3) Capítulo Três - Falsificações em nome de Paulo

Capítulo Três - Falsificações em nome de Paulo 

 Quando me tornei um cristão renascido em 1971, estava ansioso para ler e aprender tudo o que pudesse sobre as Escrituras. Na época, não tinha ideia de que existia algo como erudição bíblica ou que havia livros escritos por especialistas de verdade que dominavam os idiomas antigos — grego e hebraico, por exemplo — e investigavam todas as fontes antigas por anos seguidos para poder oferecer relatos historicamente precisos. Eu apenas ficava tão feliz com um bom romance sobre, digamos, Jesus ou Paulo quanto com algo sério. E os romances, claro, eram uma leitura fácil, exatamente o tipo de coisa de que eu gostava. 

No ano anterior, tinha sido lançado um dos romances bíblicos de maior sucesso de todos os tempos, O grande amigo de Deus, de Taylor Caldwell, um relato ficcional da vida do apóstolo Paulo. Ele permaneceu oito meses na lista dos mais vendidos do New York Times e, no que me dizia respeito, se tantas pessoas haviam lido, deveria ser preciso e informativo. Então o devorei. Somente muito depois notei quanta ficção havia naquele romance “histórico”. Lembro-me de, anos depois, esperar fervorosamente não ter tirado uma parcela grande demais de meu “conhecimento comum” de Paulo daquele relato fantástico. 

O principal episódio que me deteve ao longo dos anos envolvia a tentativa de Caldwell explicar por que Paulo estava tão pronto para se converter em um seguidor de Jesus após ter sido um perseguidor tão violento da Igreja. O modo como apresentou a situação foi, em linhas gerais, assim: no começo da adolescência, Paulo era muito zeloso de sua fé judaica e se esforçava muito para seguir a lei judaica. Mas, em dado momento, sucumbiu a uma tentação irresistíve74. Ela envolveu um encontro secreto no lago da região com uma garota escrava, de cabelos escuros. Esse encontro sexual produziu um enorme fardo de culpa no jovem Paulo, que tentou aplacá-la tornando-se ainda mais religioso. Quando jovem, ele ouviu falar dos seguidores de Jesus, que pregavam que a salvação era possível para pessoas que não seguiam a lei. A salvação se dava pela fé em Cristo. Paulo ficou furioso e conseguiu autorização oficial para se opor a eles e persegui-los. Era mais uma forma de resolver sua própria culpa; ao se entregar ao zelo religioso, aplacava sua consciência. Mas ele descobriu que quanto mais se esforçava para seguir a lei judaica em todos os seus rigorosos detalhes, mais esmagado ele ficava pela culpa de tê-la violado.

Ele então teve uma visão de Jesus na estrada para Damasco. Pela primeira vez, reparou que não podia seguir a lei, e que não precisava. Jesus o libertou da profunda culpa oculta dentro de si, e, por uma profunda gratidão, ele se lançou com igual zelo no trabalho missionário da Igreja em vez de ser seu repressor. 

O longo livro de Caldwell era uma leitura cativante, sobretudo para um adolescente ansioso querendo saber mais sobre a verdade de sua fé recém-descoberta. Mas, no fim, toda a trama é ficção. Não há registro histórico do encontro sexual de Paulo no lago nem indicação de que se sentiu terrivelmente culpado por não cumprir a lei, embora muitos cristãos continuem a interpretar Paulo equivocadamente dessa forma. Temos uma razoável noção do que Paulo pensava, já que nos deixou algumas cartas (todas no Novo Testamento). Quando ele fala sobre sua vida de judeu antes de Jesus, embora indique que era extremamente zeloso com a lei, deixa bastante claro que isso não se devia à culpa por não conseguir segui-la. Ao contrário, indica que, como um judeu praticante, ele era “irrepreensível” em seguir a lei (Fl 3,6). Quando se tornou seguidor de Jesus, não foi para solucionar o conflito interno e a culpa. Foi por ter notado de que a morte de Cristo era a única coisa importante para a salvação, e que tudo o mais, até mesmo a lei, era tão inútil quanto “esterco” (como define em Fl 3,8). 

Taylor Caldwell, claro, teve acesso aos escritos do próprio Paulo e sabia o que ele de fato dissera sobre sua vida antes de Jesus. Mas, provavelmente, a realidade de sua vida não dava uma história tão boa quanto a ideia do encontro secreto com a escrava. Ter o verdadeiro relato da boca certa nunca impediu as pessoas de contar relatos ficcionais sobre Paulo. 

ANTIGAS FICÇÕES SOBRE PAULO 

É   provável que, de todos os cristãos que já viveram, nenhum tenha mais histórias contadas sobre si do que Paulo. Ainda temos uma série de antigos relatos lendários, assim como no caso de Pedro. No caso de Paulo, há o registro de alguém sendo apanhado com a mão na massa, inventando histórias sobre ele e sendo punido por isso. Os antigos viam invenções sobre personagens históricos (isto é, histórias inventadas) basicamente da mesma forma como viam as falsificações (falsas alegações autorais): eram pseuda, “falsidades” ou “mentiras”, e não costumavam ser toleradas. 

Muitos dos antigos relatos inventados podem ser encontrados em um livro que sobreviveu à ação do tempo, em fragmentos, chamado Atos de Paulo. A narrativa descreve as atividades missionárias de Paulo, sua pregação e seus milagres impressionantes. Provavelmente, a parte mais famosa da história envolve a conversão de uma mulher rica chamada Tecla, que abandona o noivo para se tornar seguidora devotada de Paulo.

É   dito que Paulo chegou à cidade de Iconium, tendo sido recebido na casa de um cristão chamado Onesíforo. Ele faz um sermão lá. Mas é um sermão bastante diferente de qualquer coisa que o próprio Paulo ensina em suas cartas no Novo Testamento, nas quais sua mensagem sempre se refere à necessidade de acreditar na morte e na ressurreição de Jesus para ter a salvação. Ali, nos Atos de Paulo, a mensagem do apóstolo é de abstinência sexual. Apenas os puros de coração e corpo, preservados por se manterem sexualmente castos, podem herdar o Reino. Isso se aplica não apenas aos solteiros, mas também aos casados. O sexo é proibido. Tecla, que mora ao lado, por acaso está sentada à janela do segundo andar e escuta o sermão. Ela é noiva de um homem rico e importante, mas com base no que ouviu decide abandonar os planos de casamento e seguir Paulo. Sua mãe e seu noivo ofendido tentam em vão dissuadi-la. Rejeitados e com raiva, eles a entregam às autoridades locais para que seja queimada na fogueira por violar os costumes sociais. Ela escapa milagrosamente e se torna seguidora de Paulo. O resto da narrativa é sobre suas aventuras com Paulo e suas perseguições. 

Em outra cidade, ela resiste ao assédio sexual de um aristocrata e mais uma vez é condenada à morte. Dessa vez, a ser jogada às feras. Mas fica aborrecida com o risco de morrer antes de ter sido batizada em sua nova fé. Vendo um grande reservatório de água cheio de focas devoradoras de homens (o que quer que isso seja), ela se joga nele e se declara batizada. Deus faz outro milagre, e Tecla escapa incólume. Ela enfim se junta ao apóstolo Paulo, fala a ele de seu desejo de disseminar o evangelho e é autorizada a fazê-lo. 

Apresentei apenas um breve resumo dessa longa e interessante história. O relato completo foi muito popular em certos grupos cristãos nos primeiros séculos. E causou grande agitação entre líderes da Igreja, que ficaram ofendidos pelo papel significativo que atribuía a Tecla como alguém que podia batizar (a si mesma!) e pregar o evangelho, mesmo sendo mulher. No século II, a maioria das igrejas reservava essas funções aos homens. Mas essas histórias, por intermédio de uma figura com o significado de Paulo, pareciam autorizar as mulheres a isso. Além do mais, o texto do “evangelho” de Paulo é inteiramente acerca de abstinência sexual e de evitar o casamento. Nas outras igrejas, era ensinado que a família era importante, que os líderes da igreja, do sexo masculino, deveriam ser casados, que suas esposas deveriam ter filhos e ser submissas aos maridos em tudo. A perspectiva alternativa da história de Tecla levou a algumas sérias divisões na Igreja.75 

Sabemos disso porque a primeira vez que um autor antigo menciona a história é para se opor a ela. O escritor foi o famoso teólogo cristão, defensor da fé e misógino Tertuliano, que por volta de 200 d.C. escreveu um tratado sobre o batismo. Nesse trabalho, ataca as mulheres que usaram a história de Tecla como justificativa para praticar o batismo, já que para Tertuliano apenas homens deveriam ser autorizados a batizar. Tertuliano argumenta que essa história de Tecla era inventada e não tinha valor histórico. Na verdade, diz que o autor da história era um ancião (“presbítero”) de uma igreja da Ásia Menor. Ele foi flagrado falsificando o relato, julgado pela Igreja e afastado de suas funções. Assim, para Tertuliano, a história não podia ser utilizada para autorizar a prática do batismo por mulheres.76

Com frequência, os estudiosos citam essa passagem curta, mas fascinante, de Tertuliano para mostrar que os falsificadores não eram bem-vindos na Igreja. Gostaria que isso fosse o importante da história, já que acho ser verdade que os falsificadores não eram bem-vindos. Mas, infelizmente, a história não é sobre um falsificador. É sobre um inventor. Esse presbítero da Ásia Menor não escreveu um livro alegando ser Paulo; escreveu um livro com histórias inventadas sobre Paulo. Ao mesmo tempo, é verdade dizer que foi tratado como os falsificadores costumavam ser tratados. Foi censurado severamente por não falar a verdade. 

