2) Capítulo Dois - Falsificações em nome de Pedro

Capítulo Dois - Falsificações em nome de Pedro

     Até este ponto em minha discussão sobre antigas mentiras, logros e falsificações, tenho usado o termo “verdade” em um sentido muito simples, significando algo como “informação correta”. Mas, na realidade, a verdade e seu oposto, a falsidade, são complexos. Acho que, no fundo, todos reconhecemos isso, mesmo que não tenhamos pensado muito a respeito. Quando assistimos a um filme, com frequência perguntamos: “Essa é uma história verídica?” Com o que queremos dizer: “Isso é algo que de fato aconteceu?” Se a resposta é sim, de algum modo, nos sentimos tranquilizados e confortados ao saber que os acontecimentos se deram, e, portanto, como história, ela é mais “verdadeira” que uma apenas inventada. Mas, mesmo quando isso acontece, nunca achamos que tudo no filme — todos os personagens, o diálogo, as cenas isoladas e assim por diante — é absoluta e completamente do modo como “realmente” aconteceu. Permitimos uma espécie de licença poética de distorção, mesmo reconhecendo que a história é de algum modo “verdade”. 

Seria possível defender que um filme pode ser verdade em um sentido mais profundo, mesmo sendo sobre algo que nunca aconteceu. Esse foi meu ponto de vista por muitos anos, e o usei para enlouquecer meus filhos quando eram pequenos. Estávamos assistindo a um filme e eles perguntavam: “Pai, é uma história real?” Eu quase sempre dizia sim. Mas eles lembravam que costumo ter uma visão diferente das coisas, então faziam a pergunta seguinte: “Não, pai, quero saber se isso realmente aconteceu.” Eu dizia não, e eles continuavam confusos. 

Assim como alguns dos meus leitores podem estar. Como uma história pode ser “verdadeira” se não aconteceu? Na verdade, há todos os tipos de histórias verídicas que nunca aconteceram, como todos admitiriam, creio, se pensassem um pouco sobre isso. Quando tento explicar a meus alunos, costumo usar a história de George Washington e a cerejeira. 

HISTÓRIAS VERÍDICAS QUE NÃO ACONTECERAM

Todo aluno americano dos primeiros anos conhece a história da cerejeira. Quando menino, George Washington, por motivos desconhecidos, derrubou a machadadas a cerejeira do pai. Quando o pai chegou em casa, olhou a árvore e perguntou: “Quem derrubou minha cerejeira?” O pequeno George respondeu: “Não posso contar uma mentira. Fui eu.” Do modo como a história costuma ser contada, não descobrimos o que aconteceu a seguir — o pequeno George foi punido? A história termina com a frase de George.45 

Sabemos que a história nunca aconteceu, porque a pessoa que a inventou depois admitiu tê-lo feito. Era um ministro cristão chamado Mason Locke Weems, mais conhecido como Parson Weems. Mais tarde, biógrafo de Washington, Parson Weems confessou ter inventado a história, embora um dia houvesse alegado tê-la recebido de uma testemunha com credibilidade (um belo paradoxo: ele “contou uma mentira” nessa história sobre não mentir). 

Eis, então, uma história que sabemos ser não histórica. Mas ainda a contamos a nossos filhos. Por quê? Não porque estejamos tentando ensinar a eles os fatos da história colonial, mas porque achamos que a história transmite uma “verdade” que desejamos que nossas crianças aprendam. A alegação de verdade da história, na realidade, opera em vários níveis. Em um nível, a história é uma bela peça publicitária para os Estados Unidos. Quem foi George Washington? O pai da nação. Que tipo de pessoa ele era? Um homem honesto, que nunca contaria uma mentira. Mesmo? Quão honesto ele era? Bem, certo dia, quando era criança... A conclusão é clara. Este país é baseado em honestidade. Este país é honesto. Este país não é capaz de contar uma mentira. Ou é o que pretende a história. 

No entanto, a história de George Washington e a cerejeira também funciona em outro nível, e é provavelmente por isso que a maioria dos pais fica contente pelos filhos aprenderem. É uma história de moral pessoal e responsabilidade. Contei a história aos meus filhos porque desejava que eles fossem como o pequeno George. Mesmo se fizessem algo errado, queria que fossem honestos e dissessem a verdade. É melhor ser verdadeiro e enfrentar as consequências do que levar uma vida de desonestidade. É melhor não contar uma mentira. 

Minha tese é que a ficção, mesmo histórica, pode, em certo sentido, transmitir a “verdade” ainda que seja uma coisa que “não aconteceu”. A verdade é mais do que informação correta. 

Isso, porém, não significa que não exista algo como falsidade. Exatamente o contrário, há muitos tipos de falsidade: informação incorreta, embuste completo, histórias que transmitem mensagens que não aceitamos como “verdade” com base em nossa compreensão do mundo.46 Caso eu lesse uma história sobre a infância de Josef Stalin que insistisse em sua disposição inerentemente doce, sua natureza gentil e amável e sua profunda preocupação com o bem-estar dos outros, diria que a história é falsa. 

Os povos antigos também tinham uma ideia mais sutil sobre verdade e falsidade; também tinham histórias que aceitavam como “verdadeiras” em certo sentido sem pensar que de fato aconteceram.47 A maior parte dos estudiosos hoje reconhece que a maioria das pessoas educadas na Grécia e na Roma antigas não acreditava que os mitos sobre os deuses haviam acontecido historicamente. Eram histórias com o objetivo de transmitir alguma espécie de compreensão verdadeira do reino divino e da relação dos humanos com ele. E os antigos tinham seus equivalentes à ficção moderna. É verdade, como enfatizaram alguns estudiosos, que as noções modernas de ficção são muito mais sofisticadas e sutis que qualquer coisa que se possa encontrar na Antiguidade. Mas, além de mitos, os povos antigos tinham poemas épicos, lendas e romances, que de muitas maneiras correspondiam às formas de narrativa ficcional que temos hoje. As pessoas não contavam e recontavam, liam e recitavam essas formas de ficção apenas por achar que eram verdade, mas, em grande medida, pela mesma razão que lemos ficção hoje: por diversão, para aprender algo, para ajudá-los a compreender melhor a si mesmos e a seu mundo. 

A noção de “ficção” é muito interessante. Se lemos um livro que alega ser uma biografia autorizada de Ronald Reagan, esperamos que ela se prenda aos fatos e não transmita informações historicamente incorretas. Mas, se lemos um romance sobre um presidente dos Estados Unidos nos anos 1980 — um livro que se anuncie como pura ficção —, podemos esperar alguma dose de verossimilhança histórica (o presidente não seria mostrado navegando na internet ou verificando sua conta no Facebook), mas não esperamos receber fatos históricos reais sobre uma pessoa histórica real. Os antigos equivalentes à ficção moderna funcionavam da mesma forma. Os leitores esperavam que a narrativa fizesse algum sentido histórico — ou seja, fosse plausível —, mas não que correspondesse aos fatos historicamente reais. 

A diferença entre uma biografia moderna e um romance moderno, claro, é uma questão de gênero literário. Os estudiosos têm longos e demorados debates sobre o que de fato significa a ideia de “gênero”, mas, para nossos propósitos, acho que uma descrição geral e simples será suficiente. Um gênero é um “tipo” de escrita que se encaixa em certas formas esperadas. Um conto, por exemplo, é curto; um romance é mais longo. Ambos têm personagens e trama, e outras características partilhadas que os tornam diferentes de um haicai. Um poema humorístico tem rimas inteligentes e um final surpreendente. O verso livre não tem nem um nem outro, mas se vale da profundidade da linguagem para transmitir sentido. E assim por diante. As características de cada gênero representam uma espécie de acordo tácito entre autor e leitores. É quase um acordo contratual pelo qual o autor fornece o que se espera desse tipo de escrita, e os leitores não podem esperar nada além do que costuma acontecer nesse tipo de escrita. 

No que diz respeito à ficção, em quase todas as suas formas, os leitores concordam em suspender o julgamento da precisão histórica dos detalhes da narrativa, ainda assim esperando que o relato seja historicamente plausível.48 A razão pela qual a ficção funciona é que, para serem entretidos, os leitores estão dispostos a fazer esse acordo tácito com o autor. 

Porém, no que diz respeito a biografias ou escritos históricos, os leitores não fazem esse acordo. Nesse caso, o autor concorda em se limitar aos fatos históricos na medida do possível, e os leitores esperam que ele faça isso. Qualquer quebra desse contrato é vista como uma violação das regras, e condenada. 

Na escrita histórica antiga, a questão era um pouco mais complicada em grande parte porque na Antiguidade não havia as ferramentas de pesquisa que temos hoje: acesso amplo a fontes confiáveis, copiosos registros escritos, bases de dados, sistemas de recuperação de dados, as possibilidades dadas a nós pelos meios de comunicação de massa e eletrônicos. Os antigos historiadores tinham de fazer o melhor possível para montar uma narrativa plausível sobre acontecimentos passados. De fato, era muito difícil oferecer um relato “preciso”, embora a maioria dos historiadores tentasse. Isso era um problema mais óbvio no registro das palavras exatas ditas por alguém que viveu muito tempo antes. Algumas das melhores histórias da Antiguidade estão repletas de discursos feitos pelos principais personagens. Mas, se os acontecimentos se deram décadas ou mesmo séculos antes, em uma era anterior aos gravadores ou mesmo estenógrafos e reportagem diária, como o historiador poderia saber o que o personagem realmente disse? Não havia como saber. 

