as obras produzidas por cristãos nessa polêmica, houve uma série de falsificações, livros escritos em nome de autoridades do passado, com a intenção de mostrar a verdade reluzente do cristianismo e os horrendos erros dos judeus. Houve algumas falsificações que insistiram no verdadeiro caráter de Jesus: ele era um ser divino, não um mero mortal, como reconhecido pelas autoridades romanas. Nesses escritos, não são os romanos, mas os líderes judeus, ou mesmo o próprio povo judeu, os responsáveis pela crucificação de Jesus. 

ALGUMAS FALSIFICAÇÕES RESULTANTES 

O Evangelho de Pedro 

Já vimos uma falsificação escrita, pelo menos em parte, para defender esse ponto de vista. O Evangelho de Pedro (discutido no capítulo 2) enfatiza que “nenhum dos judeus” estava disposto a lavar as mãos para mostrar que era inocente do sangue de Jesus. Nesse evangelho, é o rei judeu Herodes, não Pilatos, quem ordena a morte de Jesus. E depois o povo judeu demonstra seu remorso pela morte do escolhido por Deus e reconhece que, a partir de então, Deus sem dúvida os julgará e levará a destruição à cidade sagrada de Jerusalém, uma referência à guerra romana que resultou no incêndio do Templo, a derrubada das paredes e o massacre da oposição judia em 70 d.C. 

O Evangelho de Pedro é um dos mais antigos evangelhos posteriores ao período do Novo Testamento, possivelmente escrito por volta de 120 d.C. Evangelhos falsificados antijudaicos se tornaram cada vez mais populares com o passar do tempo, em especial à medida que o cristianismo crescia e afirmava seu poder de forma mais convincente. 

O Evangelho de Nicodemos 

Um dos evangelhos mais intrigantes surge perto do fim do período de tempo que analiso neste livro, os primeiros quatro séculos cristãos. É um longo relato do julgamento, da morte e da ressurreição de Jesus erroneamente atribuído a Nicodemos, o rabino bem conhecido dos leitores cristãos por seu importante papel no Evangelho de João como seguidor “secreto” de Jesus (ver 3,1-15).126 O Evangelho de Nicodemos se tornou um livro bastante popular e influente por toda a Idade Média, circulando pelo Ocidente latino e enfim traduzido e disseminado em quase todos os idiomas da Europa Ocidental. Acreditava-se, claro, que tinha sido escrito pelo próprio Nicodemos. Mas é provável que o relato tenha sido redigido em algum momento do século IV, trezentos anos após a morte de Nicodemos (supondo-se ser ele um personagem histórico). Contudo, pode muito bem ser baseado em histórias transmitidas oralmente dois séculos antes de ser colocado no papel. 

O evangelho começa indicando que Nicodemos originalmente escreveu a narrativa em hebraico. Na verdade, o relato parece ser uma composição original em grego. Mas, ao alegar que aparecera primeiro em hebraico, o verdadeiro autor, quem quer que fosse, dava ao documento um ar de autenticidade, mostrando tanto que a narrativa era muito antiga quanto, em tese, baseada em um testemunho ocular. 

Não há dúvida de que o relato não tem nada de histórico, já que se baseia em lendas posteriores sobre as últimas horas de Jesus, sua morte e ressurreição. A narrativa é concebida para mostrar que Pilatos foi inocente na execução de Jesus, que os líderes e o povo judeus tiveram toda a culpa e que, rejeitando Jesus, os judeus haviam rejeitado Deus. 

O caráter divino de Jesus é estabelecido no início da narrativa, em uma de suas cenas mais interessantes e divertidas. Antes do julgamento de Jesus, as autoridades judaicas estão falando com Pilatos, insistindo em que Jesus é culpado de crimes e precisa ser condenado. Pilatos faz com que seu mensageiro leve Jesus ao tribunal. Há dentro da sala dois escravos segurando “estandartes” com — como tinham os estandartes romanos — uma imagem do César “divino”. Quando Jesus entra no salão, os porta-estandartes se curvam diante dele, de modo que a imagem de César parece fazer deferência à sua presença. 

As autoridades judaicas ficam furiosas e insultam os porta-estandartes, que replicam que não tiveram nada a ver com aquilo. As imagens de César se curvaram por vontade própria para venerar Jesus. Pilatos decide resolver a questão, por isso diz aos líderes judeus para escolherem alguns de seus próprios homens fortes para segurar os estandartes e mandar Jesus sair e entrar uma segunda vez. Os líderes escolhem 12 judeus musculosos, seis para cada estandarte, que os seguram com toda a força. Jesus entra de novo no salão e de novo os estandartes se curvam perante ele. 

Pode-se crer que todos entenderam o ponto, mas isso estragaria a história. Pilatos fica aterrorizado e tenta em vão salvar Jesus. As autoridades judaicas declaram que Jesus é um malfeitor que merece morrer. Diversas vezes, durante o julgamento, eles acusam Jesus de malfeitorias e insistem em que seja julgado. E, também diversas vezes, Pilatos afirma que ele é inocente de todas as acusações, expressa perplexidade pelos judeus estarem tão determinados a vê-lo morto e conclama os líderes judeus a permitir que liberte Jesus. Mas eles se recusam, desejando-o morto. Três vezes eles exprimem sua disposição de assumir a responsabilidade repetindo as palavras de Mateus 27,25: “Que caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos!” 

Quando essas palavras foram escritas pela primeira vez séculos antes, no Evangelho de Mateus, já exprimiam um sentimento antijudaico. Ao dizê-las, as multidões judias mostraram estar dispostas não só a incorrer na culpa pela morte de Jesus, mas também a transmitir essa culpa a futuras gerações de judeus. Ao longo dos séculos, as palavras foram usadas por adversários cristãos dos judeus para

culpá-los pela morte de Jesus e cometer horríveis atos de violência contra eles como vingança. Essa forma ampliada de antijudaísmo já está em evidência no Evangelho de Nicodemos. As autoridades judaicas são apresentadas como intencionalmente cegas ao verdadeiro caráter de Jesus. Mesmo o imperador o venera (nos estandartes). E várias testemunhas são convocadas para contar todos os milagres que ele realizou como o Filho de Deus. 

No entanto, tudo é em vão. Jesus é crucificado por instigação dos judeus e seus líderes. O resto do relato mostra a verdade do caráter divino de Jesus. Ele é erguido dos mortos e os próprios líderes judeus recebem uma prova incontestável da ressurreição por intermédio do depoimento de testemunhas confiáveis. 

Eis, portanto, um relato falsificado, escrito cerca de trezentos anos depois dos acontecimentos que narra, para mostrar que a morte de Jesus foi imerecida, que os romanos (que em meados do século IV estavam do lado dos cristãos) não tiveram nada a ver com a crucificação, que a culpa foi toda dos judeus e que, ao rejeitarem Jesus, eles rejeitaram seu próprio Deus. Não espanta que um relato como esse tenha se tornado tão popular por toda a Europa ocidental na Idade Média, quando o ódio aos judeus era um aspecto constante e perturbador daquilo que significava ser cristão. 

Os “Evangelhos de Pilatos” 

Vários escritos contemporâneos ao Evangelho de Nicodemos estão de uma forma ou de outra ligados a Pôncio Pilatos e seu papel na morte de Jesus. A maioria deles é concebida para mostrar que Pilatos não teve culpa na morte de Jesus e que sentiu um grande remorso após o ocorrido. Em vários desses escritos, aprendemos que Pilatos não apenas se arrependeu do malfeito, como se tornou um crente em Cristo. No cristianismo posterior, a conversão de Pilatos se tornou aceita como parte da história dos primórdios da Igreja. Na Igreja Copta, Pilatos acabou canonizado como um santo cristão. 