Com bons motivos, vários estudiosos argumentaram que o presbítero, na verdade, não inventara as histórias sobre Tecla, apenas as recontara, editando-as com seus próprios objetivos. Em outras palavras, as histórias circulavam na tradição oral muito antes do fim do século II, quando ele produziu seu relato. Pode muito bem ser o caso, como veremos mais adiante neste capítulo, quando voltarmos às histórias. Mas de qualquer forma alguém inventou os casos, já que não são históricos. O autor ou editor que as escreveu foi encontrado. E as consequências não foram boas. 

ESCRITOS NÃO CANÔNICOS FALSIFICADOS EM NOME DE PAULO

Se cristãos inventaram histórias sobre Paulo, também inventaram escritos supostamente de Paulo? Foi a pergunta que fizemos em relação a Pedro no capítulo 2, e a resposta aqui é a mesma. Há muitas falsificações em nome de Paulo nos primórdios da Igreja, todas elas, pelo que podemos dizer, escritas para “autorizar” certas visões com o nome desse grande autor. Algumas dessas falsificações foram preservadas; sabemos de outras que existiram, mas desapareceram desde então. 

Falsificações perpetradas por Marcião 

Você pode pensar que alguém da estatura de Paulo teria uma influência unificadora sobre a Igreja primitiva. No entanto, nada poderia ser mais distante da verdade. Aproximadamente na época em que o presbítero da Ásia Menor estava apresentando histórias sobre Paulo que levaram a divisões acerca do papel das mulheres na Igreja, uma ameaça ainda maior à unidade da Igreja surgia de uma direção totalmente diferente. Envolvia os ensinamentos de um dos primeiros e maiores admiradores de Paulo, o mestre e teólogo do século II Marcião.77 

É      uma infelicidade que não tenhamos mais qualquer dos escritos de Marcião. Eles foram considerados heréticos (“falsos ensinamentos”) e destruídos. O que temos são os escritos de seus adversários, entre eles, em especial, o já mencionado Tertuliano, que escreveu uma refutação em cinco volumes dos ensinamentos de Marcião. Ainda temos esse trabalho, e é uma mina de ouro de informações sobre uma das pessoas mais causadoras de dissensão na história dos primórdios da Igreja.

Marcião veio da cidade de Sinope, no litoral sul do mar Negro. Seu pai seria um bispo da igreja local, de modo que Marcião foi criado, no começo do século II, em uma casa cristã. Sua família era da classe superior, e ele mesmo se tornou empresário quando jovem, ao que parece, construindo embarcações. Após ter reunido uma grande fortuna, trocou a Ásia Menor pela capital do império, Roma, onde ingressou na Igreja e participou ativamente do ministério. Os acadêmicos tradicionalmente datam a estadia de Marcião em Roma como entre 139 e 144 d.C. 

Foi em Roma que Marcião desenvolveu suas marcantes ideias teológicas. Foi atraído especialmente pela ideia de Paulo de que a pessoa é justa perante Deus não seguindo as exigências da lei judaica (“os mecanismos da lei”, como diz Paulo), mas apenas tendo fé na morte e na ressurreição de Cristo. Paulo, em livros do Novo Testamento, como as epístolas aos gálatas e aos romanos, enfatiza que ninguém pode ser justo perante Deus por meio dos mecanismos da lei. Ele pregou seu “evangelho” (literalmente, a “boa-nova”) aos gentios, dizendo a eles que a morte de Cristo podia levar a uma reconciliação com Deus para todos que tivessem fé. 

Marcião via esse contraste entre a lei dos judeus e o evangelho de Cristo em termos radicais, e levou o contraste ao que considerava ser suas consequências lógicas. Onde há lei não há evangelho. A lei e o evangelho são fundamentalmente distintos. São coisas opostas. O Antigo Testamento não tem nada a ver com o evangelho de Paulo. Para Marcião, a conclusão necessária era que o Deus que deu a lei judaica não podia ser o Deus que salvava as pessoas de seus pecados, nos quais incorreram violando a lei. Em outras palavras, o Deus do Antigo Testamento não era o mesmo Deus de Jesus e seu apóstolo Paulo. Havia literalmente dois deuses. 

Marcião argumentava que o Deus do Antigo Testamento era o Deus judaico que criara este mundo, escolhera Israel como seu povo e depois dera a ele sua lei. Contudo, ninguém era capaz de seguir essa lei. Então, o Deus do Antigo Testamento tinha toda a justificativa para condenar todos à danação. Ele era um Deus justo e colérico — não era malvado, apenas um julgador impiedoso. O Deus de Jesus, por outro lado, era um Deus de amor, misericórdia e perdão. Esse Deus bom, superior ao Deus dos judeus, enviou Jesus ao mundo para morrer pelos pecados dos outros, salvar as pessoas do Deus colérico do Antigo Testamento. Portanto, a salvação vem da crença na morte de Jesus. 

Marcião planejou provar sua doutrina dos dois Deuses escrevendo um livro chamando Antithesis (isto é, “afirmações contrárias”). Nele, declarou que havia graves inconsistências entre o Antigo Testamento e os ensinamentos de Jesus e Paulo. O Deus do Antigo Testamento, por exemplo, ordena aos israelitas que tomem a terra prometida, em primeiro lugar, destruindo a cidade de Jericó (Js 6). Ele os orienta a entrar na cidade e massacrar todo homem, mulher e criança em seu interior. Esse é o mesmo Deus, pergunta Marcião, que diz “Ame seus inimigos”, “Dê a outra face” e “Reze por aqueles que o perseguem”? Não parece o mesmo Deus. Porque não é. 

O Deus do Antigo Testamento enviou seus profetas, um dos quais era Eliseu. Certo dia, é dito no Antigo Testamento, Eliseu foi atacado verbalmente por um grupo de meninos debochando de sua cabeça calva. Eliseu lançou a ira de Deus sobre os meninos, e duas ursas saíram da floresta e despedaçaram 42 deles (2Rs 2). É esse o mesmo Deus que disse “Vinde a mim as criancinhas”? Não, há dois deuses diferentes. 

Como o Deus de Jesus não é o Deus do Antigo Testamento, não sendo, portanto, o criador do mundo, Jesus não poderia pertencer a essa ordem criada. Ele não poderia ter nascido neste mundo como um ser de carne e osso; do contrário, pertenceria ao Deus dos judeus, assim como todos os outros seres criados. Jesus precisava ter vindo do céu, diretamente do verdadeiro Deus. Por essa razão, não era um ser humano físico real. Apenas parecia ser. Em outras palavras, Marcião era um docético (ver capítulo 2). Para essa visão, ele mais uma vez poderia apelar aos escritos de Paulo, que afirmou que Jesus viera a este mundo “em carne semelhante à do pecado” (Rm 8,3). Para Marcião, tudo era aparência. 

Marcião é o primeiro cristão registrado a ter insistido em um diferente cânone de Escrituras, ou seja, uma coletânea de livros que considerava autoridade sagrada. O cânone de Marcião era muito pequeno segundo a maioria dos padrões. Como o Deus judeu não era o verdadeiro Deus, seu livro não fazia parte das Escrituras cristãs. Não havia um Antigo Testamento cristão. Em vez disso, o cânone era composto de duas partes. Uma consistia nas epístolas de Paulo. Ao que parece, Marcião conhecia dez delas, todas aquelas do Novo Testamento, com exceção de 1 e 2 Timóteo e Tito, as chamadas epístolas pastorais. Ademais, em suas cartas, Paulo constantemente se refere a seu “evangelho”. Então, Marcião incluiu como a outra parte de seu cânone um evangelho relatando a vida de Jesus. Aparentemente, era uma versão do Evangelho de Lucas. 

O problema com esse cânone de 11 livros é que mesmo esses livros citam o Antigo Testamento como autoridade e parecem afirmar a Criação como fruto do verdadeiro Deus. Como poderia ser assim se a visão que Marcião tinha de Paulo e Jesus era verdadeira? Marcião tinha uma resposta fácil para isso. Ele acreditava que, após Jesus deixar esta terra, seus seguidores, os discípulos, mudaram seus ensinamentos e voltaram a seus antigos hábitos judaicos, não compreendendo sua mensagem e distorcendo-a para afirmar a bondade do Deus criador e Sua criação. Eles nunca entenderam plenamente o ensinamento de Jesus de que o Criador não era o verdadeiro Deus. Por isso, Paulo teve de ser convocado a ser um apóstolo. Os apóstolos antes dele haviam alterado os ensinamentos de Jesus, então Paulo tinha sido encarregado de acertar tudo. Segundo Marcião, essa ampla leitura equivocada da mensagem de Jesus afetara muitos outros cristãos, incluindo os escribas que copiaram os escritos de Paulo e Lucas. Esses 11 livros, na verdade, tinham sido copiados equivocadamente ao longo dos anos. Escribas que não entendiam a verdade — que havia dois deuses, que Jesus não havia de fato nascido e não era realmente humano, e assim por diante — alteraram os textos e inseriram falsas visões neles. Marcião então editou seus 11 livros, eliminando deles trechos que pareciam judaicos demais. 

Além desses 11 livros, Marcião e seus seguidores tinham outros falsificados em nome de Paulo. Sabemos disso por um fragmento de texto do século II que chegou até nós e discute quais livros pertencem ao verdadeiro cânone das Escrituras, em oposição aos cânones de Marcião e outros hereges. Esse texto é chamado de Cânone Muratori, em homenagem ao acadêmico italiano Muratori, que o descobriu.78 Entre outras coisas, o Cânone Muratori indica que os marcionitas, os seguidores de Marcião, falsificaram dois livros em nome de Paulo, uma epístola aos cristãos da cidade de Alexandria e uma aos da cidade de Laodiceia. Essas epístolas aos alexandrinos e laodicenses infelizmente não existem mais. Mas podemos estar certos de que, se um dia aparecerem, representarão, com ainda mais veemência que nos livros do cânone de Marcião, suas visões particulares sobre os dois deuses, o Jesus não humano e a salvação que ele trouxe. 