Por essa razão, um historiador soberbo como Tucídides, do século V a.C., afirma, de modo explícito, que compôs ele mesmo os discursos. Que escolha tinham os antigos historiadores? O melhor que podiam fazer era inventar um discurso que parecesse adequado à personalidade do orador e à ocasião e confiar em que essa era uma aproximação mais ou menos fiel do que de fato foi dito. Não havia como mostrar se o historiador acertara. Mas leitores educados notaram que era isso o que os historiadores estavam fazendo, e mais uma vez houve uma espécie de acordo tácito entre autor e leitores; o autor apresentaria sua melhor aposta do que um orador dissera e os leitores aceitariam isso pelo que era: um bom palpite. 

Alguns estudiosos pensaram que a falsificação era como isso, uma espécie de ficção comparável à    invenção dos discursos em uma história, na qual o autor real e os leitores reais concordavam em não levar a sério o falso nome ligado a um escrito. Como demonstrei, acadêmicos recentes que estudaram as antigas discussões sobre falsificação indicam que essa visão não é de modo algum correta. Falsificações eram textos literários nos quais o autor adotava um tipo de ficção sem a permissão dos leitores. E os leitores, quando descobriam isso, não apreciavam. Os antigos tratavam narrativas históricas, tratados, cartas e outros textos falsificados como “escritos falsos” e “mentiras”, não como algum tipo de ficção inofensiva e inocente. Por isso, os antigos se interessavam tanto em ver se livros eram “filhos legítimos” dos autores nomeados ou “ilegítimos” (notha), não verdadeiramente pertencendo à pessoa indicada como sendo a autora. 

Portanto, também os antigos reconheciam a diferença entre relatos ficcionais inventados e narrativas históricas. Diferentemente de Tucídides, alguns historiadores, como Luciano de Samósata e Políbio, insistiam bastante em que narrativas históricas deveriam indicar apenas o que de fato acontecera. Historiadores não deveriam inventar casos nem os discursos feitos pelos personagens em suas histórias. Como afirma sucintamente Políbio, um historiador grego do século II a.C. que escreveu sobre a ascensão de Roma à potência: o historiador deveria “apenas registrar o que realmente aconteceu e o que realmente foi dito”. Para Políbio, o historiador é diferente do “poeta trágico” (isto é, o autor de drama ficcional): 

O poeta trágico deve excitar e encantar sua plateia por um momento pela verossimilhança das palavras que coloca na boca de seus personagens, mas é tarefa do historiador instruir e convencer, o tempo todo, estudantes sérios interessados pela verdade dos fatos e pelos discursos que conta.49

A razão pela qual um historiador como Políbio tinha de insistir tanto nesse ponto, claro, é que outros historiadores faziam o que ele criticava, inventando discursos e mesmo narrativas que consideravam adequadas a seus relatos “históricos”. Com certeza é verdade que as pessoas em geral, não apenas os historiadores profissionais, inventavam muitos casos sobre personagens históricos. Em círculos cristãos, isso pode ser visto em quase todo personagem histórico de que temos conhecimento: Jesus, Paulo, Pedro e outros membros do grupo apostólico. Neste capítulo, como estou interessado em livros que alegam terem sido escritos por Pedro, mas, na verdade, foram falsificados em seu nome, vamos começar avaliando alguns dos casos inventados sobre ele antes de examinar os livros falsamente atribuídos a Pedro. 

HISTÓRIAS SOBRE PEDRO 

Temos uma série de livros dos primórdios do cristianismo que contam histórias sobre Pedro. Eles são quase inteiramente “feitos” por um ou outro contador de histórias cristão. Segundo minha definição, essas histórias não são falsificações; não são relatos que alegam falsamente terem sido escritos por Pedro. Em vez disso, poderiam ser chamados de “invenções”, histórias criadas sobre Pedro.50 

Uma das mais interessantes, por acaso, aparece em um documento falsificado. Essa falsificação, contudo, não é em nome de Pedro, mas de Tito, o companheiro de Paulo. O Novo Testamento contém uma epístola supostamente de Paulo a Tito, que, no capítulo 3, argumento ser pseudônima (isto é, uma falsificação). Cerca de quatrocentos anos depois, surgiu outra carta, dessa vez alegando ter sido escrita por Tito. É uma carta intrigante, porque argumenta com virulência que a única forma de conseguir a vida eterna é levando uma vida ascética, casta. Ou, de forma mais direta, a pessoa só pode ter a salvação se privando de sexo. No contexto da discussão do falsificador, ele cita uma história sobre Pedro que serve para ilustrar seu ponto de vista. 

Um camponês leva a Pedro sua filha virgem para ser abençoada. Pedro faz uma oração sobre a garota, pedindo a Deus que faça o que for melhor para ela. Ela cai morta. O camponês fica compreensivelmente perturbado, mas o autor da história o chama de “desconfiado”, já que não acredita que o que aconteceu é do melhor interesse da garota. Ele implora a Pedro que devolva a vida à filha, e Pedro o faz. Mas, alguns dias depois, um visitante que diz ser cristão chega para uma estadia com o camponês e seduz a filha dele. Eles fogem juntos e nunca mais são vistos novamente. E assim termina a história. Nesse contexto, a mensagem é bastante clara: é muito melhor estar morto do que ser apanhado em desejo sexual. 

Uma narrativa similar pode ser encontrada em uma coletânea de histórias sobre as atividades missionárias de Pedro, provavelmente escritas no segundo século cristão. O relato, chamado Atos de Pedro, descreve os grandes milagres que Pedro realizou após a ressurreição e ascensão de Jesus, demonstrando o poder de seu Senhor ascendido e convertendo inúmeras pessoas à fé.

Em uma das histórias, Pedro está falando a um grupo de cristãos em sua casa em um domingo; levaram um grupo de doentes para que os curasse. Mas alguém na multidão pergunta a Pedro por que ele não cura a própria filha, que está deitada em um canto, paralisada. Pedro garante a seus convidados que Deus tem o poder de curar a garota caso escolha fazê-lo. Para provar, ele ordena que a garota se levante e ande naturalmente. E ela o faz. Depois ordena que retorne a seu canto, paralisada. A multidão fica ao mesmo tempo impressionada e perturbada. 

Pedro então conta a história de sua filha. Quando ela era jovem, ele soube em uma visão de Deus que, se permanecesse saudável, desencaminharia muitos; ao que parece, ela era bonita quando criança, e, quando adulta, seduziria os homens para que se deitassem com ela. Quando tinha dez anos, um vizinho tentou seduzi-la, mas antes que pudesse deitar-se, ela ficou paralisada, por misericórdia de Deus. O vizinho ficou cego por seus atos até ser curado por Pedro e convertido à fé em Cristo. Mas a garota tivera de permanecer paralisada para não desencaminhar outros. Mais uma vez aqui a mensagem é absolutamente clara: o sexo é perigoso e deve ser evitado a qualquer custo, mesmo que isso signifique ser um inválido por toda a vida. 

Atos de Pedro é construído em torno de uma série de disputas entre Pedro, o representante do verdadeiro Deus, e um herege chamado Simão, um mágico que recebeu poderes do diabo. Ambos podem fazer milagres, e cada um tenta convencer as multidões de que ele, e não o outro, está do lado da verdade. Um dos milagres envolve Pedro e um atum defumado. É dito que Pedro tenta convencer as multidões, com pouco sucesso. Mas está de pé junto a uma peixaria e vê um atum defumado pendurado na vitrine. Ele pergunta se a multidão acreditará se ele fizer o peixe morto voltar à vida. Sim, respondem, assim eles acreditarão. Ele então retira o atum do gancho, o joga em um lago próximo e ordena que retorne dos mortos. O peixe revive — não apenas por alguns minutos, mas de verdade. A multidão entra em júbilo e passa a crer. 

Há milagres maiores ainda não revelados. Pedro e Simão, o Mágico, são convocados pelo funcionário romano local a competir na arena para revelar quem é o verdadeiro porta-voz de Deus. Um menino escravo é colocado na arena. Simão é orientado a matar o garoto, e Pedro a erguê-lo dos mortos. Simão diz uma palavra no ouvido do garoto e ele cai morto (é o herege que diz a palavra da morte). Mas Pedro diz ao mestre do garoto para tomar sua mão e erguê-lo, e o garoto recupera a vida imediatamente (o homem de Deus tem a palavra da vida). 

Depois, uma mulher rica vai até Pedro e grita para que também a ajude. Seu filho morreu, e ela, desesperada, quer que Pedro o traga de volta à vida. Pedro desafia Simão a um duelo para descobrir quem pode erguer o homem. Acompanhado pela multidão, Simão executa uma série de truques: de pé junto ao corpo morto, ele se agacha e se levanta três vezes, e o morto ergue a cabeça. A multidão se convence de que Simão tem o verdadeiro poder de Deus, e Pedro deve ser um impostor. Ela se prepara para queimá-lo na fogueira. Mas Pedro grita e alerta que o homem não foi realmente erguido dos mortos; apenas moveu a cabeça. Se Simão de fato é de Deus, será capaz de erguê-lo e fazê-lo falar. Quando Simão não consegue fazer isso, Pedro tem sua chance. Diz uma palavra, ergue o homem

totalmente dos mortos e faz com que fale. A partir daquele momento, o povo “venerou Pedro como a um deus”. 