Historicamente, claro, nada poderia ser mais distante da verdade. Pilatos continuou a ser um brutal governador da Judeia após a morte de Jesus. Não há nada nos registros históricos sugerindo que ele sequer recordasse ter ordenado a execução de Jesus, muito menos sentisse remorso por isso. Ainda assim, o motivo para essa posterior absolvição e mesmo exaltação em segmentos da Igreja cristã é razoavelmente claro. Se Pilatos não foi o responsável pela morte de Jesus, quem foi? Os judeus. As lendas de Pilatos foram escritas em uma série de documentos que podem remontar ao século IV cristão, ou mesmo antes. Alguns deles são supostamente escritos pelo próprio Pilatos. Todos eles, porém, falsificados. 

A CARTA DE HERODES A PILATOS

O primeiro documento que analisamos não teria sido escrito por Pilatos, mas para ele, por seu colega Herodes Antipas, a Carta de Herodes a Pilatos. Historicamente, Pilatos é conhecido por ter sido o governador romano da Judeia, na região sul de Israel, quando Herodes Antipas, o filho de Herodes, o Grande — o governante da Terra quando Jesus nasceu — era o governante judeu da Galileia, no norte da região. Herodes Antipas é mais conhecido na tradição bíblica por ter decapitado João Batista. Em lendas posteriores, ele teria se arrependido muito do que fizera, já que isso o assombrava. 

Esse é o caso nesta carta forjada em seu nome, supostamente enviada a Pilatos.127 Aqui Herodes indica que lamenta saber que Pilatos matou Jesus, porque ele, Herodes, queria vê-lo e se arrepender pelas coisas más que havia feito. O julgamento dos pecadores por Deus, afirma ele, corresponde aos crimes. Um acidente bizarro que ele relata é o de sua própria filha, que, literalmente, perdeu a cabeça em uma inundação que houve quando brincava nas margens de um rio. A inundação começou a levá-la, e a mãe se esticou para salvá-la agarrando-a pela cabeça. Mas o corpo se desprendeu e a mãe ficou apenas com a cabeça da criança em suas mãos. Herodes afirma que isso se deu como vingança por ele ter arrancado a cabeça de João Batista. 

Ele mesmo está sofrendo, apodrecendo antes mesmo de morrer, como diz: “Vermes já me saem pela boca.” Aqui o autor pseudônimo parece confundir esse Herodes com o posterior Herodes Agripa, que segundo o livro dos Atos do Novo Testamento foi comido por vermes e morreu (Atos 12). Também o soldado romano Longino — o que supostamente enfiou uma lança na lateral do corpo de Jesus quando na cruz — teve um destino horrendo. Foi condenado a uma caverna onde toda noite um leão entrava e torturava seu corpo até o amanhecer. No dia seguinte, seu corpo voltava ao normal, e o leão entrava novamente. Isso continuará até o fim dos tempos. 

Mas Pilatos, o destinatário da carta, é retratado sob uma luz favorável, como um representante dos gentios. Não eles, mas os judeus serão julgados pelo que fizeram a Jesus: “A morte logo levará os sacerdotes e o conselho de governo dos filhos de Israel, porque eles injustamente colocaram as mãos no justo Jesus.” Portanto, são os gentios que herdarão o Reino de Deus, enquanto Herodes e os outros judeus “serão expulsos” porque “não seguiram os mandamentos do Senhor ou os de seu Filho”. 

A CARTA DE PILATOS A HERODES 

Uma segunda carta falsificada vai na direção oposta, de Pilatos para Herodes.128 Seria de esperar que fosse uma resposta à primeira, mas, a despeito do título, Carta de Pilatos a Herodes, e do fato de que cita alguns dos mesmos personagens (Herodes, Pilatos e Longino, o soldado com a lança), elas não têm quase mais nada em comum. Essa segunda carta não se refere à primeira e a contradiz em um ponto fundamental. Aqui Longino, em vez de ser submetido a um tormento interminável pelo que fez, é retratado como um converso que passou a acreditar em Jesus após a Ressurreição. Este, na verdade, é o ponto da segunda carta: mostrar que quando Jesus foi erguido, não apenas Longino, mas também a esposa de Pilatos, Procla, e depois o próprio Pilatos, todos se tornaram crentes.

 

Segundo a narrativa da carta, após Pilatos fazer “uma coisa terrível” ao crucificar Jesus, ouve falar que o messias foi erguido dos mortos. Procla e Longino vão encontrar Jesus na Galileia. Lá ele fala, e eles se convencem da sua ressurreição. Quando Pilatos sabe que Jesus voltou à vida, cai ao chão em dor profunda. Mas o próprio Jesus aparece a ele, o levanta do chão e declara: “Todas as gerações e nações o abençoarão.” Aqui Pilatos não está apenas arrependido: é um cristão convertido que será considerado afortunado por fiéis posteriores. 

A CARTA DE PILATOS A CLÁUDIO 

Temos outra carta supostamente de Pilatos a um funcionário romano, mas dessa vez presume-se que dirigida ao imperador romano Cláudio, escrita para explicar o papel de Pilatos na morte de Jesus: a Carta de Pilatos a Cláudio.129 Pode parecer estranho Pilatos escrever a Cláudio, considerando-se que era Tibério, e não Cláudio, o imperador quando Pilatos condenou Jesus à morte (Cláudio se tornou imperador uma década depois). Possivelmente, essa carta foi falsificada tanto tempo depois que o falsificador não tinha as informações certas sobre os fatos da história imperial de duzentos anos antes (você sabe quem foi o presidente dos Estados Unidos em 1811?). 

Um dos lugares em que a carta foi preservada para nós foi um relato inventado das atividades missionárias dos apóstolos chamado Atos de Pedro e Paulo. Nesse relato, é dito que anos após a morte de Jesus, o apóstolo Pedro e o arqui-herege Simão, o Mágico, que já conhecemos, aparecem diante do imperador Nero, no começo dos anos 60 d.C. Quando o imperador ouve falar em Cristo, pergunta a Pedro como pode aprender mais sobre ele. Pedro sugere que recupere a carta que Pilatos enviou a seu predecessor, o imperador Cláudio, e a leia em voz alta. Ele o faz, e a carta é citada na íntegra. 

A ideia de que Pilatos tenha escrito uma carta ao imperador para explicar a morte de Jesus era disseminada nos primórdios do cristianismo. Temos referências a cartas assim já no século III nos escritos do pai da Igreja, Tertuliano, e no século IV, em História da Igreja, de Eusébio.130 É provável que a carta que abordo aqui não seja a citada por esses dois autores. Essa, possivelmente, foi escrita por um falsificador que acreditava que alguma carta assim deva ter existido. Os temas da breve carta são muito semelhantes aos que já estudamos. Foram os malvados judeus os responsáveis pela morte de Jesus, e por isso eles serão punidos por Deus. Como “Pilatos” afirma na carta:

Os judeus, por inveja, se vingaram em si mesmos e naqueles que virão depois por seus terríveis atos de julgamento. Eles ignoraram as promessas feitas a seus ancestrais, de que Deus enviaria esse santo do céu [...] por intermédio de uma virgem.

Segundo a carta, Jesus provou ser o filho de Deus com seus muitos milagres, mas os líderes judeus contaram mentiras de modo que ele fosse executado. Então, eles (não os soldados romanos!) o crucificaram. Quando se levantou dentre os mortos, “a maldade dos judeus se inflamou”, e eles subornaram os soldados para dizer que os discípulos de Jesus haviam roubado o corpo do túmulo. Pilatos havia escrito a carta para que o imperador conhecesse a verdade e não fosse “levado a acreditar nos relatos falsos dos judeus”. 