3 Coríntios 

Era muito comum para cristãos “ortodoxos” (isto é, cristãos que partilhavam as visões teológicas que acabaram sendo aceitas por todo o cristianismo) acusar os “hereges” (aqueles que ofereciam “falsos ensinamentos”) de forjar documentos em nome dos apóstolos com o intuito de sustentar seus pontos de vista. Veremos muito mais sobre esse fenômeno no capítulo 6. O Evangelho de Pedro, por exemplo, foi acusado de ser herético por ensinar uma visão docética de Jesus. Mas os cristãos ortodoxos também falsificavam seus documentos. Temos muito mais desse tipo de falsificação, já que era maior a probabilidade de que escritos ortodoxos fossem preservados para a posteridade, mesmo não sendo de fato escritos pelos autores alegados. 

Todos familiarizados com o Novo Testamento sabem que ele contém duas epístolas de Paulo à igreja de Corinto, chamadas 1 e 2 Coríntios. O que a maioria das pessoas não sabe é que fora do Novo Testamento há um livro chamado 3 Coríntios. É um livro fascinante, escrito em nome de Paulo para se opor a heréticos como Marcião. Mas Paulo não o escreveu. É uma falsificação ortodoxa do século II.79 

Como as histórias de Tecla, 3 Coríntios pode ser encontrada nos Atos de Paulo. Segundo o relato, dois heréticos foram a Corinto pregando suas falsas visões: Simão, o Mágico, que já conhecemos, e Cleóbio. Os cristãos coríntios ficaram perturbados com o que ouviram e escreveram a Paulo pedindo que corrigisse os ensinamentos heréticos e fosse ele próprio endireitar aqueles que haviam sucumbido a eles. 

Essa carta a Paulo, falsificada em nome dos coríntios, é a primeira parte de 3 Coríntios. Ela apresenta as alegações dos dois falsos mestres, como: que é errado apelar aos profetas do Antigo Testamento, que Deus “não é todo-poderoso” (isto é, que o Deus criador não é Deus acima de tudo), que não haverá ressurreição futura da carne, que o mundo não foi criado por Deus, que Cristo não veio à Terra em carne de verdade, que ele não nasceu de Maria e que o mundo não foi criado por Deus, mas por anjos. 

Muito disso se parece com o ensinamento de Marcião. Como vimos, Marcião desvalorizava a “carne” humana porque rejeitava a ideia de que o Criador deste mundo é o verdadeiro Deus. E o Criador, claro, é aquele que fez os seres de carne. Consequentemente, os seguidores de Marcião não acreditavam que a vida após a morte seria vivida “na carne”; não haveria ressurreição física no fim dos tempos. Da mesma forma, Cristo não podia ter verdadeira carne e, na verdade, não nascera. Como para Marcião o Antigo Testamento não faz parte da Bíblia cristã, não é possível apelar aos profetas, e o Deus Criador não é o verdadeiro Deus.

Pelo menos um aspecto dos alegados ensinamentos de Simão e Cleóbio não parece ser de Marcião: o ensinamento de que o mundo foi criado “por anjos”. Marcião: sustentava que tinha sido criado pelo Deus do Antigo Testamento. Ou alguns dos seguidores de Marcião pensavam que o Deus judaico havia criado o mundo se valendo de poderosos intermediários angelicais; ou os fictícios oponentes dos coríntios não eram seguidores de Marcião propriamente, mas “heréticos” com visões muito similares às dele.

O resto de 3 Coríntios é a carta de resposta de Paulo. Essa carta é muito mais longa que a dos coríntios, e nela “Paulo” argumenta com veemência contra os pontos de vista heréticos apresentados pelos falsos mestres. Ele afirma que a mensagem que prega é aquela que recebeu dos outros apóstolos, “que estiveram com o Senhor Jesus o tempo todo”. Em outras palavras, sua mensagem não é exclusiva dele. Isso está em desacordo com Marcião, que via Paulo como o apóstolo por excelência, opondo-se aos falsos ensinamentos dos outros apóstolos que haviam corrompido a mensagem de Jesus. Paulo continua insistindo em que Jesus nascera de Maria e viera em carne para redimir toda a carne e erguer as pessoas dos mortos, em carne. O verdadeiro Deus é o Criador, e os profetas eram seus porta-vozes. 

Essa ênfase na “carne” é muito interessante, mas também um tanto irônica. Um estudo recente de 3 Coríntios mostrou que o falsificador, que pretendia se opor aos falsos ensinamentos dos heréticos, o fez ensinando ideias sobre a carne contrárias ao que o verdadeiro Paulo histórico ensinara.80 O próprio Paulo sem dúvida acreditava que Deus criara este mundo e que, no fim dos tempos, Ele o redimiria. Como a maioria dos judeus e cristãos de sua época, Paulo pensava que no fim desta era haveria uma ressurreição do corpo. Ou seja, os humanos enfrentariam o julgamento, seriam recompensados ou punidos em seus próprios corpos, que tinham sido erguidos dos mortos (ver, por exemplo, 1Co 15). Mas Paulo não chamava o corpo de “carne”. Ao contrário, “carne” significava algo diferente para Paulo. Significava a parte da natureza humana controlada pelo pecado e distante de Deus (ver, por exemplo, Rm 8,1-9). Para Paulo, a “carne” precisava ser superada, já que era controlada pelo pecado. O corpo humano seria erguido dos mortos, mas a carne tinha de morrer. 

Essa compreensão um tanto técnica do termo “carne” foi perdida no cristianismo ortodoxo posterior quando teólogos começaram a pensar que carne e corpo eram a mesma coisa. E isso aconteceu aqui, em 3 Coríntios. Diferentemente de Paulo, o autor enfatiza a importância da carne como uma criação de Deus que será erguida. Em outras palavras, esse é um caso em que um falsificador alegando ser Paulo defende um ponto de vista contrário ao de Paulo, embora esteja tentando corrigir, em nome deste, ensinamentos que acredita serem falsos.

As cartas de Paulo e Sêneca 

Uma pauta completamente diferente é encontrada em uma falsificação bem posterior de cartas paulinas que estava destinada a ser muito influente na opinião cristã futura sobre Paulo. No fim do século II, muitos cristãos — não apenas Marcião — consideravam Paulo o personagem mais importante da religião depois de Jesus. Paulo era visto como o grande apóstolo, o grande porta-voz, o grande teólogo da Igreja. Seus escritos eram muito lidos, e suas opiniões, bastante apreciadas. Mas, com o passar dos anos, os cristãos começaram a pensar por que, se Paulo era um pensador tão brilhante e astuto, nenhum dos outros grandes pensadores de sua época o mencionava. Por que parecia ser um grande desconhecido no Império Romano, fora da própria Igreja cristã? 

Em algum momento do século IV, um autor desconhecido buscou abordar a questão e o fez falsificando uma série de 14 cartas entre Paulo e o filósofo romano Sêneca.81 Sêneca era reconhecido como o maior filósofo romano de sua época, um dos verdadeiros gigantes intelectuais do começo do Império Romano. Integrava a camada superior da sociedade, sendo tutor e mais tarde conselheiro do imperador Nero. Vários dos escritos filosóficos de Sêneca eram largamente lidos na Antiguidade, e um bom número deles existe até hoje. Mas em nenhum desses escritos ele menciona a existência do cristianismo ou se refere a Jesus ou a qualquer dos grandes líderes da nova fé. 

Essas 14 cartas corrigem o dano causado. Oito das 14 são supostamente cartas de Sêneca a Paulo; as outras seis, as respostas de Paulo. Os leitores modernos dessas cartas costumam ficar um pouco desapontados pelo conteúdo ser tão árido. Seria de esperar algumas boas fofocas entre o grande pensador do século I e o maior apóstolo da Igreja. Mas, com uma única exceção, o objetivo das cartas não é oferecer histórias inventadas sobre a vida no palácio imperial, por exemplo. O objetivo é mostrar que Paulo era bem-situado e respeitado por intelectuais da sua época. 

Em sua primeira carta, “Sêneca” elogia Paulo por suas “maravilhosas exortações sobre a vida moral” e indica que esses são ensinamentos divinos nem tanto ditos por Paulo, mas, por intermédio dele, por Deus. Paulo, em sua resposta, indica que Sêneca dissera a verdade. Em outra carta, Sêneca louva o “discurso sublime” de Paulo e seus “pensamentos, os mais veneráveis”, e indica que o próprio imperador Nero leu as cartas e ficou comovido com os sentimentos de Paulo. Tudo isso, claro, é falsidade histórica. É muito provável que Sêneca nunca tenha ouvido falar de Paulo. Mas isso dá uma boa história trezentos anos depois. 

Em uma única carta, há uma referência histórica interessante. Na carta 11 (algumas vezes numerada como 14, já que parece ser a última em termos cronológicos), Sêneca lamenta que Paulo tenha sido condenado à morte sendo inocente. É uma referência à tradição de que Paulo esteve entre os cristãos martirizados por Nero, que os culpou por iniciar o incêndio que queimou a cidade de Roma — e que ele mesmo pode ter começado. Sêneca afirma que o incêndio durou seis dias, destruindo 132 palácios e 4 mil prédios de apartamentos. E mostra seu incômodo por cristãos e judeus estarem sendo executados por Nero, um governante injusto “que tem prazer em assassinato e usa mentiras como disfarce”. Mas os dias do imperador estavam contados, e ele pagaria a punição suportando tormentos eternos. “Esse amaldiçoado será queimado no fogo para sempre.” 