O clímax da história se dá quando o herege Simão anuncia à multidão que provará seu poder superior voando como um pássaro sobre as colinas e os templos de Roma. Quando chega o dia de seu feito, ele cumpre a palavra e decola, voando como um pássaro. Pedro, não querendo ser superado, invoca Deus e priva Simão de seu poder em pleno voo. Ele cai no chão e quebra a perna. A multidão vai até ele e o apedreja até a morte como um impostor. É Pedro quem tem o verdadeiro poder de Deus. 

Histórias como essas se multiplicam com facilidade. Na verdade, elas foram multiplicadas com contadores de histórias cristãos inventando relatos lendários dos grandes heróis da fé no segundo e terceiro séculos cristãos. Eles inventaram histórias sobre Pedro. Terão também inventado escritos de Pedro? Parece não haver dúvida de que sim. Nem há muitas dúvidas de por que inventaram tais escritos. Em grande parte, pelo motivo que já vimos. Diferentes cristãos tinham suposições, opiniões, práticas e teologias opostas, todas precisando de “autoridade” apostólica. Um escrito em nome de Pedro podia autorizar um conjunto de pontos de vista em nome de uma grande “autoridade”, indicada como seu “autor”. 

ESCRITOS NÃO CANÔNICOS FALSIFICADOS EM NOME DE PEDROO Evangelho de Pedro 

Um dos mais significativos evangelhos redescobertos nos tempos modernos é o chamado Evangelho de Pedro. Digo redescoberto porque sabíamos de sua existência por séculos, antes que aparecesse em uma escavação arqueológica no fim do século XIX. Nossa mais antiga fonte de informação é Eusébio. Eusébio costuma ser chamado de “pai da história da Igreja”, já que seu livro em dez volumes História da Igreja foi o primeiro relato da Igreja cristã inicial. Nesse relato, Eusébio traça a disseminação do movimento cristão da época de Jesus até sua própria época, o começo do século IV. Eusébio é uma inestimável fonte de informação para os primeiros trezentos anos do cristianismo. No caso de muitas das narrativas, seu História da Igreja é a única fonte que temos. É verdade, como os estudiosos reconhecem cada vez mais, que Eusébio inseriu sua própria tendência nos relatos, que ele tem visões pessoais, perspectivas teológicas e interesses ocultos que determinam como conta a história. Com frequência, precisa ser lido com alguma desconfiança. Mas é especialmente valioso ao citar fontes disponíveis anteriores a ele. Nesses casos, temos fontes primárias de autores que viveram antes da época dele ainda preservadas, acesso direto a autores cristãos anteriores, cujos escritos, de outra forma, teriam se perdido.

No Livro 6 de sua História da Igreja, Eusébio conta o caso de um importante bispo da grande igreja de Antioquia, Síria, perto do fim do século II, um homem chamado Serapião. O caso se refere ao Evangelho de Pedro, e, por sorte, esse é um dos casos em que Eusébio cita uma fonte primária, um escrito do próprio Serapião.51 Como bispo de uma das maiores comunidades da cristandade, Serapião tinha sob sua jurisdição as igrejas das aldeias e cidades da área vizinha, incluindo a igreja da cidade de Rossus. Serapião indica que, em uma rodada de visitas, ele foi a Rossus e descobriu lá uma divisão na congregação. Atribuiu a divisão a banalidades e soube que poderia ter raízes no evangelho usado pela igreja. Não era Mateus, Marcos, Lucas ou João (evangelhos que ele não menciona), mas um Evangelho de Pedro. A resposta de Serapião foi que Pedro, claro, era um discípulo de Jesus; qualquer evangelho escrito por ele tinha de ser inteiramente aceitável. Com base nisso, permitiu que os paroquianos de Rossus continuassem a utilizá-lo. 

Mas o fez sem que antes mesmo lesse o livro. Quando retornou a Antioquia, soube por vários informantes que o evangelho era um problema — continha ensinamentos heréticos. Em especial, era usado por um grupo de cristãos conhecidos como docetistas. Os docetistas (da palavra grega dokeo, “parecer” ou “aparecer”) sustentavam que, como Cristo era totalmente divino, não poderia ter sido totalmente humano e não poderia de fato ter sofrido (pessoas sofrem, Deus não sofre). Por que, então, Cristo “parecia” ser humano? Para os docetistas, era apenas aparência. Cristo não tinha um verdadeiro corpo de carne e osso e não sofreu e morreu de verdade. Apenas pareceu fazer isso. 

Os docetistas acreditavam que Cristo não era um ser humano de verdade em duas formas diferentes. Alguns alegavam que o corpo de Cristo apenas parecia ser humano, porque, na verdade, era fantasmagórico (como Gasparzinho, o fantasminha camarada). A outra visão docetista é um pouco mais complicada. Segundo ela, havia um homem real, Jesus (carne e sangue como o resto de nós), mas também havia um ser diferente, conhecido como o Cristo. O Cristo era um ser divino que descendera do céu e entrara em Jesus em seu batismo (a pomba que desceu e entrou nele), lhe dando o poder de fazer milagres e transmitir seus ensinamentos divinos. Depois, antes da morte de Jesus, o Cristo o deixou para retornar a seu lar celestial. Portanto, algumas pessoas podiam ter equivocadamente achado que o Cristo era um humano que realmente morrera; mas tinha sido apenas Jesus. O Cristo era divino e não podia sofrer. 

Quando Serapião foi informado de que o evangelho que aprovara podia conter ensinamentos docetistas, ficou perturbado e encomendou uma cópia para sua leitura. Com certeza chegou à conclusão de que, embora a maior parte do relato fosse perfeitamente “ortodoxa” (um “ensinamento certo”), alguns trechos não eram. Serapião decidiu que o livro era falsificado e escreveu uma carta aos cristãos de Rossus desautorizando sua utilização. Em uma espécie de apêndice, ele dava uma relação dos trechos ofensivos. 

Eusébio cita a carta em seu História da Igreja, mas infelizmente não inclui o apêndice com os trechos que Serapião considerara objetáveis. Isso é muito lamentado, pois o Evangelho de Pedro foi descoberto nos tempos modernos e, sem saber o que o livro de Serapião dizia, é difícil saber se o que temos hoje é o mesmo livro que ele tinha. 

A descoberta moderna aconteceu em 1886 ou 1887, durante uma escavação arqueológica perto da cidade de Akhmin, no Alto Egito. A nordeste dessa cidade, há três cemitérios, e, nos meses do inverno de 1886-87, uma equipe arqueológica francesa, trabalhando no Cairo, descobriu o túmulo de uma pessoa que consideraram ser um monge, por ter sido enterrado com um livro sagrado (estudiosos modernos têm menos certeza de que era um monge; praticamente qualquer um poderia ter sido enterrado com um livro importante). O livro propriamente dito era bastante significativo. Tem 66 páginas, escrito em grego sobre pergaminho (páginas feitas de peles de animais), e contém uma pequena antologia de quatro textos. O primeiro deles, ocupando as dez páginas iniciais, é um evangelho anteriormente desconhecido.52 

O evangelho não é um texto completo, com começo, meio e fim. Inicia no meio de uma história: “[...] mas nenhum dos judeus lavou suas mãos, nem Herodes ou qualquer de seus juízes. Como eles não queriam lavar, Pilatos se levantou.” O que se segue é um relato alternativo do julgamento, da crucificação e da ressurreição de Jesus — alternativo no sentido de que a história diverge de formas marcantes dos relatos dos evangelhos do Novo Testamento. Uma diferença fundamental pode ser vista já neste versículo inicial. No Novo Testamento, apenas no Evangelho de Mateus temos uma história de Pilatos lavando as mãos no julgamento de Jesus, declarando-se “inocente do sangue deste homem” (27,24). Mateus não diz nada sobre mais alguém lavando ou se recusando a lavar as mãos. Mas isso é destacado aqui. E quem não lava as mãos? “Os judeus”, Herodes (o rei judeu) e seus juízes (judeus). 

Esse evangelho sustenta de forma ainda mais enfática que, nos evangelhos do Novo Testamento, a culpa pela morte de Jesus cabe diretamente ao povo judeu e seus líderes. Essa ênfase antijudaica é parte de uma tendência que podemos ver em evolução por toda a tradição cristã inicial. Com o passar do tempo, o fato de que os romanos mataram Jesus recua para um segundo plano, já os líderes judeus e o povo judeu são tornados cada vez mais culpados. Isso pode ser confirmado observando cronologicamente os evangelhos do Novo Testamento. 

O mais antigo evangelho, de Marcos, parece sugerir que a decisão de matar Jesus é partilhada pelos líderes judeus e pelo governador romano Pilatos (embora mesmo nele a ação de Pilatos pareça forçada). Quando chegamos ao Evangelho de Lucas, escrito depois, Pilatos, de fato, declara Jesus inocente três vezes — de modo que a culpa por sua morte recai sobre os líderes judeus que a exigem. O Evangelho de Mateus, escrito quase ao mesmo tempo que o de Lucas, coloca Pilatos lavando as mãos para declarar ser inocente de derramar o sangue de Jesus. De forma um tanto infame, o povo judeu (isso acontece apenas em Mateus) grita: “Que caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos.” (27,25) Em outras palavras, para Mateus, o povo judeu está disposto a aceitar a responsabilidade e as consequências da morte de Jesus e repassá-la a seus descendentes. Esse versículo, claro, foi usado para atos horrendos de antissemitismo cristão durante a Idade Média e ainda hoje. 