O relato de Pôncio Pilatos

Um documento maior, chamado Relato de Pôncio Pilatos, oferece mais uma carta do governador romano ao imperador, dessa vez Tibério, pouco após a morte de Jesus.131 Essa carta parece muito mais próxima do que Tertuliano no começo do século III descreveu ao dizer: “Pilatos, que já era ele mesmo um cristão no que diz respeito à sua convicção interior, fez um relato de tudo o que aconteceu a Cristo para Tibério, o imperador à época.”132 Mais uma vez, há dúvidas sobre se o relato preservado é o documento a que Tertuliano se refere. Os estudiosos tendem a datá-lo de um período posterior, possivelmente o século IV. De qualquer forma, suas principais alegações são semelhantes às das outras falsificações que examinamos neste capítulo. Jesus era o filho milagreiro de Deus que foi erradamente condenado à morte pelos judeus. Pilatos foi inocente em todo o processo. 

O relato começa afirmando que Pilatos administrava a província da Judeia de acordo com “as mais gentis determinações” do imperador. Nada de duro ou malvado nesse Pilatos! Mas “toda a multidão de judeus” (não apenas os líderes judaicos) lhe entregou Jesus “fazendo intermináveis acusações contra ele”, embora “não fossem capazes de condená-lo por um único crime”. 

Pilatos prossegue indicando, contudo, que Jesus havia praticado muitos milagres, fazendo o cego ver, limpando leprosos, levantando os mortos, curando paralíticos e assim por diante. Eram façanhas impressionantes, como o próprio Pilatos confessa: “De minha parte, sei que os deuses que veneramos nunca realizaram feitos tão espantosos quanto os dele.” Mas os judeus não se comoveram e ameaçaram com uma revolta, então Pilatos ordenou que ele fosse crucificado. 

Durante a morte de Jesus, uma milagrosa escuridão cobre a Terra, e com sua ressurreição surge uma milagrosa claridade. Às três horas da manhã, o sol começa a brilhar com toda a força, anjos são vistos no céu, há terremotos e rochas se partindo, e grandes crateras se abrem na terra. Tudo isso prenuncia tragédia para os judeus recalcitrantes: 

A luz não cessou a noite toda, ó rei, meu mestre. E muitos dos judeus morreram, sendo engolfados e engolidos pelas crateras naquela noite, de modo que seus corpos não puderam ser encontrados. Quero dizer que aqueles judeus que falaram contra Jesus sofreram. Apenas uma sinagoga restou em Jerusalém, já que todas as sinagogas que se opuseram a Jesus foram engolidas. 

A rendição de Pilatos

Um último exemplo do “Evangelho de Pilatos” é chamado A rendição de Pilatos.133 Não é uma carta, mas uma narrativa do que aconteceu a Pilatos assim que o imperador Tibério recebeu seu relato do que se passara na morte e ressurreição de Jesus. A rendição parece supor a existência do relato de Pilatos, mas é estilisticamente diferente e tem pontos discordantes com o texto anterior. Assim, os estudiosos tendem a pensar que foram escritos por diferentes autores. 

A rendição começa afirmando que a carta de Pilatos chegou a Roma e foi lida para Tibério César diante de uma grande multidão, que ficou maravilhada de saber que a escuridão diurna e o terremoto mundial que haviam experimentado se deram como resultado da crucificação do Filho de Deus. César está “tomado de raiva” e envia soldados para prender Pilatos e levá-lo a Roma. Quando Pilatos chega, César o leva a julgamento e o censura por executar Jesus. “Ousando fazer essa maldade, você destruiu o mundo inteiro.” 

No entanto, Pilatos protesta sua inocência e diz ser “a multidão de judeus os descuidados e culpados”. César retruca que ainda assim Pilatos deveria saber, já que era óbvio, pelos milagres de Jesus, que “ele era o Cristo”. Assim que César menciona o nome de Cristo, todos os ídolos pagãos no Senado, onde acontece o julgamento, caem ao chão e se transformam em pó. Aqui, como no Evangelho de Nicodemos, os deuses dos pagãos prestam humildes respeitos perante a divindade de Cristo e deixam de existir. Nesse episódio, isso acontece com a menção ao nome divino de Cristo. 

Pilatos repete que as obras de Jesus mostraram que ele era “maior que todos os deuses” que adoravam. Mas ele o executou “por causa da anarquia e revolta dos judeus sem lei e sem Deus”. César e o Senado votam e decidem destruir a nação dos judeus. Então, enviam os Exércitos que destroem a nação e levam todos os judeus sobreviventes para ser vendidos como escravos. O próprio Pilatos é condenado à morte por sua participação no caso. 

Antes de morrer, entretanto, Pilatos reza a Deus e jura inocência, mais uma vez dizendo que a morte de Jesus se deveu à “nação de judeus sem Deus”. Quando ele termina a prece, vem do céu uma voz — a voz do próprio Cristo — garantindo a Pilatos sua salvação: “Todas as raças e famílias dos gentios o abençoarão, pois, sob seu governo, tudo dito sobre mim pelos profetas se realizou. Você mesmo aparecerá como testemunha de meu segundo advento.” Quando o carrasco decepa a cabeça de Pilatos, um anjo desce e a toma, supostamente para levá-la ao céu. 

O OBJETIVO DOS “EVANGELHOS DE PILATOS” 

As questões gerais desses posteriores evangelhos de Pilatos já devem estar claras. Inocentando Pilatos da morte de Jesus, os relatos fazem os judeus, não apenas seus líderes, assumirem toda a culpa. Quanto mais inocente Pilatos é, mais culpados os judeus são. Segundo algumas das lendas, Pilatos é tão inocente que se torna um crente devotado e seguidor de Cristo. Deus, portanto, sente raiva dos judeus e os pune por seu crime contra o Filho de Deus.

Esses escritos foram falsificados em um período que viu aumentar a animosidade entre cristãos e judeus. Os cristãos se deram conta de que não haveria uma reaproximação dos judeus e que eram poucas as chances de que a maioria deles um dia visse a “verdade” sobre Jesus, que ele era o messias de Deus, não somente um pequeno criminoso crucificado. Essa “verdade” foi o que motivou esses “falsos escritos” cristãos. Isso é dizer que alguns autores cristãos escolheram contar a verdade sobre o divino Cristo e seus inimigos ímpios, os judeus, falsificando documentos, alegando ser pessoas que não eram. Leitores cristãos desses documentos os aceitaram como relatos reais de época, em vez de falsificações de períodos posteriores, o que, de fato, eram. Os autores pretenderam enganar seus leitores, e seus leitores foram enganados muito facilmente. 

Escritos de Jesus 

Temos muito poucos escritos dos primórdios do cristianismo atribuídos ao próprio Jesus, e muito poucos indícios de que Jesus soubesse escrever. Mas há alguns poucos relatos de ele escrevendo — embora isso não seja conhecido, mesmo entre acadêmicos —, e dois escritos preservados que ele (falsamente) tinha produzido. 

Mesmo nas páginas do Novo Testamento, há um registro de Jesus escrevendo. Não é uma história originalmente encontrada no Novo Testamento, mas um relato posterior que escribas acrescentaram ao Evangelho de João. É uma das histórias mais conhecidas de Jesus: a da mulher apanhada em adultério (8,1-11). 