Aqui temos não apenas um conjunto de falsificações escritas em nome de Paulo e Sêneca séculos após terem morrido, mas também um relato inventado de como um filósofo tão eminente apreciava Paulo e considerava a ele e seus irmãos cristãos inocentes das acusações de incêndio criminoso, feitas em 64 d.C. Cristãos de séculos posteriores levaram muito a sério esses escritos. Mais tarde, se tornou lugar-comum que Sêneca conhecia o apóstolo Paulo e sua mensagem cristã, e que o famoso filósofo, a maior mente de sua época, estava aberto ao evangelho de Cristo. 

ESCRITOS “PAULINOS” NO NOVO TESTAMENTO 

Assim com Pedro, o mesmo com Paulo. Fora do Novo Testamento, há muitas histórias inventadas sobre ele e vários escritos, apenas supostamente, assinados por ele. Todos os escritos atribuídos a Paulo fora do Novo Testamento foram falsificados. Há falsificações paulinas dentro do Novo Testamento? 

Mais uma vez há aqui um amplo consenso acadêmico. Há 13 cartas cuja autoria é atribuída a Paulo, quase metade dos livros do Novo Testamento. Mas é provável que seis delas não tenham sido escritas por ele. Acadêmicos chamaram essas seis de epístolas “deuteropaulinas”, significando que têm uma posição “secundária” no corpo dos escritos de Paulo. 

Quase todos os estudiosos concordam que sete das epístolas paulinas são autênticas: Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemom. Essas sete são coerentes e parecem, estilística e teologicamente, e em quase todas as outras características, ser da mesma pessoa. Todas são atribuídas a Paulo. Há poucos motivos para duvidar de que realmente foram escritas por ele. 

As outras seis diferem significativamente desse núcleo de sete. Três delas — 1 e 2 Timóteo e Tito — são tão parecidas que a maioria dos acadêmicos está convencida de que foram escritas pela mesma pessoa. As outras três em geral são atribuídas a três autores diferentes. O consenso acadêmico é maior em relação ao primeiro grupo de três. Portanto, começarei discutindo por que os estudiosos há muito as consideraram falsificações. 

As epístolas pastorais: 1 e 2 Timóteo e Tito 

As epístolas 1 e 2 Timóteo e Tito foram reunidas e chamadas de “epístolas pastorais” desde o século XVIII. O nome deriva do tema; o autor, que alega ser Paulo, está supostamente escrevendo a líderes da Igreja, seus companheiros Timóteo e Tito, para instruí-los sobre seus deveres pastorais ou ministeriais em suas respectivas igrejas. As três cartas têm muitas semelhanças impressionantes entre si, como mostrarei logo, mas também são distintas, provavelmente com três objetivos distintos, assim como as cartas autênticas de Paulo têm cada uma um objetivo diferente. Antes de mostrar por que a maioria dos estudiosos considera que foram escritas por outra pessoa que não Paulo, vou dar um breve resumo de cada uma. 

Resumo das cartas 

A primeira epístola a Timóteo é, em tese, uma carta de Paulo a seu colega mais novo, Timóteo, que ele deixara como líder da igreja na cidade de Éfeso. Na carta, “Paulo” dá a Timóteo instruções sobre como gerir e organizar a Igreja. Ele se opõe a grupos de falsos mestres que apresentam teorias exóticas envolvendo “mitos e genealogias” e defendem um tipo de rigorosa atividade ascética como exercício espiritual, no qual, por exemplo, o casamento é proibido e certas restrições alimentares rígidas devem ser observadas. Ele quer garantir que apenas o tipo certo de pessoa seja nomeado para os postos de bispo e diácono da igreja. Em particular, os postos devem ser ocupados por homens casados que não sejam recém-convertidos e que tenham vidas corretas. A maior parte da carta orienta sobre como os cristãos devem se comportar e interagir entre si, por exemplo, como rezar, como se comportar perante idosos e viúvas, e como se relacionar com a riqueza material. 

Entre os diversos problemas abordados pelo autor de 1 Timóteo está o papel das mulheres na igreja. Em um trecho acalorado, o autor indica que as mulheres devem ser submissas e não exercer qualquer autoridade sobre o homem, como por meio do ensino. Em vez disso, elas devem “se manter em silêncio”. Para o autor, é assim que as coisas devem ser: como visto desde o começo, no Jardim do Éden, quando o primeiro homem, Adão, foi enganado por sua mulher, Eva, e comeu o fruto proibido. Tudo foi culpa da mulher. Mas ela ainda pode ser salva, assegura o autor, “pela sua maternidade” (2,11-15). Em outras palavras, as mulheres devem ser silenciosas, submissas e mães. 

Embora 2 Timóteo seja endereçada à mesma pessoa, é escrita em uma situação diferente. Nesse caso, Paulo está supostamente escrevendo da prisão em Roma (não somos informados sobre onde 1 Timóteo foi escrita); foi julgado e espera para breve um segundo julgamento no qual será condenado à    morte. Escreve a Timóteo para encorajá-lo a cumprir seus deveres pastorais e eliminar os falsos mestres que se infiltraram na Igreja. “Paulo” expressa uma boa dose de amor e preocupação com Timóteo nessa carta; é de longe a mais pessoal das pastorais. E espera que Timóteo seja capaz de se juntar a ele em Roma, em breve, trazendo alguns de seus objetos pessoais.

O livro de Tito parece muito com o livro 1 Timóteo, quase como se fosse uma versão da Reader’s Digest da carta mais longa. Mas é endereçada por Paulo a Tito, um companheiro diferente, que supostamente é pastor da igreja na ilha de Creta. Paulo escreve para fazer seu representante corrigir aqueles que transmitem falsos ensinamentos, mais uma vez envolvendo “genealogias” e “mitologias”. Ele também dá instruções a vários grupos dentro da igreja: idosos, idosas, mulheres jovens, homens jovens e escravos.

AS PRIMEIRAS SUSPEITAS ACADÊMICAS SOBRE AS CARTAS 

Essas três cartas são particularmente significativas para nossa discussão porque, na história da erudição moderna, os primeiros livros de Paulo foram várias vezes apontados como falsificações. O grande momento se deu em 1807, com a publicação de uma carta do estudioso alemão Friedrich Schleiermacher. Ele foi um dos mais importantes teólogos cristãos do século XIX. Ficou famoso por defender a fé cristã contra seus “desprezadores cultos” e por desenvolver pontos de vista teológicos distintos que influenciaram teólogos até o século XX. Ainda hoje, há acadêmicos especializados em estudar as obras e os ensinamentos de Schleiermacher. Entre seus muitos escritos, há uma carta aberta enviada em 1807 a um pastor, na qual ele tentava demonstrar que 1 Timóteo não fora escrita por Paulo. 

Schleiermacher argumentava que 1 Timóteo usava palavras e desenvolvia ideias que estavam em contradição com aquelas de outras cartas de Paulo, incluindo 2 Timóteo e Tito. Ademais, os falsos ensinamentos atacados na carta não se parecem com nada do que sabemos sobre a época de Paulo. Em vez disso, parecem heresias do século II, em geral chamadas de “gnósticas”. 

Como Marcião, os cristãos gnósticos sustentavam que este mundo não é criação do verdadeiro Deus. Mas, diferentemente de Marcião, os gnósticos não acreditavam que havia apenas dois deuses. Sustentavam que havia muitos seres no reino divino que tinham passado a existir em algum momento no passado da eternidade, e que este mundo fora criado quando um dos seres divinos caíra do tal reino e ficara preso neste miserável mundo de matéria.82 As religiões gnósticas ensinavam que alguns de nós têm uma centelha divina presa em nossos corpos. A salvação da centelha se dará somente quando ela conhecer a verdade sobre de onde veio e quem de fato é. Em outras palavras, o elemento divino dentro de nós precisa adquirir o verdadeiro e secreto “conhecimento” que pode libertá-lo. Em grego, a palavra para “conhecimento” é gnosis, e assim esse tipo de religião é chamado de gnosticismo. Segundo os cristãos gnósticos, Cristo dá a salvação fornecendo o conhecimento secreto, e não, por exemplo, por morrer na cruz. E, como o objetivo da salvação era escapar da armadilha do corpo humano, muitos gnósticos eram rigidamente ascéticos, insistindo para que seus seguidores tratassem o corpo com severidade, por exemplo, no que diz respeito ao que se comia e evitando os prazeres do sexo. 

Schleiermacher argumentou que “mitos e genealogias” criticados em 1 Timóteo se parecem com as mitologias propostas por esses gnósticos posteriores, do século II. Somado aos outros problemas do livro, como o vocabulário não paulino, isso mostra que era uma produção posterior, falsificada em nome de Paulo. Pouco depois de Schleiermacher escrever sua carta-ensaio aberta, outros estudiosos se apresentaram argumentando que não apenas ele estava certo em relação a 1 Timóteo, como também que as outras duas epístolas pastorais tinham sido escritas pela mesma pessoa. Todas as três eram falsificadas.

CONHECIMENTO ATUAL: AS EPÍSTOLAS SÃO FALSIFICADAS? 

Uma incrível parcela de erudição foi dedicada às epístolas pastorais nos últimos trinta ou quarenta anos, dois séculos após Schleiermacher. Grande parte dela é tediosa para seres humanos normais, mas fascinante para acadêmicos anormais. Não posso resumir tudo aqui. Em vez disso, vou oferecer três razões para pensar que todas as três cartas foram escritas pela mesma pessoa, e que essa pessoa não foi Paulo.83 

Devo admitir de início que alguns estudiosos recentes argumentaram com insistência que 2 Timóteo é    tão diferente dos outros livros que deveria ser considerada em separado, como se de um autor diferente dos outros, possivelmente o próprio Paulo.84 Durante cerca de um ano antes de começar a 

escrever este livro, eu mesmo comecei a ficar cada vez mais inclinado a adotar essa posição. Mas fiz mais algumas pesquisas sérias sobre o tema e hoje estou convencido de que quem escreveu 1 Timóteo certamente escreveu 2 Timóteo. O motivo é que elas partilham conexões verbais e semelhanças demais para que seja acidental. Veja apenas como começam:

 1 Timóteo: “Paulo, apóstolo de Jesus Cristo [...] a Timóteo [...] graça, misericórdia, paz da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, nosso Senhor!”