O Evangelho de João, último dos evangelhos canônicos, dá um passo além. Nele nos é dito que o povo judeu rejeitou Jesus como seu rei e declarou “Não temos outro rei senão César!” (embora o próprio Deus fosse o rei de seu povo). E então João diz que Pilatos “entregou-o para que fosse crucificado” (19,16). Nessa distorção da realidade histórica, são os próprios judeus que, na verdade, matam Jesus.

E assim, com o passar do tempo, na tradição cristã, Pilatos se torna cada vez mais inocente da morte de Jesus, e o povo judeu e seus líderes, cada vez mais culpados. O Evangelho de Pedro é ainda mais tardio que o de João, e nele a responsabilidade judaica é ampliada. Agora, não é sequer o governador romano Pilatos quem ordena que Jesus seja crucificado; é o rei judeu Herodes: “Então o rei Herodes ordenou que o Senhor fosse levado embora e disse a eles: ‘Façam tudo que ordenei que fizessem a ele.’” (v. 2) 

Em outros versículos desse relato, os maus-tratos judeus a Jesus são intensificados. As autoridades judaicas crucificam Jesus e o tiram da cruz. O autor deixa bastante claro que eles são os culpados: “Eles levaram todas as coisas até o fim e completaram todos os seus pecados em suas cabeças.” (v. 17) Ainda mais significativo, o povo judeu percebe que o que fez é errado e que será punido por isso. “Então os judeus, os anciãos e os sacerdotes se deram conta de quanto mal haviam feito a si mesmos e começaram a bater nos peitos, dizendo: “Desgraçados sejamos por nossos pecados. O julgamento e o fim de Jerusalém estão próximos.” (v. 25) É uma referência à visão, comum entre cristãos no século II e posteriormente, de que quando os Exércitos romanos destruíram Jerusalém em 70 d.C., após um levante judaico, não foi por motivos políticos ou militares, mas religiosos. Jerusalém foi destruída, e o Templo judaico, queimado até as fundações, como vingança divina contra os judeus por seu pecado de matar o messias de Deus. No Evangelho de Pedro, o próprio povo judeu reconhece sua culpa e sua punição iminente. 

Além do cunho antijudaico desse relato, há uma série de outras interessantes características lendárias. Nos evangelhos do Novo Testamento, Jesus é crucificado com dois outros homens, como acontece aqui. Mas, nesse evangelho, há um incidente curioso. Quando aqueles que crucificam Jesus jogam para ver quem ficará com suas roupas, um dos “malfeitores” sendo crucificados com ele os ataca: “Sofremos assim pelas coisas ruins que fizemos; mas este, o Salvador do povo, o que de errado fez a vocês?” Os soldados ficam com raiva do homem e ordenam que “suas pernas não sejam quebradas, para que ele morra em sofrimento” (vv. 14-15).53 A ideia é que um homem crucificado morreria mais depressa se não conseguisse esticar as pernas para aliviar a pressão nos pulmões e respirar. Ao não quebrar as pernas do criminoso eles prolongam seu tormento. 

Uma das grandes questões desse evangelho é se Jesus experimenta algum sofrimento. No versículo 11, nos é dito que Jesus estava “silencioso, como se não sentisse dor”. É possível que este seja um dos versículos que Serapião considerou potencialmente objetáveis? Que Jesus parecia não sentir dor, porque, na verdade, não sentia qualquer dor? Que seu corpo era um fantasma? 

Um versículo posterior é igualmente intrigante. Quando Jesus está prestes a morrer, em vez de gritar “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, como, digamos, no Evangelho de Marcos (15,34), ele grita: “Poder meu, ó poder meu, me deixaste para trás!” E então nos é dito: “Quando ele disse isso, foi arrebatado.” Isso não soa como outro tipo de docetismo, o tipo em que o Cristo divino deixa o Jesus humano para morrer sozinho?54 

A passagem mais perturbadora do evangelho está bem no final, uma passagem que nos dá algo que nunca encontramos nos evangelhos do Novo Testamento: um relato da Ressurreição. Como destaquei

no capítulo 1, os evangelhos canônicos não narram a ressurreição de Jesus. Em suas histórias, Jesus é crucificado, morre e é enterrado, e no terceiro dia as mulheres vão ao túmulo e o encontram vazio. Mas não há nos evangelhos do Novo Testamento uma história de Jesus saindo vivo do túmulo. O Evangelho de Pedro, porém, traz uma história assim. 

Como acontece no Evangelho de Mateus, mas em nenhum outro dos evangelhos canônicos, um guarda é colocado no túmulo de Jesus para garantir que ninguém roube o corpo. Mas diferentemente de Mateus, no Evangelho de Pedro, há uma sequência de acontecimentos muito peculiar enquanto os guardas vigiam. Os céus se abrem e dois “homens” descem, enquanto a pedra diante do túmulo rola para o lado. Os dois homens do céu entram no túmulo. 

Aterrorizados, os soldados vão acordar o centurião para lhe contar o que aconteceu. Mas, enquanto estão conversando, erguem os olhos e veem três figuras saindo do túmulo. Dois deles são tão altos que suas cabeças chegam ao céu. Aquele que eles carregam — Jesus, é claro — é ainda mais alto; sua cabeça vai acima do céu. E, atrás deles, a própria cruz sai do túmulo. E vem do céu uma voz perguntando: “Você pregou a aqueles que estão dormindo?” E a cruz responde: “Sim.” Então, na ressurreição, temos um Jesus gigante e uma cruz que anda e fala. 

A narrativa, claro, pretende ser altamente simbólica. Seres divinos são, com frequência, retratados como gigantescos em textos antigos. Jesus é o mais alto, já que é o mais divino. E a cruz teria proclamado sua mensagem, a notícia da salvação levada àqueles que estão “dormindo”, ou seja, aqueles que já estão mortos e esperam a salvação. 

O evangelho prossegue, indicando que as autoridades judaicas vão até Pilatos e o conclamam a ocultar a história ordenando que os soldados não digam uma palavra sobre o que viram. Há um relato das mulheres indo ao túmulo para ungir o corpo de Jesus e descobrindo que ele se levantou. Os discípulos ainda choram o que aconteceu, sem saber da ressurreição. Então temos as últimas frases do evangelho: “Mas nós, os 12 discípulos do Senhor, choramos e sofremos; e cada um retornou à sua casa, sofrendo pelo que havia acontecido. Mas eu, Simão Pedro, e meu irmão André pegamos nossas redes e partimos para o mar. E conosco estava Levi, filho de Alfeu, que o Senhor [...].” (vv. 59-60) E assim termina, no meio de uma frase. 

A razão para o relato parecer começar no meio de um pensamento e definitivamente terminar no meio de uma frase é que a pessoa que criou este livro de 66 páginas — provavelmente no século VI — tinha apenas um relato fragmentado diante de si. É impossível dizer se o Evangelho de Pedro integral incluía histórias sobre o nascimento de Jesus, sua vida, ministério, ensinamentos, milagres e assim por diante antes do relato da Paixão e Ressurreição. O que é claro a partir do versículo final é que esse evangelho, diferentemente dos evangelhos do Novo Testamento, é escrito na primeira pessoa. O autor alega ser Pedro. Mas não há como ele ser Pedro. É um autor alegando ser quem não é. É uma falsificação. 

O motivo pelo qual Simão Pedro não podia ter escrito esse relato é o fato de o texto datar do século II, pelo menos sessenta anos após a morte de Pedro. Praticamente todos os estudiosos concordam com isso, por motivos convincentes. Para começar, o antijudaísmo exacerbado combina mais com o século II, quando se tornou comum, por exemplo, os cristãos atribuírem a destruição de Jerusalém aos próprios judeus por causa da morte de Jesus. Ademais, há aspectos altamente lendários na história, como o ladrão cujas pernas não são quebradas, o Jesus gigantesco e a cruz falante. Também isso sugere ser um relato posterior. Os estudiosos debatem se o autor desse evangelho teria tido acesso às histórias de Mateus, Marcos, Lucas e João; há muitos paralelos com um ou outro dos evangelhos em toda sua extensão. Se ele os usou, fica claro que estava escrevendo depois deles, ou seja, não antes do começo do século II. 

Os estudiosos também debatem se este é o Evangelho de Pedro que Serapião conheceu. Em parte, a discussão gira em torno de se é realmente um relato docético, como o evangelho descrito por Serapião obviamente era, pelo menos a seus olhos. Alguns estudiosos têm dúvidas. Costuma-se argumentar que quando é dito que Jesus estava em silêncio na cruz “como se” não sentisse dor, isso não é a mesma coisa que dizer que ele não sentia dor. E dizer que “ele foi arrebatado” pode não significar que o Cristo deixara Jesus. Jesus ainda tem Por isso, corpo milagroso e um poder divino na ressurreição, por exemplo. Por isso, a frase sobre ser arrebatado pode ser apenas um eufemismo para “ele morreu”. 

Minha opinião é a de que o evangelho não precisa ser verdadeiramente docético para ser aquele mencionado por Serapião. Este admitiu que a maior parte do evangelho era ortodoxa, mas que encontrou alguns “acréscimos” perturbadores e que podiam ser usados por cristãos docetistas. E com certeza esse evangelho se enquadra nessa descrição. É em grande medida perfeitamente aceitável de um ponto de vista ortodoxo, mas vários versículos podem facilmente permitir uma leitura docética. Isso incluiria o grande relato de Jesus saindo do túmulo, em que ele parece ter tudo menos um corpo real que acabara de sofrer a agonia da crucificação! 