Na história, as autoridades judaicas arrastam uma mulher até diante de Jesus e indicam que ela foi flagrada em adultério. Segundo a lei mosaica, dizem, ela deve ser apedrejada até a morte. Mas o que Jesus diz? É obviamente uma armadilha. Se Jesus disser “Sim, definitivamente, apedrejem-na”, estará violando seus próprios ensinamentos sobre perdão e misericórdia. Mas, se disser “Não, deixem-na ir”, estará violando a lei mosaica. Então, o que ele faz? Jesus, claro, sempre encontra uma saída para essas armadilhas e o faz nesse caso se agachando e escrevendo no chão. Depois ergue os olhos e diz: “Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra.” Depois, agacha-se mais uma vez e volta a escrever. Uma a uma, envergonhadas de seus próprios pecados, todas as autoridades judaicas partem uma a uma, até não sobrar nenhuma para condenar a mulher. 

É um relato fascinante, mesmo originalmente não fazendo parte do Novo Testamento.134  Mas o interessante para nossa discussão aqui é o que Jesus faz quando se agacha. Não é dito que ele desenha ou rabisca no chão. É dito que ele “escrevia”. O termo grego indica com clareza que ele está escrevendo palavras. É o mais antigo indício que temos de que Jesus era capaz de escrever.135 Um estudo recente dessa passagem, na verdade, argumenta que ela foi escrita anos após a morte de Jesus, exatamente para mostrar que ele sabia escrever.136

Vários supostos escritos de Jesus são mencionados por pais da Igreja. Infelizmente, nenhuma dessas falsificações foi preservada. As Constituições Apostólicas do século IV, por exemplo, mencionam livros falsificados em nome de Jesus pelos hereges Simão e Cleóbio. É difícil saber se tais livros existiram ou se só foram citados para atacar esses falsos mestres por falsificá-los. 

O teólogo do século V Agostinho, por outro lado, menciona uma carta supostamente escrita por Jesus.137 A carta era endereçada aos apóstolos Pedro e Paulo e endossava práticas mágicas. Agostinho não teve dificuldade em mostrar que a carta era falsificada, já que Paulo não era um discípulo quando Jesus estava vivo, somente após sua morte. Agostinho argumenta de forma plausível que o falsificador vira pinturas de Jesus com Pedro e Paulo (como ainda é possível ver, por exemplo, nas catacumbas de Roma) e inferiu equivocadamente que Paulo era um dos discípulos de Jesus na Terra. Com base nesse equívoco, o falsificador concebeu uma carta que Jesus supostamente enviara a Paulo juntamente com Pedro. Infelizmente, já não temos mais a carta.138 

Contudo, foram preservados dois outros escritos em nome de Jesus nos primeiros quatro séculos. Mas nenhum deles é tão claramente visto como falsificação, já que nenhum parece ser atribuído ao próprio Jesus histórico. Um é encontrado em um relato da morte e ressurreição de Jesus, chamado Narrativa de José de Arimateia. Segundo essa narrativa ficcional, um dos ladrões crucificados junto com Jesus é perdoado por seus pecados e recebe a promessa de um lugar no céu. Na cruz, Jesus escreve uma carta ao querubim angelical encarregado do céu, orientando-o a deixar o sujeito entrar quando chegar ao portão. É uma carta intrigante, mas não parece que o autor pretenda que seus leitores o levem a sério como algo escrito por Jesus.139 Mas posso estar errado. 

Outro escrito de Jesus é um documento descoberto em 1945, com uma coleção de textos gnósticos, chamada Biblioteca de Nag Hammadi, sobre a qual falarei mais no próximo capítulo. Esse documento está escrito na primeira pessoa, em nome de Jesus, e descreve a verdadeira natureza de sua crucificação e a verdadeira forma de conseguir a salvação por intermédio dele. É chamado Segundo Tratado do Grande Seth (o primeiro tratado, caso tenha existido, não foi preservado). Embora Jesus alegue escrever esse livro, é Jesus ressuscitado escrevendo do céu. Por essa razão, não é a mesma coisa que uma falsificação em nome do Jesus terreno.

Contudo, uma breve carta cuja autoria seria do Jesus terreno foi preservada. A carta foi produzida por alguém que provavelmente queria levar seus leitores a pensar que era de Jesus. Assim, é apropriadamente chamada de falsificação. A carta é parte de uma correspondência entre Jesus e um determinado rei Abgar, da cidade de Edessa, na Síria. Nosso primeiro registro dessa correspondência é a História da Igreja de Eusébio, que de fato alega ter descoberto as duas cartas nos arquivos da cidade de Edessa. Eusébio indica que as cartas foram escritas em siríaco, mas que as traduziu para o grego. Então as cita na íntegra.140 

A primeira carta é do “governante Abgar” endereçada a “Jesus, o Bom Salvador”. Abgar indica que ouviu tudo sobre as curas milagrosas de Jesus e concluiu que Ele deveria ser “Deus [...] tendo descido do céu” ou o “Filho de Deus”. Qualquer que fosse o caso, Abgar pede que Jesus vá até ele e

o cure de sua doença (sem contar qual é). Acrescenta que isso também seria benéfico a Jesus, já que ele “ouviu que os judeus estão murmurando contra ele e desejando feri-lo”. 

Jesus escreve uma resposta em que diz que Abgar é abençoado por acreditar nele sem vê-lo e comenta: “É escrito sobre mim que aqueles que me veem não acreditam em mim, e que aqueles que não me veem acreditam e vivem.” (ver Is 6,9; Mt 13,14-17; Jo 9,39; 12,39-40) Em outras palavras, as pessoas entre as quais Jesus vivia e trabalhava (“os judeus” mencionados por Abgar) não acreditam e, portanto, não teriam vida, mas morte. Jesus prossegue recusando educadamente o convite de Abgar para juntar-se a ele em Edessa, já que tem de “realizar tudo o que fui mandado aqui para fazer” e depois “ascender até Aquele que me enviou”. Jesus, porém, promete que após sua ascensão enviará um de seus discípulos para curar Abgar e “garantir vida a você e àqueles que estão com você”. 

Presumo que essa última frase signifique que o discípulo lhes ensinará o evangelho, no qual acreditarão por toda a vida eterna. Segundo lendas posteriores, Jesus cumpriu sua promessa ao rei Abgar. Um apóstolo foi enviado a Edessa, curou o rei de sua doença e converteu a ele e a toda a cidade à fé em Cristo. 

A correspondência com Abgar tem um objetivo similar ao dos Evangelhos de Pilatos, mas de uma forma muito mais sutil. Também aqui os judeus são atacados por sua oposição a Jesus e identificados como não herdeiros da vida eterna por terem-no rejeitado. Portanto, também essa carta representa o antagonismo ao povo judaico por seu papel na morte de Jesus. 

Como um comentário paralelo, a correspondência com Abgar parece ter tido uma vida interessante. À medida que circulou por toda a Igreja antiga, escribas a modificaram em certos pontos. Alguns dos manuscritos preservados da carta de Jesus acrescentam uma linha final que informa ao rei Abgar: “Sua cidade será abençoada e o inimigo não mais prevalecerá sobre ela.” Essa se revelou uma promessa muito útil para os cidadãos de Edessa. No fim do século IV, uma rica cristã chamada Egeria, da região ocidental do império (Espanha ou França) decidiu partir em peregrinação para visitar todos os lugares sagrados da Terra Santa. Durante sua jornada, ela manteve um diário em latim, que ainda temos hoje.141 Em suas viagens, Egeria chegou a Edessa e viu as cartas entre Jesus e Abgar, mostradas pelo bispo cristão local. 