 2 Timóteo: “Paulo, apóstolo de Jesus Cristo [...] a Timóteo [...] graça, misericórdia, paz da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, nosso Senhor!” 

São praticamente iguais. E, mais importante ainda, não há outra carta de Paulo que comece assim. Ou essas são do mesmo autor, ou um autor está copiando a escrita de outro. Mas há razões para pensar que não é obra de um copista. Para começar, há uma quantidade enorme de concordâncias verbais de tipo similar. As duas cartas têm em comum palavras e frases não encontradas em nenhuma das outras cartas atribuídas a Paulo, como: “a promessa de vida”, “com uma consciência pura”, “de um coração puro”, “guarde o depósito (de fé)”, Paulo é um “apóstolo, mensageiro e mestre” etc. O impressionante é que não só essas frases e muitas outras sejam encontradas nessas duas cartas, mas que sejam encontradas apenas nelas. 

Por isso, uma das cartas não está sendo escrita por um copista usando a outra como modelo. Para isso, o copista teria de saber não só quais palavras e frases eram importantes na primeira carta, mas também quais dessas palavras e frases eram, ao mesmo tempo, aquelas que o próprio Paulo nunca usou. Suponho que seja teoricamente possível que um aluno de Paulo muito astuto, no século I, tenha lido todas as cartas do mestre, feito uma lista de palavras que apareciam nelas, depois lido 1 Timóteo, feito uma lista de palavras importantes ali, comparado as duas listas e decidido escrever outra carta a Timóteo usando muitas palavras e frases presentes na segunda lista, mas não na primeira. Porém, isso exige um esforço de imaginação. É muito mais fácil acreditar que quem escreveu uma carta tinha seus termos preferidos e os usou também na outra carta. Só que esses termos não eram usados por Paulo.85 

Essa é uma das razões pelas quais estudiosos desde o século XIX se convenceram de que Paulo não escreveu as cartas. O vocabulário e o estilo de redação são muito diferentes daqueles das outras epístolas paulinas. Em 1921, o estudioso britânico A.N. Harrison escreveu um importante estudo das epístolas pastorais no qual apresentou muitas estatísticas sobre a utilização de palavras nesses textos. Um dos números mais citados é que há 848 palavras diferentes usadas nas epístolas pastorais. Delas, 306 — mais de um terço! — não aparecem em nenhuma das outras epístolas paulinas do Novo Testamento. É um número muito alto; em especial, considerando-se o fato de que cerca de dois terços dessas 306 palavras são usados por autores cristãos vivendo no século II. Isso sugere que esse autor está usando um vocabulário que se tornava mais comum depois da época de Paulo, e que, portanto, também ele viveu após Paulo.86 

Alguns acadêmicos questionaram o uso de estatísticas, já que, como todos sabemos, é possível fazer com que elas digam praticamente qualquer coisa que você queira. Mas os argumentos acerca de utilização de palavras se tornaram cada vez mais refinados ao longo dos noventa anos desde que Harrison escreveu seu trabalho, e em quase todos os estudos feitos fica claro que a utilização de palavras nas pastorais é diferente daquela nas outras epístolas de Paulo.87 Ao mesmo tempo, não se deve dar peso demasiado a simples números. Afinal, todos usam palavras diferentes em ocasiões diferentes, e a maioria de nós tem um vocabulário muito mais rico do que aquele revelado em determinada carta ou conjunto de cartas que escrevemos. 

O problema é que um grande número de fatores parece apontar na mesma direção, mostrando que esse autor não é Paulo. Para começar, algumas vezes o autor usa as mesmas palavras de Paulo, mas com significados diferentes. O termo “fé” era de suprema importância para Paulo. Em livros como Romanos ou Gálatas, fé se refere à confiança que a pessoa tem em Cristo para dar a salvação por meio da morte. Em outras palavras, o termo descreve uma relação com o outro; fé é confiança “em” Cristo. O autor das pastorais também usa o termo “fé”. Mas não diz respeito a uma relação com Cristo; fé passa a significar o corpo de ensinamentos que compõe a religião cristã. É “a fé” (ver Tito 1,13). Mesma palavra, significado diferente. Da mesma forma com outros termos fundamentais, como “retidão”. 

Mais significativo ainda é que algumas ideias e conceitos nas epístolas pastorais parecem contradizer o que é encontrado nas epístolas que Paulo certamente escreveu. Vimos, por exemplo, que ele se preocupava muito em argumentar que cumprir as “obras da lei” não contribuía para a retidão da pessoa perante Deus. Não era a lei judaica que levava à salvação, mas a morte e ressurreição de Jesus. Quando Paulo fala sobre “obras”, é isto o que quer dizer: fazer as coisas que a lei judaica exige, como ser circuncidado, ser kosher e guardar o sabá. Contudo, nas pastorais, a lei judaica não é mais um problema, e o autor fala de obras como “boas ações”, ou seja, fazer o bem a outras pessoas. O termo aparece dessa forma apenas seis vezes em 1 Timóteo. Esse autor está preocupado em mostrar que, sendo uma pessoa moralmente boa, você não pode conseguir sua salvação. Isso pode ser verdade, mas é uma ideia bem diferente daquela de Paulo. Paulo estava preocupado se as pessoas seguiam a lei judaica como um caminho para a salvação (você não deveria), não se faziam coisas boas por ela. 

Ou pegue uma ideia completamente diferente, o casamento. Em 1 Coríntios 7, Paulo afirma que as pessoas solteiras deveriam tentar permanecer solteiras, assim como ele. Seu motivo é que o fim de todas as coisas está próximo, e as pessoas deveriam se devotar a espalhar a notícia, não a estabelecer vidas sociais. Mas como isso se encaixa com a visão nas pastorais? Ali o autor insiste em que os líderes da igreja sejam casados. Nas cartas de Paulo, é melhor não ser casado; nas pastorais, é exigido que as pessoas (pelo menos os líderes da igreja) sejam casadas. 

Ou pense na questão básica de como a pessoa é “salva”. Para o próprio Paulo, somente pela morte e ressurreição de Jesus a pessoa pode ser salva. E para as pastorais? Pelo menos no caso das mulheres, é dito em 1 Timóteo 2 que elas “serão salvas” tendo filhos. É difícil saber com exatidão o que isso quer dizer, mas não significa o que Paulo queria dizer! 

O maior problema em aceitar as pastorais como sendo de Paulo envolve a situação histórica que elas parecem pressupor. Paulo, como Jesus antes dele, acreditava viver no fim dos tempos. Quando Jesus foi erguido dentre os mortos, esse foi o sinal de que o fim já começara e de que a futura ressurreição dos mortos estava prestes a acontecer. Segundo a crença judaica, a ressurreição aconteceria quando esta era chegasse ao fim. Por isso, Paulo chamou Jesus de “primícias dos que morreram” em 1 Coríntios 15,20. É uma metáfora agrícola. Os agricultores celebram o primeiro dia de colheita com uma festa à noite. E quando eles vão pegar o resto da colheita? No dia seguinte — não vinte ou dois mil anos depois. Jesus é o primeiro fruto, porque com ele a ressurreição começou, e muito em breve todos — todos os mortos — serão erguidos para o julgamento. Por isso Paulo acha que ele mesmo estará vivo quando Jesus retornar do céu (ver 1Ts 4,14-18). 

Porém, nesse ínterim, apesar disso, a Igreja tem de crescer e sobreviver no mundo. Paulo achava que, nesse breve período intermediário entre a ressurreição de Jesus e o fim dos tempos, o Espírito de Deus tinha sido dado à Igreja e a cada indivíduo que a compunha. Quando a pessoa era batizada, recebia o Espírito (1Co 12,13), e o Espírito dava à pessoa um “dom” espiritual. Alguns dos batizados recebiam o dom de ensinar, outros de profetizar, outros de curar, outros de falar línguas angelicais, outros de interpretar essas línguas. Todos esses dons deveriam ajudar a comunidade cristã a funcionar junta, como uma unidade (1Co 12-14). Nenhum desses dons era menor ou insignificante. Todos tinham importância. Todos na Igreja eram dotados de um dom, de modo que todos eram iguais. Escravos estavam no mesmo nível dos senhores, mulheres eram iguais aos homens. Por isso, Paulo podia dizer “não há [...] nem escravo nem livre, nem homem nem mulher; pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Havia igualdade. 

Quando surgiam problemas nas igrejas de Paulo — como na igreja de Corinto, para a qual temos a melhor documentação —, ele escrevia para lidar com eles. É interessante ler sua correspondência com os coríntios. A igreja era uma bagunça. Havia divisões e casos de brigas internas, alguns membros processavam outros, os serviços religiosos eram caóticos e havia sérias discordâncias em relação a grandes questões éticas, como se era correto comer carne que tivesse sido sacrificada a ídolos pagãos. Algumas pessoas negavam que fosse haver uma ressurreição futura, e havia grande imoralidade — alguns homens visitavam prostitutas e se vangloriavam disso na igreja, e um sujeito dormia com a madrasta. 