Seja este ou não o Evangelho de Serapião, com certeza é um Evangelho de Pedro. Baseia sua autoridade no nome do discípulo mais íntimo de Jesus, em parte, sem dúvida, para fazer suas narrativas incríveis e antijudaicas parecerem críveis. Mas Pedro não o escreveu. Essa é uma falsificação em nome de Pedro. E não é a única.55 

A Epístola de Pedro 

Muitos estudiosos consideravam a Igreja cristã inicial gravemente dividida. De um lado, estavam os judeus seguidores de Jesus, como seu irmão Tiago, líder da igreja em Jerusalém, e o discípulo Pedro. Do outro, pessoas como o apóstolo Paulo, que se concentrava em converter gentios (não judeus). Nesse arranjo, Tiago e Pedro costumam ser vistos como sendo mais “fiéis” à mensagem original de Jesus de que era o Deus de Israel que levava a salvação aos que seguiam seus ensinamentos, como dispostos na lei judaica. Para esses primeiros cristãos, Jesus era o messias judeu enviado ao povo judeu pelo Deus judeu cumprindo a lei judaica. Naturalmente, para ser um seguidor desse salvador judeu, a pessoa tinha de ser judia. Os gentios, claro, eram recebidos de braços abertos na comunidade, mas apenas se se convertessem ao judaísmo. Para os homens, isso significava circuncisão, e para homens e mulheres, implicava observar o sabá, ser kosher e seguir as outras leis judaicas. 

Segundo essa análise, Paulo ensinava algo bastante diferente: que acreditar na morte e na ressurreição de Jesus era a única forma de ser justo perante Deus. Ademais, essa salvação se aplicava da mesma forma a judeus e gentios, portanto ninguém precisava ser judeu para seguir Jesus. Para Paulo, desse ponto de vista, a lei caducara; os judeus podiam segui-la se quisessem (e sendo judeu, ele mesmo a seguia), mas não se esperava que os gentios o fizessem. Aquela era a lei nacional de Israel, e não tinha qualquer relação com a salvação. Apenas a morte e a ressurreição de Jesus podiam levar à salvação. Portanto, por intermédio de Paulo, a Igreja, em grande parte, se encheu de gentios que não se viam como judeus e que veneravam o Deus de Israel sem seguir sua lei. 

Não é necessário que eu avalie essa compreensão comum da relação de Paulo com os apóstolos anteriores a ele, em particular Tiago e Pedro. Mas quero dizer que a ideia de que havia uma divergência entre seus pontos de vista não é apenas uma noção moderna. Ela remonta aos primórdios do cristianismo. Historicamente falando, é verdade que Paulo estabeleceu igrejas compostas de gentios e que insistiu em que esses convertidos não seguissem a lei judaica. É algo em que ele insiste bastante, por exemplo, na epístola (ortônima) aos gálatas. Para Paulo, qualquer gentio que tentasse seguir a lei deixava de entender que a salvação vinha apenas da morte de Cristo, a ser recebida pela fé. Seguir a lei era pior que irrelevante; era uma admissão de que a morte de Cristo era insuficiente para a salvação (ver Gl 2,15-16, 21). 

Outros cristãos de fato discordavam. Muitos deles eram adversários de Paulo em suas várias igrejas. Mais tarde, no século II cristão, continuava a haver grupos de cristãos judeus que insistiam em que a lei sem dúvida tinha de ser seguida por qualquer um que quisesse pertencer ao povo de Deus. Deus dera a lei e nunca mudara de ideia. Era a lei que Ele mandara o povo seguir, a que o próprio Jesus ensinara e cumprira, e a que devia ser seguida, em especial pelos seguidores de Cristo. 

Essa divisão na Igreja inicial entre a (então) minoria de cristãos judeus e a maioria dominante de gentios é mais clara em um escrito falsificado em nome de Pedro chamado Epistula Petri, ou Epístola de Pedro.56 Esse livro não deve ser confundido com 1 Pedro ou 2 Pedro do Novo Testamento. Foi escrito depois, anos após os textos do Novo Testamento terem sido concluídos. 

A Epístola de Pedro é encontrada como uma espécie de introdução a um conjunto de escritos que os estudiosos chamam de pseudoclementinos. Como indicado pelo nome erudito, esse conjunto de escritos alega falsamente (daí “pseudo”) ter sido escrito por Clemente, que, como já vimos, acredita-se ter sido o quarto bispo de Roma (ou papa), escolhido para o cargo por ninguém menos que Pedro. Os pseudoclementinos têm uma história literária bastante complicada. Por mais de um século, os estudiosos debateram intensamente quais fontes os livros utilizaram, como os vários escritos se relacionam entre eles e outras questões técnicas. Mas o caráter básico dos escritos é claro. São relatos de viagens e aventuras de Clemente, especialmente à medida que ele se converte ao cristianismo por intermédio da pregação de Pedro, e depois as viagens com Pedro enquanto o apóstolo transmite o evangelho, faz discursos e realiza milagres. Eles incluem disputas de milagres com o arqui-herege Simão, o Mágico, que já conhecemos. Os Atos de Pedro podem ter sido uma das fontes dessas histórias. 

Já está claro que os livros clementinos não foram escritos pelo Clemente histórico, mas muito após sua morte, embora sejam supostamente narrados por ele na primeira pessoa. Eles são, portanto, falsificados. Em um conjunto desses escritos, as aventuras de Clemente são prefaciadas pela Epístola de Pedro, uma carta supostamente escrita por Pedro ao irmão de Jesus, Tiago, líder da igreja em Jerusalém. A carta instrui Tiago a não permitir que os escritos de Pedro sejam dados a qualquer um, porque podem ser mal-interpretados ou alterados, e sim apenas a um grupo selecionado de pessoas de confiança. O autor, “Pedro”, ataca os cristãos que interpretam sua mensagem como dizendo que a lei judaica já não está em vigor. Isso é falso, diz o autor, pois o próprio Jesus indicara que “não será omitido nem um só j, um só traço da Lei”, e que isso seria eternamente válido (ver Mt 5,17-20). Segundo essa carta, um dos adversários de Pedro em especial levara “os gentios” a rejeitar a “pregação da lei” de Pedro e, em vez disso, preferir “uma doutrina sem lei e absurda do homem que é meu inimigo”. 

Não é preciso pensar muito para notar quem é o inimigo a quem “Pedro” se opõe. É alguém que prega aos gentios, insiste em um evangelho distinto da lei judaica (uma “doutrina sem lei”) e alega que o próprio Pedro concorda com essa visão (ver Gl 2). Sem nomeá-lo, esse autor está falando de Paulo. 

Aqui temos uma visão de Pedro e Paulo em grande conflito com o que encontramos em alguns dos escritos do Novo Testamento.57 Na história dos primórdios da Igreja, encontrada no livro de Atos, por exemplo, Pedro e Paulo se olham nos olhos, concordam em todas as grandes questões, estão de braços dados na missão de transmitir o evangelho e, o mais importante, concordam de coração que os gentios não precisam ser judeus para seguir Jesus (ver Atos 10-11; 15). Porém, esse não é o caso para o autor da Epístola de Pedro. Ali há uma clara divergência entre Pedro, o discípulo mais íntimo de Jesus, e Paulo, um intrometido que não compreendeu Pedro. Paulo distorceu o evangelho. 

Esse, portanto, é um autor que via Paulo como inimigo, e sua doutrina, “sem lei e absurda” como heresia. Para esse autor, Paulo não apenas discordava de Pedro; ele estava errado. E com que autoridade o autor alega isso? Com a autoridade do próprio Pedro. O autor falsificou a carta em nome de Pedro para afirmar tal coisa. 

O Apocalipse de Pedro 

Não discutirei extensivamente neste livro como chegamos aos 27 livros do Novo Testamento, isto é, como o cânone foi formado e como alguns escritos foram incluídos e outros deixados de fora. Muitos outros livros descrevem mais detidamente esse processo.58 Mas posso dizer que alguns escritos “passaram perto” e quase entraram, assim como outros quase foram deixados de fora, mas acabaram incluídos. Um dos livros que quase entrou é chamado Apocalipse de Pedro.59

Sabemos por autores como Eusébio que, mesmo no século IV, ainda havia comunidades cristãs acreditando que o Apocalipse de Pedro devia ser incluído no cânone, ou no lugar do Apocalipse de João, que acabou sendo incluído, ou juntamente com ele.60 Mas o Apocalipse de Pedro é muito diferente do Apocalipse de João. Os dois livros são apocalipses nos quais um autor recebe uma revelação secreta sobre os mistérios divinos celestiais que podem dar sentido às realidades terrenas. No Apocalipse de João, do Novo Testamento, esses mistérios dizem respeito ao futuro curso da história na Terra, como já tinha sido decidido no céu. No Apocalipse de Pedro não canônico, esses mistérios dizem respeito ao destino das almas na vida após a morte. Esse livro descreve um passeio que Pedro faz pessoalmente pelos reinos dos abençoados e dos condenados. 

A maioria dos leitores conhece a ideia de um passeio pelo céu e pelo inferno por causa da Divina Comédia de Dante. Mas Dante não inventou a ideia. Ele integra uma longa linhagem de autores cristãos que se valeram do tema de um passeio pela vida após a morte para fazer quaisquer que fossem as afirmações importantes que queriam sobre a vida na Terra. Nosso exemplo mais antigo desse tipo de escrita é o Apocalipse de Pedro. 