Segundo o bispo, quando a cidade de Edessa foi atacada pelos Exércitos da Pérsia, o então governante da cidade pegou a carta de Jesus, que prometera que a cidade não seria conquistada, e a ergueu junto ao portão. O Exército atacante foi derrotado pelo poder mágico da carta e se retirou, retornando à Pérsia sem ferir uma só alma. Mais tarde, uma cópia da carta foi presa ao portão da cidade e nenhum inimigo tentou atacá-la desde então. Portanto, era uma carta muito útil de ter à mão, mesmo sendo falsificada. 

OPOSIÇÃO PAGÃ AO CRISTIANISMO

No momento em que nos voltamos do antagonismo dirigido aos judeus pelos primeiros cristãos para a oposição ocasionalmente encontrada entre pagãos, é importante esclarecer alguns equívocos comuns sobre o cristianismo inicial no Império Romano. Acredita-se que, desde seus primeiros dias, o cristianismo era uma religião ilegal, que os cristãos não podiam professar sua fé abertamente por medo de perseguição governamental e que consequentemente tinham de se esconder, por exemplo, nas catacumbas romanas. Mas nada disso é verdade. O cristianismo não era mais ilegal que qualquer outra religião. Na maior parte do tempo e na maioria dos lugares, os cristãos podiam ser bastante abertos em relação à sua fé. Raramente havia qualquer necessidade de “ser discreto”. 

É   verdade que os cristãos algumas vezes sofriam a oposição dos pagãos por serem desconfiados e possivelmente vulgares, da mesma forma como a maioria das “novas” religiões encontrava adversários no império. Mas não havia decretos imperiais contra o cristianismo nos seus primeiros duzentos anos, nenhuma declaração de ilegalidade, nenhuma tentativa de eliminá-lo por todo o império. Apenas no ano 249 d.C., um imperador romano — no caso, o imperador Décio — instituiu uma perseguição aos cristãos em todo o império. 

Antes de Décio, as perseguições eram questões quase inteiramente locais. Com frequência eram mais resultado da violência de bandos do que oposição “oficial” movida por autoridades regionais. Quando havia oposição oficial, em geral o objetivo era aplacar as multidões, que não aprovavam cristãos no meio delas. Mas o que havia que não pudesse ser aprovado? 

Para os pagãos, muita coisa. Provavelmente, o mais importante, como vimos, é que os pagãos costumavam venerar seus deuses porque se acreditava que os deuses davam às pessoas aquilo de que precisavam e o que queriam na vida: paz, segurança, prosperidade, saúde, comida, bebida, chuva, colheitas, filhos e tudo o mais que tornava a vida possível e com sentido. Não se achava que os deuses pagãos pediam muito em troca. Não rogavam que alguém “acreditasse” neles, por exemplo, e não tinham “leis” complicadas que precisassem ser seguidas. Os deuses mais ou menos exigiam ser venerados de formas adequadas; as pessoas deviam fazer os sacrifícios aceitáveis e tradicionais que havia muito tempo eram parte da veneração e dizer as preces apropriadas a eles. 

Se as pessoas veneravam os deuses, os deuses cuidavam das pessoas. Era um arranjo fácil e útil. Mas o que acontecia quando os deuses não eram venerados, quando eram ignorados ou desprezados? Bem, a situação se complicava. Os deuses podiam tornar a vida infeliz quando irritados; podiam trazer guerra, seca, tragédias naturais, destruição, morte. Como, então, as pessoas reagiriam se algum tipo de tragédia se abatesse sobre uma comunidade? A suposição natural seria pensar que um ou mais deuses estavam com raiva e precisavam ser aplacados. 

Se um grupo na comunidade rejeitava a devida veneração aos deuses, afirmava que estes não existiam, declarava que eram demônios malvados ou apenas se recusava a cumprir as exigências mínimas da veneração pública, esse grupo seria o mais suscetível a ser culpado se uma tragédia se abatesse sobre a comunidade. A Igreja cristã era um grupo assim. Outras religiões seguiam as antigas tradições que tinham sido transmitidas sobre venerar os deuses. Mesmo os judeus eram considerados aceitáveis, embora venerassem apenas seu Deus único. Eram conhecidos por fazer sacrifícios pelo bem-estar do imperador (em vez de a ele), e isso era considerado apropriado. Ademais, sabia-se que suas tradições eram antigas e veneráveis, e eles não faziam mal algum, não se comportavam de formas socialmente inadequadas, e, na medida do possível, cuidavam de si mesmos. Os judeus, portanto, eram considerados uma exceção à regra de que as divindades locais e imperiais precisavam ser veneradas. 

Os cristãos, por outro lado, não eram tratados como exceção. Em sua maioria, eram judeus que pareciam não mais manter os costumes judaicos ancestrais (então, em que sentido eram judeus?) ou gentios, que haviam trocado a veneração dos deuses pela veneração do Deus de Jesus. Os cristãos se recusavam peremptoriamente a venerar os deuses que haviam tornado o Estado grande e que proviam tudo o que era necessário e as coisas boas da vida. Se uma tragédia atingia uma comunidade que abrigava tais cristãos, eles eram o bode expiatório natural para a vingança. Punir os cristãos e recuperar o favor dos deuses — daí as famosas linhas de Tertuliano sobre os cristãos serem submetidos a perseguição sempre que uma tragédia atingia uma comunidade: 

Eles acham que os cristãos são a causa de toda tragédia pública, de todo problema que se abate sobre as pessoas. Se o Tibre enche até a altura das muralhas da cidade, se o Nilo não manda suas águas sobre os campos, se os céus não enviam chuva, se há um terremoto, se há fome ou peste, de imediato se ouve o grito: joguem os cristãos ao leão!142 

Ademais, a recusa cristã a participar da veneração patrocinada pelo Estado costumava ser vista como uma espécie de declaração política de que os cristãos não se preocupavam com o bem-estar do Estado. Isso era considerado antissocial e perigoso. Outros aspectos da religião cristã contribuíam para essa percepção. Para começar, os cristãos veneravam um homem crucificado, ou seja, alguém que tinha sido condenado pelo Estado. Isso não era uma espécie de declaração política de que os cristãos estavam mais ou menos ridicularizando o julgamento do Estado? E mesmo fora isso, não era uma questão de pura insanidade abandonar a comprovada e verdadeira religião do Estado para venerar um criminoso crucificado? 

Outro problema era que, diferentemente do judaísmo, o cristianismo era um fenômeno novo. As pessoas no mundo antigo gostavam da antiguidade, e nada dava mais autenticidade a uma religião ou filosofia do que alegar ter raízes antigas. O velho era venerável; o novo era suspeito. E o que era o cristianismo? Era a veneração de um homem que vivera muito recentemente, em tempos “modernos”. Como isso podia ser verdadeiro? 

Essa nova religião não era apenas vista como perigosa e falsa; também era considerada corrupta e pervertida. Os cristãos não faziam encontros abertos a que todos pudessem ir. Não havia prédios da Igreja abertos na manhã de domingo para qualquer um interessado em aprender sobre a nova fé. As igrejas, nos primeiros duzentos anos, quase sempre se reuniam em casas particulares, e os próprios encontros eram particulares. Somente cristãos iam. Portanto, a religião era vista pelos outros como sendo secreta. E não apenas isso: também havia boatos sobre o que acontecia nesses encontros. 