Para cuidar desses graves problemas, Paulo apela à igreja como um todo e aos indivíduos pertencentes a ela. Ele os conclama a usar seus dons espirituais para o bem comum. Apela para que ajam em unidade. Exorta-os a começar a se comportar de modo ético. Censura-os, por exemplo, por não aceitar o ensinamento correto sobre a futura ressurreição. 

A única coisa que Paulo não faz é escrever aos líderes da igreja de Corinto e dizer a eles para dar um jeito nos paroquianos. Por quê? Porque não havia líderes da igreja em Corinto. Não havia bispos ou diáconos. Não havia pastores. Havia um grupo de indivíduos, cada um deles com um dom do Espírito, nesse breve tempo antes do fim que se aproximava. 

Compare isso com o que há nas pastorais. Ali não há indivíduos dotados pelo Espírito trabalhando juntos para formar uma comunidade. Ali há os pastores Timóteo e Tito. Há os líderes da Igreja: bispos e diáconos. Há hierarquia, estrutura, organização. Ou seja, há uma situação diferente daquela que havia na época de Paulo. 

Se você espera que Jesus volte logo — digamos, este mês —, não há de fato necessidade de um sistema hierarquizado de organização e liderança. Você só precisa operar a curto prazo. Mas, se Jesus não retorna e você tem de se acomodar para o longo prazo, as coisas são diferentes. Você precisa se organizar. Precisa de liderança. Precisa ter alguém comandando o espetáculo. Precisa de mestres que possam eliminar os falsos ensinamentos do seu meio. Precisa especificar como as pessoas devem se relacionar socialmente: senhores e escravos, maridos e mulheres, pais e filhos. Em um sistema hierárquico, não há igualdade; há liderança. É o que você encontra nas epístolas pastorais — igrejas se preparando para o longo prazo. Mas não é o que encontra no Paulo histórico. Para o Paulo histórico, não haveria longo prazo. O fim estava próximo. 

Como disse no início desta discussão, alguns estudiosos se mostraram dispostos a concordar que 1 Timóteo e Tito, que é intimamente relacionado a 1 Timóteo, são pseudoepigráficas, mas que 2 Timóteo poderia ser de Paulo. Tentei mostrar que isso não poderia funcionar, porque quem escreveu 1 Timóteo também escreveu 2 Timóteo. Se uma é falsificada, também o é a outra. Não significa que as duas cartas abordem as mesmas preocupações ou tenham sido escritas com o mesmo objetivo; significa apenas que têm o mesmo autor. Mas um ponto que costuma ser levantado é que há tanta informação pessoal em 2 Timóteo que é difícil entender como poderia ser falsificada. Por que, por exemplo, um falsificador diria a seu suposto leitor (que não era realmente seu leitor!) para ter a certeza de levar para ele sua capa quando partir e também os livros que deixara para trás? (2Tm. 4,13) 

Essa objeção foi respondida por um dos maiores estudiosos de falsificações antigas, Norbert Brox, que nos dá evidências convincentes de que esse tipo de “verossimilhança” (como chamei no capítulo 1) é típico de falsificações; fazer a carta soar “informal” reduz a suspeita de que seja

falsificada. Portanto, as referências pessoais em 2 Timóteo (há menos em Tito e ainda menos em 1 Timóteo) servem para convencer os leitores de que isso de fato foi escrito por Paulo, embora não tenha sido.88 Mas por que um autor falsifica cartas como essa? 

POR QUE AS EPÍSTOLAS PASTORAIS FORAM FALSIFICADAS? 

A resposta mais óbvia é que o autor é alguém enfrentando novos problemas em uma geração posterior a de Paulo, problemas que o próprio Paulo nunca abordou e quer lidar com eles em nome de uma autoridade que será escutada. E, nas igrejas de Paulo, quem tinha mais autoridade que o próprio Paulo? Então o autor lidou com o problema dos falsos ensinamentos, por exemplo, daqueles propondo “mitos e genealogias” em 1 Timóteo, e de outros falsos mestres que alegavam que a ressurreição “já acontecera” em 2 Timóteo. Também lidou com problemas envolvendo a liderança da Igreja e o papel das mulheres na instituição. Ele fez tudo isso fingindo ser Paulo. 

Alguns estudiosos acharam que algo ainda mais preciso pode ter provocado essas falsificações. Em um estudo muito interessante e influente, o acadêmico americano Dennis MacDonald argumenta que as epístolas pastorais foram escritas para se oporem a visões que circulavam nas histórias ligadas a Tecla.89 É verdade que os Atos de Paulo, em que as histórias de Tecla são encontradas hoje, foram escritos pelo menos de setenta a oitenta anos depois das pastorais. Mas as histórias registradas nos Atos de Paulo circulavam muito tempo antes de o presbítero da Ásia Menor inventar seu relato. E, de formas impressionantes, os pontos de vista encontrados nas histórias de Tecla se chocam com os pontos de vista defendidos nas pastorais. Podia uma delas ter sido escrita para autorizar um ponto de vista contrário, sob a autoridade de Paulo? 

Nos Atos de Paulo, o casamento é atacado. Nas pastorais, o casamento é encorajado; na verdade, exige-se que os líderes da Igreja sejam casados. Nos Atos de Paulo, a atividade sexual é condenada; apenas permanecendo casto é possível entrar no Reino dos Céus. Nas pastorais, a atividade sexual é conclamada; as mulheres só serão salvas tendo bebês. Nos Atos de Paulo, as mulheres — especificamente Tecla — podem ensinar e exercer autoridade. Nas pastorais, as mulheres devem ser silenciosas e submissas; não podem ensinar nem exercer autoridade. Como as epístolas pastorais se opõem diretamente aos pontos de vista encontrados nas histórias incorporadas aos Atos de Paulo, MacDonald argumenta que as cartas foram falsificadas por alguém que ouvira as histórias sobre Tecla e queria deixar o registro correto do “verdadeiro” ponto de vista de Paulo. 

É     um argumento bem atraente, e pode estar correto. Mas, para muitos estudiosos, o maior problema nisso diz respeito às datas do material. Os Atos de Paulo provavelmente foram escritos pelo presbítero da Ásia Menor algumas décadas depois das pastorais serem produzidas. As histórias que o presbítero usou podiam ser muito mais antigas, mas sem evidências que corroborem é difícil dizer. Uma reconstrução histórica diferente pode ser mais plausível.

Seguiria assim. As igrejas de Paulo estavam divididas de muitas formas, como vimos. Uma das divisões envolvia questões de sexo, sexualidade e gênero. Alguns cristãos paulinos achavam que as mulheres deveriam ser tratadas como iguais, tendo status e autoridade iguais aos homens, já que Paulo dissera que não há “homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Outros cristãos paulinos pensavam que as mulheres eram iguais aos homens apenas “em Cristo”, com o que queria dizer “em teoria”, não em realidade social. Esses cristãos estavam ansiosos para reduzir a ênfase de Paulo nas mulheres, e um deles decidiu escrever um conjunto de cartas, as pastorais, que autorizava seu ponto de vista em nome de Paulo. Ele também tinha outras questões que desejava abordar: a natureza da liderança da Igreja, a necessidade de eliminar falsos ensinamentos, as relações entre escravos e senhores, pais e filhos e assim por diante. Embalou todos esses temas variados em um conjunto de cartas e as escreveu em nome de Paulo, falsificando-as para dar-lhes a voz de autoridade de que careciam. 

No entanto, nem todos ficaram convencidos e aceitaram as cartas como sendo de Paulo. Marcião, por exemplo, não as possuía (é difícil saber se tinha conhecimento delas). Ademais, o outro lado da divergência acerca do papel das mulheres não foi destruído pelo surgimento das epístolas pastorais. Ele resistiu, vendo Paulo como um adversário do casamento e do sexo, mas defensor das mulheres. Esse outro lado contava histórias sobre Paulo que sustentavam suas visões, e essas histórias acabaram centrando-se em uma das principais convertidas de Paulo, Tecla. Em dado momento do século II, os dois conjuntos de documentos circulavam bastante: as histórias inventadas sobre Paulo e Tecla e as cartas falsificadas de Paulo que acabaram sendo incluídas no Novo Testamento. 

2 TESSALONICENSES 

Quando eu era um cristão evangélico conservador no fim da adolescência e até vinte e poucos anos, havia poucas coisas de que tinha mais certeza, em se tratando de religião, que do fato de que Jesus logo voltaria do céu para tirar a mim e meus colegas crentes do mundo, no “arrebatamento” antes da tribulação final. Líamos todo tipo de livro que sustentava nossa visão. Poucas pessoas hoje sabem que o livro mais vendido em inglês nos anos 1970, além da Bíblia, foi A agonia do grande planeta Terra, escrito pelo cristão fundamentalista Hal Lindsey. Com base em um cuidadoso (ou descuidado, dependendo de seu ponto de vista) estudo do livro do Apocalipse e outros livros proféticos bíblicos, Lindsey escreveu com segurança sobre o que estava prestes a acontecer no Oriente Médio à medida que as superpotências União Soviética, China, União Europeia e enfim Estados Unidos convergiam para um enorme confronto que levava a um completo holocausto nuclear, pouco antes de Jesus retornar. Tudo isso que nos era dito tinha de acontecer antes do fim dos anos 1980, como as próprias Escrituras ensinavam. 

É   claro que nunca aconteceu. E agora não União Soviética. Mas isso não impediu as pessoas de escreverem sobre como o fim chegará logo, em nossa própria época, a qualquer momento. Nas listas de mais vendidos de alguns anos atrás, eclipsando as vendas dos livros de Harry Potter, esteve a série Deixados para trás e LaHaye, em vários volumes, sobre aqueles que não serão levados no arrebatamento iminente. Os livros foram escritos em parceria por Jerry Jenkins e Timothy LaHaye, o último dos quais tivera uma carreira escrevendo com a mulher, Beverly, livros sobre sexo para cristãos. 