Mais uma vez, sabíamos do livro séculos antes de ele estar disponível. Acabou sendo outro dos quatro textos encontrados no livro de 66 páginas descoberto por arqueólogos perto de Akhmin, Egito, em 1886-87. Desde então, foi encontrada uma versão etíope que traz um relato ainda mais completo. 

A narrativa começa com Pedro e os discípulos conversando com Jesus no Monte das Oliveiras (ver Marcos 13). Eles perguntam a Jesus o que acontecerá quando o mundo chegar ao fim, e ele lhes faz um breve relato. Mas a discussão se torna uma descrição, com alguns detalhes minuciosos do que acontece às almas depois que morrem, seja no lugar do tormento, seja no lugar do êxtase eterno. Como às vezes acontece nesses passeios pessoais pelo céu e pelo inferno, a descrição do reino dos abençoados é um pouco estereotipada e breve. Afinal, há poucas maneiras de descrever o êxtase eterno. É fantástico! O que mais dizer? Já o reino dos condenados é algo muito diferente. Qualquer um com alguma criatividade e imaginação pode inventar descrições horripilantes e detalhadas dos tormentos dos pecadores. 

Na visão de Pedro, condenados são torturados de formas correspondentes a seus pecados característicos, de modo que a punição é adequada ao crime. Aqueles que blasfemaram contra Deus, por exemplo — ou seja, pecaram pelo que disseram —, são pendurados por suas línguas acima de chamas eternas. Mulheres que trançaram os cabelos para serem atraentes e conquistarem os homens são penduradas pelos cabelos sobre chamas eternas. Os homens que elas seduziram são pendurados por uma diferente parte do corpo acima das chamas. Nesse caso, como podem imaginar, os homens gritam: “Não sabíamos que acabaria assim!” 

A mensagem geral do livro é bastante clara e de modo algum sutil: se você quer desfrutar das fantásticas bênçãos do Paraíso e evitar os horrendos tormentos do inferno, não peque! Essa mensagem transmite uma verdade confiável e nada controversa: aqueles que não fazem a vontade de Deus enfrentarão tortura eterna. Como sabemos disso? Porque alguém que observou o reino dos condenados nos contou, o braço direito de Jesus, o próprio Pedro. Para transmitir isso, o autor escreve na primeira pessoa — não em seu nome, mas em nome do principal discípulo. Mais uma vez, temos uma falsificação em nome de Pedro. 

ESCRITOS “PETRINOS” NO NOVO TESTAMENTO 

Os livros sobre os quais falei aqui com algum pormenor — Atos de Pedro, o Evangelho de Pedro, os Escritos pseudoclementinos, a Epístola de Pedro, o Apocalipse de Pedro — não são as únicas invenções sobre Pedro e falsificações supostamente escritas por Pedro nos primórdios da Igreja. Houve outras: outros “Atos” de Pedro, uma coletânea chamada de “Pregação” de Pedro, dois outros apocalipses de Pedro. E esses são apenas os que existem até hoje. Ninguém sabe quantos mais existiram um dia. Produzir livros em nome de Pedro era uma atividade florescente nos primórdios da Igreja. 

É   possível, à luz dessa extensa utilização do nome de Pedro para autorizar os pontos de vista de outros, que falsificações com o nome de Pedro tenham chegado ao Novo Testamento? De fato, dois livros também levam o nome de Pedro, as epístolas 1 Pedro e 2 Pedro. Ambas alegam terem sido escritas por Pedro, mas há motivos sólidos para acreditar que Pedro não escreveu nenhuma delas. 

1 Pedro 

O livro 1 Pedro é supostamente escrito por “Pedro, um apóstolo de Jesus Cristo”, a cristãos que ele chama de “exilados” em cinco províncias da região oeste do que é hoje a Turquia.61 Não há dúvida de que o autor alega ser o mais íntimo discípulo de Jesus, Pedro. “Pedro” não era um nome próprio antes de Pedro tê-lo recebido como apelido do próprio Jesus. Segundo os evangelhos, o verdadeiro nome do discípulo era Simão. Mas Jesus indicou que ele seria a “rocha” (petros, em grego) sobre a qual a igreja seria erguida. Então ele o chamou de “Pedroso”, ou “Pedro” (Ver Mt 16,13-18).62 Pelo que sabemos, depois não havia outras pessoas chamadas Pedro quando os cristãos começaram a dar aos filhos o nome do grande apóstolo. Portanto, o autor de 1 Pedro com certeza alega ser “aquele” Pedro. Isso é revelado por seu comentário em 5,1 de que foi “testemunha dos sofrimentos de Cristo”.63

A questão do sofrimento é o tema central do livro. De fato, a palavra “sofrimento” aparece com maior frequência nessa curta epístola de cinco capítulos do que em qualquer outro livro do Novo Testamento, incluindo os evangelhos, que são muito mais longos. O autor parte do princípio de que seus leitores estão eles mesmos enfrentando perseguição e que experimentarão ainda mais no futuro. “Agora, por algum tempo”, ele lhes diz, “sejais contristados por diversas provações”. Mas tudo isso é   para o bem, porque, sendo “testada” sua fé, será refinada e se tornará “mais preciosa do que o ouro que [...] é provado pelo fogo” (6,1-7). Portanto, “não vos alarmeis com o incêndio que lavra entre vós [...] como se algo de estranho vos acontecesse”, mas “alegrai-vos”, porque “participais dos sofrimentos de Cristo” (4,12-13). 

Os estudiosos debateram longamente que tipo de sofrimento o autor tinha em mente. A visão antiga era a de que o autor lidava com perseguições oficiais do Estado, como acontecera quando o imperador Nero aprisionara e depois executara cristãos na cidade de Roma em 64 d.C., culpando-os por iniciar o terrível incêndio que destruíra grande parte da cidade, um incêndio que seus próprios incendiários podem ter começado. Mas ao longo dos últimos vinte anos, aproximadamente, os estudiosos começaram a destacar que o livro 1 Pedro nunca fala muito sobre perseguição “oficial” em que cristãos são presos, julgados por sua fé e martirizados. Em vez disso, a oposição parece vir de antigos amigos e vizinhos que não compreendem ou apreciam o novo estilo de vida dos cristãos, distinto das celebrações alegres das religiões pagãs (4,1-5). Ou seja, os cristãos pararam de ir aos festivais pagãos para formar suas próprias sociedades secretas, e os pagãos ficaram aborrecidos, desconfiados e raivosos, liderando uma oposição local contra os cristãos que, em certos momentos, podia se tornar desagradável. 

Se esse é o caso, faz sentido que o autor insista com seus leitores que é importante para eles obedecerem ao governo e aos funcionários do governo (2,13-15), ter bom comportamento entre estranhos (2,12), ser escravos, esposas e maridos devotados (2,18-3,7), não fazer nada para gerar oposição, sofrer apenas por fazer o que é certo (2,20). Uma boa parte da exortação e do encorajamento aos leitores se baseia em uma interpretação sofisticada de passagens fundamentais do Antigo Testamento, citadas, claro, em grego, a chamada Septuaginta (cujas origens lendárias são descritas na falsificada Carta de Aristeas, discutida no capítulo 1), como pode ser visto, por exemplo, em 1,24-25; 2,3.6-9.22.24-25; 3,10-12. 

O autor conclui sua exortação para ser firme face à adversidade, indicando que escreveu sua carta “por intermédio de Silvano, um irmão fiel” (isto é, um verdadeiro cristão), e mandando saudações “da que está em Babilônia, eleita como vós” (5,13). Há muito os estudiosos se deram conta do que significa esse último trecho. Babilônia era a cidade considerada a maior inimiga de Deus entre os judeus, já que tinha sido a Babilônia que derrotara Judá e destruíra Jerusalém e seu Templo no século VI a.C. No fim do século I, cristãos e judeus haviam começado a usar a palavra “Babilônia” como um código para a cidade que era a inimiga de Deus em sua própria época, Roma, que também destruíra Jerusalém e seu Templo no ano 70 d.C (ver, por exemplo, Ap 14,8; 17,5). O autor, portanto, alega escrever da cidade de Roma. Isso faz sentido, já que tradições posteriores associaram Pedro como o primeiro bispo da cidade — o primeiro papa. 

Entretanto a tradição também indica que Pedro foi martirizado em Roma, por Nero, em 64 d.C. Faria sentido ele chamar Roma de “Babilônia” antes de os romanos terem destruído Jerusalém no ano 70? No momento da catástrofe, Pedro estava morto havia muito tempo. Na verdade, há outras bases muito boas para pensar que Pedro, na verdade, não escreveu esse livro. Ele foi escrito por alguém alegando ser Pedro. Antes de explicar quais são essas bases, primeiro devemos examinar a segunda carta do Novo Testamento escrita em nome de Pedro.

2 Pedro 

Há menos discussão entre os estudiosos do Novo Testamento sobre a autoria de 2 Pedro que de qualquer dos outros livros algumas vezes considerados falsificações. Quem quer que tenha escrito 2 Pedro não foi Simão Pedro.64 O autor sem dúvida alega ser Pedro — de modo ainda mais explícito que no caso de 1 Pedro. Ele se apresenta como “Simão Pedro,65 servo e apóstolo de Jesus Cristo”. Porém, mais que isso, alega ter estado presente na cena da “transfiguração” narrada nos evangelhos, em que Jesus se transformou diante dos olhos de seus discípulos Pedro, Tiago e João e começou a falar com Moisés e Elias, antes que uma voz do céu dissesse: “Eis meu filho muito amado, em quem pus toda a minha afeição.” (ver Mt 17,1-8) O autor insiste em que estava lá para ouvir essas palavras, levadas a ele pela “voz [...] da sua Glória” (1,17). O autor não quer deixar qualquer dúvida: ele é Pedro. 