Para começar, como a maioria dos cristãos era de classes baixas, de trabalhadores, como regra, as reuniões semanais aconteciam ou antes do amanhecer, ou após o pôr do Sol. Dizia-se que essas

reuniões noturnas aconteciam entre “irmãos” e “irmãs”, que “amavam uns aos outros” e “cumprimentavam um ao outro com um beijo”. E eles tinham “banquetes de amor” periódicos nos quais celebravam o amor de seu Deus por eles e seu amor uns pelos outros. Se se queria começar um boato sobre os primeiros cristãos, o que melhor do que isso? Os cristãos, cujos encontros não eram públicos, eram vistos como participando de atividades licenciosas e incestuosas, irmãos e irmãs se refestelando, provavelmente se embriagando e promovendo banquetes de amor no escuro. 

Pior quer isso, contava-se que, nesses banquetes de amor, os cristãos comiam a carne do Filho de Deus e bebiam seu sangue. Comer a carne e beber o sangue de uma criança? Além de incesto, acreditava-se que os cristãos cometiam infanticídio e canibalismo, matando bebês e os comendo. 

Essas acusações podem soar delirantes, mas costumavam ser feitas aos cristãos por seus inimigos pagãos. Em uma antiga fonte cristã chamada Octavius, escrita pelo autor do século III Minucius Felix, lemos sobre um pagão que expressa seu desgosto com o que acontece nas cerimônias noturnas cristãs. Essa visão, segundo Minucius Felix, deriva do famoso estudioso pagão Fronto, tutor do imperador Marco Aurélio: 

Em um dia especial, eles [isto é, os cristãos] se reúnem para uma festa com todos os seus filhos, irmãs, mães — todos os sexos e todas as idades. Lá, aquecidos com o banquete, após tanta comida e bebida, eles começam a queimar com paixões incestuosas. Eles provocam um cachorro amarrado à luminária para saltar na direção de um resto de comida que jogaram fora do alcance de sua corrente. Assim a luz é virada e apagada, e com ela o conhecimento mútuo de seus atos; no desavergonhado escuro, com indizível lascívia, eles copulam em uniões aleatórias, todos igualmente culpados de incesto, alguns por ação, mas todos por cumplicidade.143 

Entretanto, essas atividades semanais são pouco em comparação com suas refeições sagradas periódicas, celebradas com os novos convertidos à fé: 

A notoriedade das histórias contadas sobre a iniciação de novos recrutas é comparável a seu horror medonho. Um pequeno bebê é coberto de farinha, sendo o objetivo enganar o desatento. Ele é então oferecido à pessoa a ser admitida em seus ritos. O recruta é conclamado a desferir golpe nele — ele parece inofensivo por causa da cobertura de farinha. Assim o bebê é morto com sons que permanecem inaudíveis e escondidos. É o sangue dessa criança — estremeço ao mencionar —, é esse sangue que eles lambem com lábios sequiosos; esses são os membros que distribuem ansiosos; essa é a vítima com a qual selam seu pacto; é pela cumplicidade nesse crime que eles se comprometem com o silêncio mútuo; esses são seus ritos, mais ofensivos que todos os sacrilégios combinados.144 

Esses são os tipos de acusações dos quais os cristãos tinham de se defender. Se os bandos locais acreditavam nessas coisas, não espanta que se opusessem aos cristãos, algumas vezes com violência. 

E se as massas eram contra as pessoas que participavam da nova religião, que escolha tinham os funcionários locais senão também se opor a elas? As perseguições locais aos cristãos eram concebidas menos para puni-los por seus crimes e mais para fazê-los renunciar à religião e retornar ao verdadeiro rebanho. Por isso, em quase todos os primeiros relatos dos mártires cristãos, os juízes responsáveis pelos processos abertos contra cristãos apelaram a eles para que renegassem sua fé.145 O objetivo dessas autoridades não era ferir os cristãos, mas convencê-los a deixar de ser cristãos. Os cristãos eram considerados uma ameaça à saúde política do império, no sentido de que os deuses podiam ficar aborrecidos e se vingar, e ao tecido da sociedade, por causa de seu comportamento totalmente imoral. 

Os cristãos, claro, se defendiam de todas essas acusações de várias formas. A partir da segunda metade do século II, intelectuais pagãos começaram a se converter a essa nova fé. Era uma nova variedade de cristão: alfabetizado, bastante educado, formado em habilidades retóricas, capaz de sustentar discussões filosóficas e colocá-las no papel, e disposto a defender a fé publicamente. Esses defensores intelectuais são em geral chamados de “apologistas”, termo derivado da palavra grega apologia, significando “defesa racional”. Entre os mais famosos apologistas cristãos dos séculos II e III, estiveram Justino Mártir, de Roma; Atenágoras, de Atenas; Tertuliano, de Cartago; e Orígenes, de Alexandria. 

Esses autores diziam a qualquer um interessado em ouvir que os cristãos não se opunham ao Estado, mas sim o apoiavam inteiramente. O Estado sobrevivera e vicejara não por causa de oferendas feitas a ídolos mortos, mas por causa de orações feitas ao Deus vivo, que tinha poder e soberania sobre tudo. A veneração de um homem crucificado não era uma declaração de oposição ao Estado; ao contrário, os representantes do Estado — Pôncio Pilatos, por exemplo — haviam declarado enfaticamente que Jesus não era culpado. A morte de Jesus foi uma malversação da Justiça perpetrada pelos judeus recalcitrantes que haviam rejeitado seu próprio messias e, portanto, seu próprio Deus. Consequentemente, Deus os rejeitara em favor de seu povo fiel, os cristãos. Portanto, em vez de ser uma religião “nova”, o cristianismo era bastante antigo. Na verdade, era a verdadeira expressão do antigo judaísmo, uma religião mais antiga que qualquer coisa na filosofia ou no mito pagãos. 

Os melhores filósofos pagãos, segundo alguns dos apologistas, partilhavam visões deixadas mais claras pela mensagem cristã do único Deus verdadeiro, que se manifestara em seu filho Jesus. O próprio Jesus ensinara princípios morais bastante elevados, e seus seguidores eram muito mais éticos que qualquer outro. Claro que eles não assassinavam bebês; eles nem permitiam o aborto. Claro que não praticavam canibalismo; eram sóbrios no que comiam e não se permitiam glutonaria ou embriaguez. Claro que não praticavam incesto; seu amor pelo próximo era casto. Na verdade, muitos deles praticavam a castidade por toda a vida, mesmo casados. Claro que não defendiam fornicação ou adultério; para eles, não só era errado fazer sexo com alguém que não seu cônjuge, como também era um pecado apenas desejar isso. 

Em síntese, para os apologistas, o cristianismo era uma religião antiga, filosoficamente respeitável e muito moral, que se opunha às falsas religiões de pagãos e judeus. Essa mensagem acabou sendo aceita, à medida que cada vez mais pagãos se convertiam. No fim, assim que o cristianismo se tornou a religião do império, a visão dos apologistas seria aceita como óbvia e senso comum. Mas, antes disso, os cristãos teriam de lutar por suas crenças e práticas religiosas. E uma das formas pelas quais combateram foi por seus esforços literários, incluindo a produção de falsificações.

ALGUMAS FALSIFICAÇÕES RESULTANTES 

Várias falsificações já vistas 

Algumas das falsificações que já estudamos serviram também para a defesa apologética da fé contra ataques pagãos. Preciso destacar aqui um ponto que ainda não havia apresentado. Seria um erro achar que um autor teria produzido uma falsificação apenas com um objetivo. Não é assim em outros livros, e com certeza não é assim no caso de falsificações. 