O que a maioria dos milhões de pessoas que acredita no breve retorno de Jesus, enquanto estivermos vivos, não sabe é que sempre houve cristãos que pensaram isso de sua própria época. Esse era um ponto de vista destacado entre cristãos conservadores no começo do século XX, fim do século XIX, no século XVIII, no século XII, no século II, no século I — na verdade, em quase todos os séculos. A única coisa que todos aqueles que já pensaram isso têm em comum é que todos estavam irrefutavelmente errados. 

O próprio Paulo achou que o fim chegaria durante sua vida. Em nenhum outro ponto isso é mais claro que em uma das epístolas que, seguramente, ele escreveu: 1 Tessalonicenses. Paulo escreveu aos cristãos em Tessalônica porque alguns deles haviam ficado perturbados com a morte de colegas crentes. Quando convertera aquelas pessoas, Paulo lhes ensinara que o fim dos tempos era iminente, que eles logo entrariam no Reino dos Céus quando Jesus retornasse. Mas membros da congregação haviam morrido antes que isso acontecesse. Teriam eles perdido sua recompensa celestial? Paulo escreve para assegurar aos sobreviventes que não, mesmo aqueles que haviam morrido seriam levados ao Reino. Quando Jesus retornar em glória nas nuvens do céu, “os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro; depois nós, os que ainda estamos na terra, seremos arrebatados juntamente com eles sobre nuvens ao encontro com o Senhor, nos ares” (4,16-17). Leiam os versículos com cuidado: Paulo espera ser um daqueles que ainda estarão vivos quando isso acontecer. 

Ele prossegue dizendo que será um acontecimento súbito e inesperado. Aquele dia “virá como um ladrão de noite” e, quando as pessoas pensarem que tudo está bem, “lhes sobrevirá a destruição” (5,2-3). Os tessalonicenses devem estar alertas e preparados, pois, como se dá com as dores do parto de uma mulher grávida, é possível saber que acontecerá logo, mas não se pode prever o exato momento. 

É   justamente essa ênfase na subtaneidade do reaparecimento de Jesus, que apanhará as pessoas de surpresa, que torna tão interessante a segunda carta que Paulo supostamente escreveu aos tessalonicenses. Esse também é um livro escrito sobre o segundo advento de Jesus, mas o que está sendo abordado é um problema diferente. Os leitores foram “desencaminhados” por uma carta, ao que parece, falsificada em nome de Paulo (2,2) dizendo “estar iminente o dia do Senhor”. O autor de 2 Tessalonicenses, alegando ser Paulo, argumenta que o fim, na verdade, não se dará imediatamente. Certas coisas precisam acontecer antes. Haverá algum tipo de levante e rebelião políticos ou religiosos, e surgirá uma espécie de anticristo que tomará seu assento no Templo de Jerusalém e se declarará Deus. Só então o “Senhor Jesus” virá e o “destruirá com o sopro de sua boca” (2,3-8).

Em outras palavras, os tessalonicenses podem ficar tranquilos de que ainda não estão no momento final da história quando Jesus reaparece. Eles saberão quando estiver quase aqui pelos acontecimentos que se darão cumprindo as Escrituras. Mas pode esse ser o mesmo autor que escreveu a outra carta, 1 Tessalonicenses? Compare o momento do surgimento de Jesus em 2 Tessalonicenses, segundo a qual ainda demorará um pouco e será precedido de acontecimentos identificáveis, com a de 1 Tessalonicenses, quando o fim chegará como um “ladrão noturno” que aparece quando as pessoas menos esperam. Parece haver uma disparidade fundamental entre os ensinamentos de 1 e 2 Tessalonicenses, motivo pelo qual tantos estudiosos acham que 2 Tessalonicenses não é de Paulo.90 

É   particularmente interessante que o autor de 2 Tessalonicenses indica que já ensinou essas coisas a seus convertidos quando esteve com eles (2,5). Se assim é, como explicar 1 Tessalonicenses? O problema é que pessoas acham que o fim chegará a qualquer momento, com base no que Paulo contou a elas. Mas, segundo 2 Tessalonicenses, Paulo nunca ensinou tal coisa. Ele ensinou que tinha de haver uma sequência de acontecimentos antes do fim. Mais ainda, se foi isso o que ensinou a eles, como insiste 2 Tessalonicenses, é estranho que nunca os lembre desse ensinamento em 1 Tessalonicenses, em que eles acham que aprenderam algo diferente. 

É    provável que Paulo não tenha escrito 2 Tessalonicenses. Isso torna intrigante um elemento da carta. No fim dela, o autor insiste que é Paulo, e oferece uma espécie de prova: “A saudação vai de meu próprio punho, Paulo. É esta a minha assinatura em todas as minhas cartas. É assim que escrevo.” (3,17) Isso significa que “Paulo” estivera ditando sua carta a um escriba que escrevera tudo até o fim, quando Paulo assinou com sua própria mão. Os leitores da carta podiam ver a mudança de caligrafia e reconhecer a de Paulo, autenticando a carta como sendo de fato dele, em oposição à falsificada mencionada em 2,2. O peculiar é que o autor alega que essa é sua prática invariável. Mas não é como termina a maioria das epístolas incontestadas de Paulo, incluindo 1 Tessalonicenses. Difícil considerar as palavras como sendo de Paulo, mas elas fazem sentido se um falsificador estiver tentando convencer seus leitores de que realmente era Paulo. Mas talvez seja exagerado demais. 

Alguns estudiosos levaram um pouco mais longe a questão da falsificação, sugerindo que quando o autor, alegando ser Paulo, tenta acalmar seus leitores para não serem desorientados por uma carta falsa (“como se nossa”), que sustenta, em nome de Paulo, que o fim está logo ali, o falsificador se refere a 1 Tessalonicenses! Ou seja, alguém vivendo depois queria eliminar dos leitores a mensagem que o próprio Paulo transmitira sobre o fim iminente, já que ele não se dera e Paulo e todos os demais haviam morrido nesse ínterim. Então, um autor oferecia alguma tranquilidade falsificando uma carta que alegava ser a carta autêntica uma falsificação. Seja isso certo ou não, o que parece correto é que alguém depois da época de Paulo decidiu que tinha de interferir em uma situação em que as pessoas antecipavam, ansiosamente, o fim; com tanta ansiedade que, sugere ele, negligenciavam as obrigações do cotidiano (3,6-12) — ele o fez redigindo uma carta em nome de Paulo, sabendo muito bem que era outra pessoa vivendo depois. 

Portanto, 2 Tessalonicenses parece ser outro caso de falsificação paulina. 

EFÉSIOS 

Quando eu lecionava em Rutgers, em meados da década de 1980, oferecia regularmente um curso sobre a vida e os ensinamentos de Paulo. Um dos livros da disciplina era uma obra sobre Paulo, do acadêmico conservador britânico F.F. Bruce.91 Eu usava o livro por discordar de quase tudo nele, e achava que seria uma boa ideia meus alunos verem um lado da história diferente daquele que eu apresentava em sala. Uma das coisas que F.F. Bruce achava sobre os escritos de Paulo era ser Efésios a mais paulina de todas as epístolas paulinas. Não apenas ele achava que Paulo a escrevera, como pensava que encapsulava melhor que qualquer outra epístola o cerne e a alma da teologia de Paulo. 

Isso também era o que eu pensara anos antes, quando estava começando meus estudos. Depois fiz um curso sobre o Novo Testamento no Seminário Teológico de Princeton com o professor J. Christiaan Beker. Beker era um formidável estudioso de Paulo. No fim dos anos 1970, escreveu um grande e influente estudo da teologia de Paulo, um dos maiores estudos publicados sobre o tema.92 Beker estava convencido de que Paulo não escrevera Efésios, e que, na verdade, Efésios representa uma grave alteração das ideias de Paulo.93 

Na época em que fiz o curso, eu não estava tão certo. Mas, quanto mais estudava o tema, comparando com cuidado o que dizia Efésios com o que o próprio Paulo diz em suas cartas não questionadas, fiquei cada vez mais convencido. No momento em que lecionava na Rutgers, eu tinha certeza de que Paulo não escrevera a epístola. Hoje a maioria dos estudiosos da Bíblia concorda. Efésios pode soar como Paulo, mas quando se cava um pouco mais fundo, surgem grandes diferenças e discrepâncias. 

Efésios é escrito a cristãos gentios (3,1) para lembrá-los de que embora tivessem um dia sido alienados de Deus e seu povo, os judeus, tinham sido reconciliados; tinham sido tornados justos perante Deus, e a barreira que separava judeu de gentio — a lei judaica — tinha sido posta abaixo pela morte de Cristo. Judeus e gentios podiam viver em harmonia entre si, em Cristo, e em harmonia com Deus. Após apresentar esse conjunto de ideias teológicas nos três primeiros capítulos (em especial, no capítulo 2), o autor se volta para questões éticas e discute as formas pelas quais os seguidores de Jesus devem viver, para manifestar a unidade que têm em Cristo. 