Sua principal preocupação é haver, na comunidade, falsos mestres que distorceram a verdadeira mensagem do evangelho. A maior parte do capítulo 2 é dedicada a atacar essas pessoas, sem nunca explicar o que elas ensinam. Esse ataque altamente agressivo classifica seus ensinamentos como “heresias destrutivas” e diz que eles, os adversários, são licenciosos, cobiçosos e exploradores. O autor indica que sofrerão como o povo de Sodoma e Gomorra, e como os habitantes do mundo inteiro nos dias de Noé. Isso significa dizer que também serão destruídos. Ele os chama de ignorantes e diz que são “impuros e pervertidos, deleitam-se na sua volúpia quando se banqueteiam convosco”. Diz que têm olhos “cheios de adultério e insaciáveis de pecado”. E assim por diante. 

Esse ataque a seus oponentes, os “falsos profetas”, contém muitas semelhanças verbais com o que pode ser encontrado no livro de Judas do Novo Testamento. Os paralelos são tão numerosos que os estudiosos são quase unânimes em acreditar que o autor pegou a mensagem de Judas e apenas editou-a um pouco para incorporá-la a seu livro. 

Além dos falsos profetas, surgiram “escarnecedores” debochando da visão cristã de que Jesus logo voltará do céu para julgar a terra. Se ele deveria voltar logo, dizem esses céticos, por que não veio? Muito tempo se passou, e tudo continua como era antes! O autor retruca que esses descrentes são ignorantes e equivocados, tendo esquecido que “um dia diante do Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia” (3,8). Em outras palavras, mesmo que Jesus espere outros três mil anos, ainda virá “logo”. Jesus de fato postergou seu retorno apenas para dar às pessoas uma chance de arrependimento antes da destruição vindoura. O próprio Paulo, o autor nos diz, ensinou tais coisas em “todas as suas cartas [...] que os ignorantes e vacilantes distorcem, como fazem com as demais escrituras, para a própria perdição” (3,16). 

Uma das razões pelas quais quase todos os acadêmicos concordam que Pedro não escreveu essa carta é que a situação suposta surge em época muito posterior. Quando o próprio Pedro morreu — digamos, o ano 64 d.C., sob as ordens de Nero — ainda havia uma expectativa ansiosa de que Jesus retornasse logo; nem uma geração inteira se passara desde a crucificação. Foi apenas com o passar do tempo que a alegação cristã de que tudo aconteceria “nesta geração” (Mc 13,30) e antes de que os discípulos houvessem “provado a morte” (9,1) começou a soar vazia. No momento em que 2 Pedro foi escrita, os cristãos estavam tendo de se defender de oponentes que debochavam de sua visão de que o fim deveria ser iminente. Então, “Pedro” tem de explicar que mesmo que o fim demore mil anos, ainda é logo ali segundo o calendário de Deus; tudo está seguindo o cronograma. 

Ademais, o autor de 2 Pedro escreve numa época em que já circulava uma coletânea de cartas de Pedro, e essas cartas eram consideradas no mesmo plano das “Escrituras” do Antigo Testamento (3,16). Isso não poderia ter sido enquanto Pedro era vivo,66 e a tradição dos primórdios da Igreja indica que Pedro e Paulo foram mortos durante o reinado de Nero. 

Essas estão entre as razões para pensar que 2 Pedro provavelmente não podia ter sido escrita por Pedro.67 E há uma razão ainda mais forte. Há excelentes motivos para pensar que Pedro não sabia escrever. 

SIMÃO PEDRO, A ANTIGA PALESTINA E A ALFABETIZAÇÃO 

O que sabemos sobre alfabetização e capacidade de escrita no mundo antigo, em especial na Palestina rural, onde Simão Pedro nasceu e foi criado? Estudiosos da Antiguidade foram diligentes nos últimos 25 anos, aproximadamente, em tentar entender todos os aspectos da alfabetização e da educação daquele tempo. Para o que é hoje um estudo clássico, o livro Ancient Literacy, de 1989, William Harris, professor de história antiga da Universidade de Colúmbia, mostra que as suposições modernas acerca da alfabetização não se aplicam aos tempos antigos.68 Hoje, nos Estados Unidos modernos, vive-se em um mundo em que praticamente toda criança vai para a escola e aprende a ler e escrever. Praticamente todos que conhecemos sabem ler a página de esportes e copiar uma página de um romance caso queiram. Mas o fenômeno da alfabetização disseminada e em massa é moderno. Antes da Revolução Industrial, as sociedades não tinham boas razões para investir um enorme volume de dinheiro e outros recursos na criação de uma população alfabetizada. Apenas com o desenvolvimento do mundo industrial tal coisa se tornou ao mesmo tempo desejável e factível. 

Harris argumenta que no mundo antigo, nas melhores épocas, apenas cerca de 10% da população era razoavelmente alfabetizada. Por “melhores épocas” ele quer dizer Atenas, um centro de conhecimento, no auge de seu poder intelectual, durante os dias de Sócrates e Platão (séculos V-IV a.C.). A maioria desses 10% era de homens, como esperado em uma sociedade patriarcal. E todos pertenciam às classes superiores, a elite social e econômica que tinha o tempo livre e o dinheiro (bem, seus pais tinham o dinheiro) para pagar uma educação. As pessoas das classes inferiores não aprendiam a ler, muito menos escrever. E a imensa maioria das pessoas no mundo antigo era das classes inferiores (para surpresa de muitos, a “classe média” é outra invenção da Revolução

Industrial; no mundo antigo, quase todos eram de classe alta ou baixa, ou muito baixa). As únicas exceções notáveis eram os escravos, por natureza uma classe muito baixa, mas que algumas vezes eram educados pelos seus senhores para que pudessem cumprir tarefas domésticas que exigissem alfabetização, como cuidar das finanças da casa, ajudar na correspondência ou ensinar as crianças. 

Quando digo que poucas pessoas sabiam ler, “muito menos escrever”, quero dizer algo muito significativo sobre o mundo antigo. Quando as pessoas das classes superiores eram educadas, ler e escrever eram atividades ensinadas como duas habilidades diferentes.69 Hoje aprendemos a ler e escrever ao mesmo tempo, e naturalmente supomos que, se a pessoa sabe ler, também pode escrever — não necessariamente escrever um romance, mas pelo menos uma carta. Mas isso se deve ao modo como organizamos nosso sistema educacional. Não há nada inerente a aprender a ler que necessariamente ensine a escrever. Sei disso muito bem. Posso ler grego, hebraico, francês, alemão e uma série de outros idiomas, mas não consigo redigir uma carta em nenhum deles. Aprendi a ler todos eles na faculdade para poder ler documentos antigos na língua original, e trabalhos acadêmicos modernos nos idiomas europeus. Mas nunca aprendi a escrever nesses idiomas. 

A maioria das pessoas no mundo antigo não sabia ler. E aqueles que sabiam ler, com frequência, não sabiam escrever. E, nesse caso, com “escrever” quero dizer que a maioria das pessoas — mesmo podendo copiar palavras — não conseguia compor uma sentença, muito menos um tratado com boa argumentação. Ao contrário, as pessoas capazes de compor um ensaio sobre ética, uma discussão filosófica erudita ou um tratado religioso intrincado eram pessoas muito educadas e muito excepcionais. E isso na melhor das hipóteses. De fato, muito poucas pessoas eram capazes dessas habilidades em um idioma que não aquele com o qual foram criadas. Não estou dizendo que apenas 1% da população podia fazer tal coisa. Estou dizendo que muito menos que 1% da população podia fazer isso. 

Algumas vezes acreditou-se que a Palestina era uma exceção, que nela todos os meninos judeus aprendiam a ler para poder estudar as Escrituras hebraicas, e que, como sabiam ler, provavelmente podiam escrever. Mais ainda, costuma-se argumentar que na Palestina a maioria dos adultos era bilíngue ou mesmo trilíngue, capaz de ler hebraico, falar o idioma local, aramaico, e se comunicar bem no idioma do império ampliado, o grego. Contudo, recentes estudos sobre a alfabetização na Palestina mostraram que nenhuma dessas afirmativas é verdadeira. 

O estudo mais completo, mais extensamente pesquisado e mais amplamente influente sobre a alfabetização na Palestina na época do Império Romano é de Catherine Hezser.70 Após estudar todas as evidências, Hezser conclui que, na Palestina romana, a melhor estimativa é que algo em torno de 3% da população fosse capaz de ler, e que a maioria desses viveria em cidades e vilas maiores. A maior parte das pessoas fora das áreas urbanas dificilmente teria visto, algum dia, um texto escrito. Algumas cidades menores e aldeias poderiam ter um índice de alfabetização em torno de 1%. Ademais, essas pessoas alfabetizadas eram quase sempre a elite das classes superiores. Aqueles que aprendiam a ler liam hebraico, não grego. 