Este livro que estou escrevendo agora: qual é o objetivo? Na verdade, há muitos objetivos. Quero informar a meus leitores sobre um importante fenômeno literário antigo. Quero corrigir equívocos que outros estudiosos cometeram ao discutir esse fenômeno. Quero que os leitores reflitam mais profundamente sobre o papel das mentiras e do embuste na religião cristã. Quero mostrar a ironia no fato de que mentiras e embustes foram historicamente usados para estabelecer a “verdade”. Quero que meus leitores vejam que pode haver falsificações no Novo Testamento. Quero contar histórias interessantes sobre escritos da Antiguidade intrigantes e relativamente desconhecidos. Quero divertir meus leitores. Quero conseguir muitas coisas. Praticamente nenhum escrito tem apenas um objetivo. Da mesma forma, ocorria com as falsificações. Como regra, elas eram multifuncionais. 

Leve em conta, por exemplo, o conjunto de escritos que chamei de “Evangelhos de Pilatos”. Eles servem para mostrar que foram os judeus os responsáveis pela morte de Jesus. Eles o fazem enfatizando, com grande esforço, que o governador romano Pôncio Pilatos declarou Jesus inocente de todas as acusações. Essa ênfase funciona como uma espécie de antijudaísmo cristão, permitindo que leitores cristãos concluam que os judeus eram malvados assassinos de Cristo. Mas também serve para ajudar os cristãos a se defenderem dos ataques feitos a eles pelos pagãos. Em resposta aos pagãos, que afirmavam que Jesus era um criminoso condenado pelo Estado romano, os cristãos podiam argumentar que isso não era verdade, que o governador nomeado da Judeia considerou Jesus inocente e só o crucificou porque os maldosos judeus o obrigaram a isso. Jesus não era um criminoso, como não são seus seguidores. 

Ou considere as cartas entre o apóstolo Paulo e o filósofo romano Sêneca. De certo modo, essas cartas satisfaziam a curiosidade cristã. Como o mais significativo teólogo da jovem religião podia não ser conhecido pelas outras grandes mentes da época? Essas cartas mostravam que, na verdade, Paulo era conhecido e respeitado pelo maior pensador de todos, o incomparável Sêneca. Porém, mais do que satisfazer a curiosidade, essas cartas desempenhavam um papel apologético de mostrar que, longe de ser uma religião atrasada de camponeses pobres, o cristianismo foi desde o início uma tradição filosófica muito respeitável. Quão respeitável ela era? O maior filósofo romano do século I reverenciou o apóstolo Paulo e louvou suas visões extraordinárias.

De forma diferente, algumas das mais antigas epístolas cristãs — as do Novo Testamento, supostamente de Pedro e Paulo — podem muito bem ter servido para tentar desviar ataques de antagonistas pagãos. Peguemos, por exemplo, 1 Pedro. Eis uma carta em que um autor pseudônimo alegando ser Simão Pedro conforta cristãos da Ásia Menor que sofrem. Mas a carta não busca apenas consolar; também busca fornecer uma precisa defesa contra as acusações feitas aos cristãos que criaram as condições para o sofrimento. 

Por exemplo: os cristãos são vistos como contrários ao governo, então o autor conclama seus leitores: 

Por amor do Senhor, sede submissos, pois, a toda autoridade humana, quer ao rei como soberano, quer aos governadores como enviados por ele para castigo dos malfeitores e para favorecer as pessoas honestas. Porque esta é a vontade de Deus, que, praticando o bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos. (2,13-15) 

Os pagãos também acusam os cristãos de levarem vidas flagrantemente imorais, então o autor conclama: 

Vos abstenhais dos desejos da carne, que combatem contra a alma. Comportai-vos nobremente entre os pagãos. Assim, naquilo em que vos caluniam como malfeitores, chegarão, considerando vossas boas obras, a glorificar a Deus no dia em que Ele os visitar.” (2,11-12) 

Pagãos alegam que os cristãos são socialmente danosos, por isso o autor diz a escravos para serem submissos a seus mestres; esposas, submissas a seus maridos, a maridos, para tratarem as esposas com consideração; e a todos, para se comportarem bem: “Não pagueis mal com mal, nem injúria com injúria; ao contrário, abençoai.” (3,9) Como essas admoestações supostamente vinham do próprio Pedro — o mais importante líder dos primórdios da Igreja —, ganham especial importância como representando o cerne da mensagem cristã desde o princípio. 

Havia uma função diferente para outra falsificação que já analisamos, o Evangelho de Nicodemos. Na Antiguidade, esse livro foi algumas vezes chamado de Atos de Pilatos, já que sua primeira metade registra um relato da morte de Jesus do ponto de vista do próprio governador romano, Pôncio Pilatos. Esse relato, claro, é muito simpático a Pilatos e Jesus. Jesus é inocente das acusações feitas a ele, e Pilatos proclama repetidamente sua inocência, reconhecendo o caráter divino dos milagres e da vida de Jesus, enfim ordenando sua execução só após ser forçado a isso pelos adversários judeus de Jesus. 

Podemos identificar uma razão mais específica para a redação desse livro. Segundo Eusébio, no ano 311, foi forjado um livro pagão anticristão chamado Atos de Pilatos. Esse escrito apresentava Jesus de forma extremamente negativa, indicando que ele merecera o que tivera, como visto pelos olhos de Pôncio Pilatos. O imperador romano Maximino Daia ficou tão impressionado com o livro que fez com que fosse exposto em lugares públicos por todo o império e decretou que fosse usado nas escolas para ensinar as crianças a ler.146

Portanto, esse Atos de Pilatos pagão era um livro bastante popular e disseminado; infelizmente, não foi preservado. Será por acaso que, alguns anos depois, tenha aparecido uma versão alternativa dos Atos de Pilatos, na qual Jesus é retratado como inocente, não culpado, e Pilatos apoia Jesus declarando-o divino em vez de se opor a ele e declará-lo merecedor da pena de morte? Na opinião de uma série de estudiosos, o Atos de Pilatos que temos hoje (também conhecido como Evangelho de Nicodemos) foi produzido para se contrapor ao Atos de Pilatos pagão, como forma de alterar os registros. 

Os oráculos sibilinos 

Na Roma antiga, acreditava-se que, na Antiguidade distante, existira uma profetisa conhecida como Sibila. Ela tivera uma vida muito longa — segundo o poeta Ovídio, vivera mil anos.147 De acordo com uma venerável tradição, Sibila escrevera longos poemas, proféticos por natureza, concebidos não apenas para contar o futuro, mas também para dizer aos governantes de Roma o que fazer em momentos de crise. Os vários escritos atribuídos a Sibila foram reunidos ao longo dos anos e guardados em um dos grandes espaços sagrados de Roma, o templo de Júpiter Capitolino. Um grupo de sacerdotes, mais tarde chamado de “Os quinze”, foi nomeado para preservar e interpretar esses escritos na medida da necessidade e segundo a determinação do Senado romano. Alguns registros indicam que os oráculos sibilinos, como eram chamados, foram consultados cerca de cinquenta vezes entre 500 a.C. e 100 a.C., em épocas de peste, fome ou prodígios (isto é, quando parecia haver algum acontecimento sobrenatural incomum), para saber o que a profetisa havia dito em relação ao que deveria ser feito a respeito.148 

Houve uma grande tragédia em 82 a.C., quando o templo de Júpiter se incendiou, queimando com ele os livros dos oráculos. O Senado determinou que outras cópias dos oráculos fossem coletadas em diversos lugares, em especial na cidade de Eritreia, e foi feita uma tentativa de reconstituir os escritos originais. Eles também acabaram destruídos. Hoje conhecemos apenas dois breves ditos que provavelmente pertenceram a esse segundo conjunto de oráculos sibilinos, e nenhum do primeiro. 