As razões para pensar que Paulo não escreveu essa epístola são muitas e convincentes. Para começar, o estilo de redação não é o de Paulo. Paulo normalmente escreve com frases curtas e incisivas; as sentenças em Efésios são longas e complexas. Em grego, a declaração de abertura de ação de graças (1,3-14) — todos os 12 versículos — é uma única sentença. Não há nada de errado em sentenças extremamente longas em grego; só não é o modo como Paulo escrevia. É como Mark Twain e William Faulkner: ambos escreviam corretamente, mas você nunca confundiria um com o outro. Alguns acadêmicos apontaram que nas cem sentenças de Efésios cerca de nove delas têm mais de cinquenta palavras de extensão. Compare isso com as cartas do próprio Paulo. Filipenses, por exemplo, tem 102 sentenças, com apenas uma delas com mais de cinquenta palavras; Gálatas tem 181 sentenças, mais uma vez com apenas uma acima de cinquenta palavras. O livro também tem um número incomum de palavras que não ocorre nos outros escritos de Paulo: 166 no total — bem acima da média (50% mais que em Filipenses, por exemplo, que tem aproximadamente o mesmo tamanho).94 

Entretanto, a principal razão para pensar que Paulo não escreveu Efésios é que aquilo que o autor diz em certos pontos não concorda com o que o próprio Paulo diz em suas próprias cartas. Efésios 2,1-10, por exemplo, certamente parece a escrita de Paulo, mas apenas superficialmente. Ali, como nas epístolas autênticas de Paulo, aprendemos que os crentes foram apartados de Deus por causa do pecado, mas que foram feitos justos perante Deus exclusivamente por meio de Sua graça, não como resultado de “obras”. Mas aqui, estranhamente, Paulo se inclui como alguém que, antes de chegar a Cristo, foi desviado pelos “desejos de nossa carne, satisfazendo às vontades da carne e seus impulsos”. Isso não se parece com o Paulo das epístolas incontestadas, que diz ter sido “irrepreensível” quanto à “justiça que há na lei” (Fl 3,6). Além disso, embora esteja falando na carta sobre a relação entre judeu e gentio, o autor não fala sobre salvação fora das “obras da lei”, como faz Paulo. Em vez disso, fala sobre salvação que não por “boas ações”. Esse não era o tema que Paulo abordava. 

Ademais, esse autor indica que os crentes já foram “salvos” pela graça de Deus. Na verdade, o verbo “salvar” nas cartas autênticas de Paulo sempre é usado para se referir ao futuro. Salvação não é    algo que as pessoas já tenham; é o que elas irão ter quando Jesus retornar nas nuvens do céu e livrar seus seguidores da ira de Deus.

Da mesma forma, e mais significativamente, Paulo em seus próprios escritos enfatizava que os cristãos que tinham sido batizados tinham “morrido” para os poderes do mundo alinhados com os inimigos de Deus. Eles tinham “morrido com Cristo”. Mas ainda não tinham sido “elevados” com Cristo. Isso aconteceria no fim dos tempos, quando Jesus retornasse e todas as pessoas, vivas e mortas, fossem erguidas para enfrentar o julgamento. Por isso, em Romanos 6,1-4, Paulo é enfático: aqueles batizados “morreram” com Cristo, e serão “erguidos” com ele, no segundo advento de Jesus. 

Paulo era extremamente persistente neste ponto: de que a ressurreição dos crentes era um acontecimento físico futuro, não algo que já houvesse acontecido. Uma das razões pelas quais escreveu 1 Coríntios foi o fato de alguns dos cristãos daquela comunidade terem um ponto de vista oposto e sustentarem que já desfrutavam de uma existência ressuscitada com Cristo e dos benefícios da salvação. Paulo dedica 1 Coríntios 15 a mostrar que a ressurreição não é algo que já tenha acontecido. É um acontecimento físico por ocorrer no futuro. Os cristãos ainda não foram erguidos com Cristo.

Contudo, compare essa afirmação com o que diz Efésios: “Quando ainda estávamos mortos em consequência de nossos pecados, [Deus] deu-nos vida juntamente com Cristo, [...] juntamente com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus.” (2,5-6) Ali os crentes experimentaram uma ressurreição espiritual e desfrutam de uma existência celestial aqui e agora. Esse é o ponto de vista contra o qual Paulo argumentou em sua carta aos coríntios! 

Ponto após ponto, quando se estuda Efésios com atenção, nota-se a contradição com a obra de Paulo. Ao que parece, esse livro foi escrito por um cristão posterior em uma das igrejas de Paulo, querendo lidar com uma grande questão de sua própria época: a relação entre judeus e gentios na Igreja. Ele o fez alegando ser Paulo, sabendo muito bem que não era, e alcançou seu objetivo, isto é, produzir uma falsificação. 

COLOSSENSES 

Muito do mesmo pode ser dito sobre a epístola aos colossenses. Superficialmente parece obra de Paulo, mas não quando se cava mais fundo. Colossenses tem muitas palavras e frases também encontradas em Efésios, tanto que alguns estudiosos acreditam que quem falsificou Efésios usou Colossenses como uma de suas fontes para o modo como Paulo escrevia. Infelizmente, ele usou um livro que Paulo muito provavelmente não escreveu.95 

Colossenses tem pauta e objetivo diferentes de Efésios. Este autor está preocupado em particular com um grupo de falsos mestres que transmite algum tipo de “filosofia”. Infelizmente o autor não detalha o que era essa filosofia, deixando apenas indícios. Evidentemente os falsos mestres conclamavam os ouvintes tanto a adorar anjos e seguir leis judaicas quanto ao que comer e quais dias especiais reservar para festas religiosas. Uma das razões pelas quais o autor não explica com detalhes o que esses falsos mestres ensinavam pode ser o medo de as pessoas, ao lerem a carta, saberem muito bem o que eles tinham em mente e o que estavam dizendo. 

O autor se opõe a eles enfatizando que apenas Cristo, e não seres angelicais, é uma divindade merecedora de adoração, e que sua morte eliminou a necessidade de seguir a lei. Para ele, os crentes em Cristo já viviam acima de todas as regras e regulamentações humanas, pois haviam ascendido com Cristo para os lugares celestiais, experimentando uma espécie de unidade mística com Cristo aqui e agora. Isso, porém, não significava que os cristãos podiam viver como bem entendessem. Ainda tinham a responsabilidade de levar vidas morais. Os dois capítulos finais apresentam algumas das exigências éticas da nova vida em Cristo. 

As razões para crer que o livro, na verdade, não foi escrito por Paulo são em grande parte as mesmas do caso de Efésios. Entre outras coisas, o estilo de redação e o conteúdo do livro diferem significativamente daqueles das epístolas não questionadas de Paulo. De longe o mais convincente estudo do estilo de redação de Colossenses foi feito pelo acadêmico alemão Walter Bujard há cerca de quarenta anos.96 Bujard analisou todos os tipos de traços estilísticos da epístola: o tipo e a frequência das conjunções, infinitivos, particípios, orações subordinadas, sequências de genitivos e uma série de outros elementos. Ele se interessou sobretudo por comparar Colossenses com epístolas de Paulo de tamanho similar: Gálatas, Filipenses e 1 Tessalonicenses. As diferenças entre essa carta e os escritos de Paulo são chocantes e convincentes. Apenas como prova: 

              Frequência com que a epístola usa “conjunções adversativas” (por exemplo, “embora”): Gálatas, 84; Filipenses, 52; 1 Tessalonicenses, 29. Colossenses, apenas 8.

 

              Frequência com que a epístola usa conjunções causais (por exemplo, “porque”): Gálatas, 45; Filipenses, 20; 1 Tessalonicenses, 31. Colossenses, apenas 9. 

              Frequência com que a epístola usa uma conjunção (por exemplo, “que”, “como”) para introduzir uma declaração: Gálatas, 20; Filipenses, 19; 1 Tessalonicenses, 11. Colossenses, apenas 3. 

A lista continua por muitas páginas examinando todo tipo de informação, com inúmeras considerações, todas apontando na mesma direção: é alguém com um estilo de redação diferente do usado por Paulo. 

E mais uma vez, aqui, o conteúdo do que o autor diz está em contradição com o que Paulo pensava, mas é coerente com Efésios. O autor indica também, por exemplo, que os cristãos já foram “elevados com Cristo” quando batizados, a despeito da insistência de Paulo em que a ressurreição dos crentes era futura, não passada (ver Cl 2,12-13). 

Portanto, o que temos aqui é outro caso em que um seguidor posterior de Paulo estava preocupado em abordar uma situação em sua própria época e o fez assumindo o manto e tomando o nome de Paulo, falsificando uma carta em seu nome.

                                                  CONCLUSÃO 

Vimos que havia uma série de falsificações paulinas circulando nos primórdios da Igreja, epístolas atribuídos a Paulo mas, na verdade, escritas por outros. Algumas dessas epístolas são reconhecidas como falsificações por todos no planeta, como as Cartas de Paulo e Sêneca. Outras são temas de sérias discussões acadêmicas. Mas a maioria dos estudiosos reconhece que, enquanto há no Novo Testamento sete cartas que Paulo certamente escreveu, seis outras provavelmente (ou certamente, para alguns estudiosos) não são de Paulo, por alguns dos motivos que apresentei aqui. Há muitas outras razões, mas os argumentos podem se tornar um tanto tediosos após algum tempo. 

Contudo, certos estudiosos relutam em chamar essas epístolas deuteropaulinas de falsificações. Alguns argumentaram que diferem das cartas do próprio Paulo por terem sido dadas por ele a um secretário que, ao redigir, utilizou um estilo de redação diferente daquele usado pelo apóstolo. Outros sugeriram que, como em algumas de suas cartas, Paulo menciona coautores; possivelmente esses outros autores foram responsáveis pela redação das cartas, o que explicaria as diferenças. E há aqueles que alegaram que era comum em escolas filosóficas os discípulos de um mestre escreverem tratados e assiná-los em nome do professor, como prova de humildade, já que todas as ideias se originavam do próprio mestre. 

São todas propostas interessantes. Mas acho que estão todas erradas. Tento mostrar por que no próximo capítulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

🙏 Por Que Deixei de Fazer Parte do Sistema Religioso?

Por Que Deixei de Fazer Parte do Sistema  Religioso?  O propósito deste blog é deixar clara a razão pela qual deixei de pertencer o Sistema ...