E ainda por cima, de novo, muito mais pessoas podiam ler em vez de escrever. As pessoas que sabiam escrever eram principalmente homens do sacerdócio. Durante todo o século I d.C. (a época de Jesus e Simão Pedro), temos certeza de apenas dois autores na Palestina que produziram obras literárias (isto é, composições cultas que não documentos fiscais, transferências de terras ou certidões de casamento etc.): o historiador judeu Josefo e um homem chamado Justo de Tiberíades. Ainda temos os escritos de Josefo, mas os de Justo não sobreviveram. Os dois homens eram dos escalões superiores da sociedade, e ambos atipicamente bem-educados. Não temos conhecimento de qualquer outro autor literário ao longo de todo o século. Seria Pedro da mesma classe de Josefo e Justo? Não, nem de longe. 

E quanto à educação em grego na terra em que Pedro nasceu e foi criado? Algumas vezes se imagina que, como a Galileia, a região norte do que hoje chamamos de Israel foi eventualmente chamada de “Galileia dos gentios”, ela era repleta de gentios na época de Jesus e Pedro. E, segundo um tipo comum de lógica, se havia muitos gentios na Galileia, deviam falar grego; em nome da convivência, todos tinham de falar grego. Mas isso também não é verdade. 

Os estudos recentes mais abrangentes sobre os gentios na Galileia foram feitos pelo estudioso americano Mark Chancey.71 Ele estudou todas as descobertas arqueológicas da Galileia por volta do século I, leu todos os textos minimamente relevantes do período e chegou a uma conclusão decisiva: os gentios da Galileia se localizavam quase exclusivamente nas duas maiores cidades, Séforis e Tiberíades. Todo o resto da Galileia era predominantemente judeu. E, como a maior parte da Galileia era rural, não urbana, a imensa maioria dos judeus não se encontrava com gentios. Além disso, o grego não era muito falado. A imensa maioria dos judeus falava aramaico e não tinha facilidade em grego. 

Como todas essas descobertas afetam nossa questão de se Pedro escreveu 1 e 2 Pedro ou qualquer outro livro? Estaria Pedro entre os escalões mais altos da elite educada da Palestina que podiam compor ensaios epistolares em grego? Afora os relatos lendários que mencionei, tudo que sabemos sobre a vida de Pedro vem do Novo Testamento. O principal que aprendemos sobre ele é que, antes de ser um seguidor de Jesus, era pescador em Cafarnaum, na Galileia. 

Portanto, para avaliar as capacidades linguísticas de Pedro, o ponto de partida é Cafarnaum. Um resumo completo do que sabemos sobre Cafarnaum na época de Pedro é fornecido por um arqueólogo americano da Palestina, Jonathan Reed.72 Com base em escavações arqueológicas e fontes históricas, está claro que Cafarnaum era uma aldeia historicamente insignificante do interior da Galileia. Ela nunca é mencionada em qualquer fonte antiga antes dos evangelhos. Mal é mencionada em qualquer fonte depois disso. Foi localizada pelos arqueólogos no século XIX e tem sido escavada desde então. Na época de Jesus, devia ter tido algo entre seiscentos e 1.500 habitantes; portanto, digamos que fossem mil. 

As escavações arqueológicas não revelaram evidências de nenhum prédio público, como lojas ou depósitos.73 O mercado de venda de comida e outras necessidades devia acontecer em barracas ou tabuleiros em áreas públicas sem calçamento. A cidade não está em nenhuma das grandes rotas comerciais internacionais. As estradas romanas na região datam de cem anos após a vida de Pedro. Não há vestígios de qualquer população pagã ou gentia na cidade. Não há inscrições de qualquer tipo em qualquer dos prédios. Reed conclui que os habitantes eram muito provavelmente “predominantemente analfabetos”. Os arqueólogos não encontraram estruturas de prédios ou materiais associados às elites sociais do século I (como superfícies emboçadas, afrescos decorativos, mármore, mosaicos, telhas de cerâmica vermelha). As casas eram construídas de modo grosseiro com pedras de basalto e lama ou argila para preencher as lacunas; é provável que tivessem tetos de palha. 

Resumindo, a cidade de Pedro era uma aldeia judaica atrasada, composta de trabalhadores miseráveis que não tinham educação. Todos falavam aramaico. Nada sugere que alguém soubesse falar grego. Nada sugere que alguém na cidade soubesse escrever. Como pescador de classe baixa, Pedro teria começado a trabalhar quando criança e sem nunca frequentar uma escola. De fato, é provável que não houvesse escola ali; se houvesse uma, ele provavelmente não a frequentava; e, se frequentasse, teria sido para receber uma educação rudimentar para ler hebraico. Mas isso provavelmente não aconteceu. Pedro era um camponês analfabeto. 

Na verdade, isso não devia ser surpresa. Há no Novo Testamento evidências do nível de educação de Pedro. Segundo Atos 4,13, Pedro e seu companheiro João, também pescador, eram agrammatoi, uma palavra grega que significa literalmente “iletrados”, ou seja, “analfabetos”. 

E, assim, é possível que Pedro tenha escrito 1 e 2 Pedro? Vimos bons motivos para acreditar que ele não escreveu 2 Pedro, e alguns motivos para pensar que não escreveu 1 Pedro. Ao contrário, é provável que ele não soubesse escrever. Devo destacar que o livro 1 Pedro é escrito por um cristão bem-alfabetizado, bem-educado na língua grega, que conhece bem as Escrituras hebraicas em sua tradução para o grego, a Septuaginta. Esse não é Pedro. 

É   possível, claro, que Pedro tenha decidido ir para a escola após a ressurreição de Jesus. Nessa hipótese imaginativa (para não dizer imaginária), ele aprendeu o alfabeto, aprendeu a pronunciar sílabas e depois palavras, aprendeu a ler e aprendeu a escrever. Depois fez aulas de grego, dominou o grego como língua estrangeira e começou a decorar trechos da Septuaginta, depois teve aulas de composição em grego e aprendeu a construir frases complicadas e eficazes; então, no fim de sua vida, escreveu 1 Pedro. 

Esse cenário é plausível? Afora o fato de que não temos conhecimento de aulas de “educação para adultos” na Antiguidade — não há evidência de que isso existisse —, acho que as pessoas mais razoáveis concluiriam que Pedro provavelmente tinha outras coisas na cabeça e nas mãos após ter passado a acreditar que Jesus foi erguido dos mortos. É provável que ele não tenha pensado um só segundo em aprender e se tornar um autor grego habilidoso. 

Alguns acadêmicos sugeriram que Pedro não escreveu diretamente 1 Pedro (como já indiquei, quase ninguém acha que ele escreveu 2 Pedro), mas que a escreveu indiretamente, por exemplo, ditando a carta a um escriba. Alguns observaram que a carta é escrita “por intermédio de Silvano” (5,12) e acharam que talvez Silvano tenha escrito os pensamentos de Pedro para ele. Lido com essa questão de se escribas ou secretários algum dia compuseram ensaios epistolares como esses no capítulo 4. A resposta é “Provavelmente não”. Mas, por ora, posso dizer pelo menos duas coisas sobre o caso de 1 Pedro. 

Para começar, os acadêmicos atuais em geral reconhecem que quando o autor indica ter escrito o livro “por intermédio de Silvano” está indicando não o nome de seu secretário, mas da pessoa que levava a carta aos destinatários. Autores que usaram secretários não se referem a eles dessa forma. 

No entanto, por que não supor que Pedro usou outra pessoa que não Silvano como secretário? Ajudaria imaginar como essa teoria deveria funcionar. Pedro não podia ter ditado essa carta em grego para um secretário mais do que podia tê-la escrito em grego. Isso teria exigido que ele fosse fluente em grego, dominasse técnicas retóricas em grego e tivesse um grande conhecimento das Escrituras judaicas também em grego. Nada disso é plausível. Nem é fácil pensar que ele ditou a carta em aramaico e o secretário a traduziu para o grego. A carta não soa como uma tradução para o grego de um original aramaico, mas como uma composição originalmente grega, com floreios retóricos gregos. Ademais, a carta pressupõe o conhecimento do Antigo Testamento grego, de modo que a pessoa que compôs a carta (oralmente ou por escrito) tinha de conhecer as Escrituras em grego. 

É      possível, então, que o Pedro histórico tivesse orientado alguém a escrever uma carta, basicamente transmitindo a ele o que dizer, deixando que a produzisse? Há duas respostas para isso. Em primeiro lugar, pareceria que, se outra pessoa compôs a carta, seria essa pessoa, e não Pedro, o autor. Mas a outra pessoa nunca é citada. Mesmo nas cartas de Pedro, que são escritas em parceria (quase todas elas), ele cita os outros, embora provavelmente as tenha escrito ele mesmo. Nesse caso, Pedro não teria sequer escrito tal coisa. E é preciso lembrar que há bons motivos para pensar que a carta foi escrita após a morte de Pedro, já que alude à destruição de Jerusalém por Roma no ano 70 d.C. 

Entretanto, ainda mais convincente é isto. Onde no mundo antigo temos alguma coisa análoga a essa situação hipotética de alguém escrever um ensaio epistolar para outra pessoa e colocar o nome dessa pessoa nele — o nome da pessoa que não o escreveu — em vez do seu próprio nome? Até onde sei, não há, na Antiguidade, um único caso atestado de tal procedimento nem qualquer discussão, em qualquer fonte antiga, sobre isso ser uma prática legítima. Ou mesmo ilegítima. Tal coisa nunca é discutida. 

Contudo, há muitos casos de outro fenômeno: o de autores cristãos escrevendo obras pseudônimas, alegando falsamente ser uma pessoa famosa. Acadêmicos antigos teriam chamado um livro assim de uma escrita “falsamente registrada”, uma “mentira”, um filho “ilegítimo”. Pessoas modernas o chamariam de falsificação.

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