A tradição de que um dia vivera uma profetisa pagã capaz de prever o futuro era tão forte que a tentação de criar oráculos ou profecias em seu nome se revelou irresistível para povos posteriores, em especial os judeus, e depois deles os cristãos. Como já destaquei, os judeus eram aceitos por todo o império. Ainda assim, eles às vezes tinham de lutar por seu direito de coexistência com os pagãos e defender sua religião contra ataques pagãos. Forjando oráculos em nome de Sibila, os judeus podiam alegar que sua religião era muito antiga, como atestado pela mais antiga das profetisas, e compatível com as melhores religiões pagãs. 

Vários oráculos sibilinos judaicos falsificados foram reunidos em uma coletânea, mais tarde assumida por autores cristãos desconhecidos.149 Esses autores modificaram alguns dos oráculos, inserindo neles suas próprias “profecias” cristãs; também acrescentaram à coletânea alguns oráculos inteiramente novos. Essa versão cristianizada dos oráculos sibilinos foi transmitida ao longo dos séculos, e ainda temos hoje 12 dos livros. 

Os escritos judaicos e cristãos falsificados em nome de Sibila foram escritos em um período de cerca de setecentos anos, e enfim reunidos por um acadêmico cristão bizantino em algum momento do século VI d.C. Por causa de problemas no modo como os livros foram copiados ao longo dos séculos, os 12 livros são numerados um pouco fora de sequência, como livros 1-8 e 11-14. Alguns deles são judeus; outros são judeus com extensas inserções cristãs (por exemplo, livros 1-2 e 8); e outros são exclusivamente cristãos (livro 6 e provavelmente 7). Os trechos cristãos dos oráculos falsificados em nome da Sibila preveem o advento de Cristo e atacam judeus por não acreditarem naquele que vinha. 

Somente para dar um exemplo de como funcionam essas falsificações apologéticas, tomemos o primeiro livro, que é em grande medida judaico até o trecho final, que contém uma inserção cristã. O livro começa com a declaração da Sibila: “Começando na primeira geração de homens articulados até a última, irei profetizar tudo por vez, coisas como foram antes, como são e como serão no mundo.”150 Eis, portanto, uma confiável antiga profetisa pagã que contará o futuro. Após narrar a criação do mundo e depois todas as gerações da raça humana, Sibila continua, na inserção cristã, indicando o seguinte: 

Então de fato o filho do grande Deus virá, encarnado, semelhante a homens mortais na Terra. [...] Ele mostrará vida eterna para homens escolhidos. Ele irá curar os doentes e todos que são defeituosos, tendo fé nele. Os cegos verão, e os aleijados andarão. Os surdos ouvirão; aqueles que não podem falar falarão. 

Contudo, diz ela, “Israel, com lábios abomináveis e saliva venenosa, agredirá esse homem”. Ela prossegue descrevendo a morte e ressurreição de Cristo e a destruição final dos “hebreus” pelo mal cometido contra Cristo. 

Uma das passagens mais fortes nos oráculos sibilinos preservados é o livro 6, bastante breve, que representa um hino a Cristo: “Falo de meu coração sobre o grande famoso filho do Imortal, a quem o mais Alto, seu criador, deu um trono antes de nascer.” Prossegue falando sobre sua vinda gloriosa ao mundo, sua rejeição e as consequências para Israel, para quem há grande sofrimento reservado: 

Pois com sua mente hostil não perceberam seu deus quando ele se colocou diante de olhos mortais. Mas vocês o coroaram com uma coroa de espinhos e destilaram terrível bile para insulto e bebida. Isso causará grandes sofrimentos a vocês. 

Possivelmente a passagem mais intrigante dos oráculos sibilinos está na inserção cristã no livro 8, em que um longo trecho de profecia forma um acróstico. Tomando-se a primeira letra de cada linha e as colocando em sequência elas formam as palavras gregas “Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador, Cruz”. Esse tipo de acróstico deveria ter significado simbólico oculto. Entre outras coisas, ele mostra que houve muita preparação na composição do poema, ainda mais marcante pelo fato de que foi supostamente criado por uma profetisa cristã que viveu séculos antes do nascimento de Jesus.

Os oráculos sibilinos cristãos eram bastante conhecidos na Antiguidade. Já são citados por Justino Mártir no século II como prevendo as verdades do cristianismo.151 Como se pode imaginar, pagãos interessados em atacar os cristãos sabiam muito bem que essas “previsões” oraculares do advento de Cristo, suas atividades na Terra, sua rejeição pelos judeus e sua vitória não eram originalmente de uma antiga Sibila, tendo sido inseridas nesses escritos ou criados por autores cristãos.152 Esse é um caso em que falsificadores desconhecidos entre os cristãos foram corretamente considerados suspeitos. Eles também, claro, foram condenados, como quase sempre acontecia com os falsificadores na Antiguidade. 

CONCLUSÃO 

Os cristãos dos três primeiros séculos frequentemente se sentiam atacados por causa de sua fé, e com bons motivos. Eles estavam sendo atacados. Desde os primeiros anos da Igreja, judeus não cristãos rejeitaram a mensagem cristã de que Jesus era o messias judeu enviado para cumprir as Escrituras judaicas, e isso levou não apenas a sérios debates sobre a correta interpretação das Escrituras, mas também a séria animosidade. A animosidade aumentou à medida que os judeus cristãos sentiam que seus adversários judeus não cristãos se recusavam a escutar a razão e eram teimosos ou cegos. Com o cristianismo crescendo em número e poder, as tensões aumentaram. Enfim, o cristianismo prevaleceria, e, quando isso aconteceu, tornou-se uma luta injusta. Toda a horrorosa história do antijudaísmo cristão resultou disso. 

Enquanto, por um lado, os cristãos estavam brigando com seus vizinhos judeus, por outro, tinham de desviar os ataques dos pagãos. Muito mais que uma perseguição oficial, era a oposição local aos cristãos por suas antigas famílias, antigos amigos e vizinhos — e eventualmente bandos — que causava mais problemas aos cristãos nos primeiros séculos, antes de os imperadores romanos patrocinarem as perseguições por todo o império em meados do século III. Muitos pagãos viam os cristãos como politicamente perigosos, socialmente daninhos e flagrantemente imorais. Os cristãos tinham de se defender dessas acusações mostrando que eram membros obedientes do Estado, socialmente coerentes e conservadores, e os seres mais morais do planeta. 

Como vimos, as duas vertentes do contra-ataque cristão eram intimamente relacionadas. Ao atacar os judeus por rejeitar seu próprio messias, os cristãos, ao mesmo tempo, conseguiam declarar a inocência de Jesus e seus seguidores para funcionários do governo e outros observadores pagãos interessados. Alegando serem os verdadeiros representantes da antiga religião judaica, os cristãos não só tentavam desbancar os judeus, mas também atribuir uma noção de antiguidade a suas próprias alegações religiosas; eles eram tão antigos quanto Moisés, que era muito mais antigo que qualquer legislador ou filósofo pagão. Pintando os judeus como imorais que odiavam Deus, os cristãos conseguiam se apresentar como seres morais superiores que não ameaçavam a ordem social.

Nesse redemoinho de ataque e contra-ataque, alguns autores cristãos introduziram a arma da falsificação literária. O objetivo final da Igreja era se estabelecer como verdade e mostrar que, consequentemente, todas as outras religiões eram falsas. Então, mais uma vez temos uma das grandes ironias da religião cristã inicial: alguns de seus principais porta-vozes parecem não ter tido qualquer problema em mentir para promover a fé, enganar para estabelecer a verdade.

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